Filme “Parasita” faz crítica à desumanização do capitalismo

A obra do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, é uma aula sobre luta de classes feita para o grande público 10 de novembro de 2019 Ricardo Santos

Em cartaz nos cinemas, Parasita (2019) é o verdadeiro filme do ano, e não Coringa (2019). Bacurau (2019) chega perto, mas não apresenta o apuro técnico da produção sul-coreana. Politicamente, Bacurau propõe uma solução mais radical, no sentido de não fazer concessões para o problema das injustiças do capitalismo. Coringa tenta fazer algo semelhante por vias tortas. Em Parasita, a questão é escancarada, mas nunca é resolvida.

Bong Joon-ho é um cineasta que gosta de desafiar o espectador. Seus filmes são obras de arte, de reflexão numa roupagem de entretenimento. Ele quebra as barreiras do cinema de autor e do cinema comercial. Para ele, se divertir e pensar são dois lados da mesma moeda. Diretor versátil, ele realizou um dos melhores filmes de serial-killer já feitos, Memórias de um assassino (2003), a comédia familiar cheia de ação com monstros, O hospedeiro (2006), o drama de suspense com uma protagonista idosa, Mother (2009), a violentíssima e afiada distopia em ritmo de videogame, Expresso do Amanhã (2013), e a melancólica aventura juvenil, Okja (2017).

Parasita é uma vigorosa aula sobre luta de classes feita para o grande público. Bong Joon-ho faz seu filme mais maduro por ser o mais paciente em nos envolver em suas ideias. Na maior parte do tempo, prevalece o quase silêncio, a quase imobilidade. A tensão é pontual, mas quando surge, nos desarma por completo.

Na verdade, a grande sacada de Parasita é a quebra de nossas expectativas. Há vários filmes em um só. Comédia, suspense, drama, terror. O diretor alterna a condução da trama entre esses gêneros com extrema habilidade e nunca de forma gratuita, sempre com um propósito claro e eficiente. Fotografia, montagem, trilha sonora, edição de som, design de produção. Tudo funciona com o propósito de acompanharmos, atentos, o cotidiano das duas famílias protagonistas: os Park, ricos, ingênuos e esnobes, e os Kim, pobres, trambiqueiros e afetuosos. A força do roteiro está na maneira ora sutil, ora bem direta, como cada situação leva os personagens a momentos cômicos, dramáticos ou violentos. Além dos diálogos exporem muito bem a personalidade e a origem de cada um, com direito a comentários sociais e reflexões filosóficas.

Parasita (2019) ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Foto: Divulgação

Destaque especial para o elenco. Os atores encarnam personagens cativantes, justamente por serem muito humanos. Não há vilões e mocinhos, e sim gente que tenta manter sua posição social ou superá-la. Song Kang-ho, astro sul-coreano e ator-assinatura do diretor, tem uma performance discreta, contida, mas de grande expressão. Outra “personagem” marcante é a mansão dos Park, onde se passa a maior parte do filme. É um lugar belo, espaçoso, com uma arquitetura arrojada e um jardim harmônico, mas que possui suas zonas sombrias. A mansão se torna palco de todo tipo de emoções, cenário de uma tragicomédia com ares shakespearianos.

Parasita é superior a Coringa, primeiramente, pelo maior domínio técnico do diretor Bong Joon-ho. Ele sabe para onde quer levar o filme. A fotografia de Parasita é um exemplo disso, cheia de significados relacionados aos temas em questão, em seus enquadramentos de espaços, objetos e pessoas. O diretor sul-coreano também arrisca-se mais ao co-escrever um roteiro com uma estrutura mais complexa e que poderia resultar numa realização desconjuntada. Já Coringa, tem um roteiro problemático e indeciso. Acerta ao mostrar os poderosos como insensíveis, inclusive os Wayne, mas manipula o espectador sem saber exatamente o porquê, numa espécie de piada de mau gosto. Joaquin Phoenix é a força motriz do filme, dominando sozinho a cena.

As personagens femininas de Coringa são praticamente irrelevantes. Ao contrário de Parasita, que conta com um fascinante grupo de personagens, mulheres muito ativas e determinantes para os rumos da trama. Por fim, Coringa levanta dois questionamentos. O perigo de alçar um psicopata como um símbolo de revolta social, um herói, mesmo que involuntário, e a contradição de arrecadar algo próximo de um bilhão de dólares em bilheterias para a elite da vida real que é tão criticada no filme. Parasita também é um sucesso, inclusive financeiro. Mas sua consagração é bem mais modesta e conquistada na unha.

Parasita ganhou a Palma de Ouro em Cannes deste ano com todo o mérito. É um filme que engaja o espectador pela maneira visceral como mostra as contradições do capitalismo que rebaixam o ser humano. O rico suga a força de trabalho e a dignidade do pobre. O pobre procura as brechas do sistema para sugar as migalhas do rico. Parasita mostra que há algo muito errado nisso tudo, nessa mentalidade de ascensão social, nesse círculo vicioso que leva a cobra a morder o próprio rabo.

*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019). 

Foto destacada: Divulgação/Parasita (2019)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *