Violência Doméstica: 1,2 mil casos registrados por ano em Conquista

28 de abril de 2016 Sáthia Vitória

Salvador, a capital baiana, é a 10ª cidade mais perigosa para o sexo feminino no Brasil, de acordo com o Mapa da Violência de 2015. Em Vitória da Conquista, a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) recebe cerca de 1,2 mil ocorrências anualmente.

De acordo com a investigadora da DEAM de Conquista, Rosineide Dias, a maioria das denúncias feitas é por ameaças e lesões corporais, todos enquadrados em casos de violência doméstica. “O número de denúncias tem aumentado nos últimos anos após a sanção da Lei Maria da Penha”, diz ela.

Um desses casos foi vivenciado por Francisca*, moradora do Bairro Nova Cidade. Ela sofreu agressões físicas e psicológicas do marido. O seu limite chegou no dia 1º de maio, há sete anos.

Naquele dia, segundo ela, o marido chegou em casa nervoso, como era comum, após beber cachaça com os amigos ao sair do trabalho. Francisca já havia deixado o jantar do marido pronto e o aguardava. Quando ele chegou, a vítima, aflita em relação ao que vivia e por ver seus três filhos presenciarem o pai alcoolizado com frequência, resolveu reclamar sobre a situação.

O marido, irritado, a empurrou. Ela caiu no chão e, quando menos esperava, sentiu na sua perna uma foice. Daí em diante não viu mais nada: acordou no hospital e ouviu do médico que corria o grave risco de ficar sem parte da perna. O golpe tinha atingido uma veia, o que a fez perder muito sangue. Seus três filhos a socorreram e um deles ficou tão mal por ver a mãe naquela situação que acabou sendo internado junto com ela no hospital.

Francisca não perdeu a perna por sorte. Ganhou oito pontos no corte que a lembra desse terrível episódio até hoje. O marido acabou preso graças a denúncia de um vizinho que escutou a agressão e chamou a Polícia. Apesar de concordar que a prisão era justa, Francisca retirou a queixa por causa dos filhos. Dois deles, o caçula e o do meio, que ficaram um mês sem falar com o pai, queriam que ele continuasse preso. O mais velho, mais apegado ao pai, pagou um advogado para tirá-lo da prisão, onde permaneceu por apenas oito dias. Ao sair, ele pediu perdão à Francisca, aos filhos e aos sogros, e a família tentou se reestruturar daí em diante.

Apesar do sofrimento, ela disse que na época não tinha coragem de ir à Polícia. “Eu tinha medo de denunciar e ele ser preso. Por mim, eu não denunciava não. Eu tinha medo e tinha pena também, porque ele só é assim quando bebe”, disse. Atualmente, já seria diferente: “Hoje eu denunciaria, sem precisar de vizinho. Violência não pode, não podemos ser agredidas. Mulher, criança e idoso, covardia”. Francisca foi empoderada pelo conhecimento sobre os seus direitos, como a Lei Maria da Penha e os serviços prestados pela Delegacia da Mulher.

Mas a história de Francisca não é um caso isolado no bairro onde mora. Ela contou que vizinhas já foram ou ainda são agredidas pelos seus companheiros, e que poucas denunciam. Entre os motivos, o medo ainda persiste. Apesar da quantidade de informações à disposição hoje, é recorrente o silêncio de mulheres que sofrem violência doméstica.

De acordo com o Mapa da Violência de 2015, a violência doméstica no Brasil ainda é majoritariamente física. Dados de atendimentos de mulheres pelo SUS no ano de 2014 revelaram que as agressões físicas eram 48,7% dos atendimentos, com especial incidência nas etapas jovem e adulta da vida da mulher, quando chega a representar perto de 60% do total de atendimentos.

Alavancando os números locais, mais uma vítima de violência contra a mulher foi Joana, que também sofreu com as atitudes do companheiro e por causa disso se viu obrigada a sair permanentemente de Vitória da Conquista. As agressões começaram com xingamentos, que progrediram para as agressões físicas e à desestabilização emocional e psicológica da vítima.

“Desde quando fui morar com ele, recebia xingamentos. Mas o que sempre me incomodou foi o ciúme que era muito. Sempre que a gente saía, ele arrumava confusão com os outros. Como ele era o pai das minhas filhas e eu não tinha emprego na época, não podia sair de casa e nem jogar tudo pro alto e, apesar de tudo, para as meninas, ele sempre foi um bom pai e nunca deixou faltar nada em casa. Até que um dia, fomos para a casa da minha mãe na zona rural e, ao me ver conversar com um antigo amigo, ele me agrediu e me insultou na frente das pessoas. Nunca senti tanta vergonha. Após esse episódio, continuamos juntos, sempre brigando muito, e tudo isso na presença das minhas filhas. Até que um dia, nós brigamos, e ele me bateu muito, bateu tanto que os meus olhos incharam e ficaram roxos. Meu rosto ficou quase irreconhecível. Eu resolvi procurar ajuda. Esperei ele sair cedo para trabalhar e fui até a casa da minha mãe contar tudo que estava acontecendo. Estava muito debilitada e machucada. Fomos primeiro ao Pronto Socorro e depois à Delegacia da Mulher. Ele foi intimado e, na época, fez apenas prestações de serviços comunitários. Eu, depois de ser espancada, nunca mais quis saber dele. Me separei, fui viver a vida em São Paulo, onde recomecei a vida, e hoje sou feliz aqui”, conta.

Há oito anos, Joana sofre as consequências desse relacionamento violento. Não conseguiu encontrar outro companheiro pela dificuldade em confiar novamente em um homem e nem esqueceu as agressões sofridas.

Ambos os relatos confirmam que em briga de marido e mulher é preciso, sim, meter a colher, e não ignorar, como defende o dito popular. Nem sempre a vítima tem coragem denunciar o agressor à Polícia ou tomar outra atitude. No caso de Francisca, o vizinho fez a diferença. Por causa da denúncia dele, o marido teve que deixar a casa onde vivia com a vítima. Pode parecer invasivo, mas uma denúncia, mesmo que anônima, pode salvar uma vida. No caso da Joana, procurar a família foi a alternativa encontrada no momento em que precisou de ajuda. Contar com o apoio dos familiares nessas situações também faz a diferença. Afinal, a ajuda dos familiares pode empoderar a vítima para tomar uma atitude.

De acordo com a investigadora da DEAM, a idade das vítimas varia entre 25 e 35 anos. Quanto à localização das vítimas na geografia da cidade, não há um levantamento sobre os bairros mais violentos. O que se sabe é que a maioria das denúncias é feita por mulheres de baixa renda.

Dois mil processos foram iniciados na Vara da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher logo no início do funcionamento do órgão, desde sua inauguração em Conquista no dia 2 de março de 2015 pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Mil inquéritos são instaurados, por ano, para a apuração de condutas de violência doméstica. Esses processos tratam, exclusivamente, de crimes relacionados à Lei Maria da Penha. A vara conta com um convênio com a Prefeitura local a fim de manter uma equipe multidisciplinar que atua no local, como psicólogos e assistentes sociais cedidos pelo município. Esses profissionais tratam de casos em que as vítimas necessitam de maior assistência, como quando, devido às agressões sofridas, a vítima tem seu emprego e/ou relação com os demais familiares prejudicados.

Assassinatos
Além dos dados assustadores de agressões às mulheres, o Brasil destacou-se em 2015 no Mapa da Violência como o 5º país que mais assassina mulheres no mundo entre os 83 países pesquisados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A taxa nacional de homicídios é de 4,8 crimes em 100 mil, número elevado em relação aos países tidos como desenvolvidos. O Brasil tem 48 vezes mais homicídios femininos que o Reino Unido, 24 vezes mais homicídios femininos que a Irlanda ou a Dinamarca e 16 vezes mais homicídios femininos que o Japão ou a Escócia.

Segundo dados do Balanço Anual de 2013 divulgados pela SPM-PR, veio do Distrito Federal a maior quantidade de ligações para o Disque 180. O segundo lugar ficou com o estado do Pará, seguido pelo Amapá, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Bahia. Em território baiano, a maioria das ligações são recebidas de Salvador (9.702 ligações) e Feira de Santana (2.189 ligações). Mas a situação se agrava mais na medida em que se adentra o interior do estado: municípios de pequeno porte e baixa renda per capita, como Feira da Mata e Cravolândia, têm quantidades de mulheres cada vez menores, em decorrência dos números de assassinatos. São populações femininas 50 vezes mais baixas que a cidade de Camaçari, por exemplo, que ocupa o 16º lugar na quantidade de ligações para o Disque 180 dentro da Bahia.

A realidade da Bahia é preocupante. Ainda segundo o Balanço Anual de 2013, o estado é o segundo mais violento para as mulheres no Brasil e perde apenas para o Espírito Santo. A média de assassinatos na Bahia já ultrapassa 9,8 crimes a cada 100 mil mulheres, um número maior que a média de toda a região Nordeste, que é de 6,9 assassinatos a cada 100 mil mulheres.

*Foram utilizados nomes fictícios a pedido das entrevistadas.

  • Fique por dentro da LEI MARIA DA PENHA 

O que é a Lei Maria da Penha?
Em 7 de agosto de 2006, foi aprovada por unanimidade e assinada pelo então presidente Luís Inácio Lula Da Silva a Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, o principal instrumento legal de punição e coibição da violência doméstica praticada contra as mulheres no Brasil e uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento contra a violência de gênero, segundo a ONU.

E o que é enquadrado pela Lei Maria da Penha?
Poucos sabem, mas a Lei Maria da Penha enquadra, além da violência física, a violência patrimonial, a violência moral, a violência sexual e a violência psicológica como violência doméstica.

⇒ Violência emocional é humilhar, xingar ou debochar publicamente, já a violência psicológica é restringir as crenças de uma mulher, bem como praticar Gaslighting, ou seja, fazer com que ela passe a duvidar da sua memória e sanidade por meio de abusos mentais.

⇒ A violência moral é expor a vida íntima, principalmente como forma de vingança, ou proibir de sair, isolar da família e amigos e invadir a privacidade virtual (e-mails ou redes sociais).

⇒ Tem ainda a violência sexual, que não é apenas o estupro, mas também a prática não consensual de atos sexuais que causem repulsa, como a realização de fetiches ou impedir a mulher de se prevenir contra uma gravidez, bem como força-la a praticar um aborto.

⇒ Outra violência é a patrimonial, que se configura ao destruir pertencer de uma mulher, reter seus documentos ou seu dinheiro.

⇒ Há ainda a violência física, que é o espancamento e qualquer atitude agressiva que machuque o corpo de uma mulher, como o arremessamento de objetos contra ela ou a tentativa de sacudi-la ou aperta-la com força. E tudo isso, é claro, é enquadrado pela Lei Maria da Penha como violência doméstica.

Por que a Lei Maria da Penha é considerada um avanço para a vida das mulheres?
Trata-se de um grande avanço pós-Constituição de 1988 por ser uma lei ambiciosa que procura não apenas punir ações violentas contra mulheres e coibir futuros casos de violência no ambiente doméstico, mas também reeducar os agressores e dar apoio às vítimas e aos membros da família, como os filhos. Além disso, ela tipifica os atos de violência existentes no ambiente doméstico – que extrapolam a violência física – e determina a aplicação de penas aos agressores, reconhecendo como crime qualquer violência intrafamiliar, além de garantir às vítimas e aos seus dependentes total apoio psicológico, com serviços de proteção e assistência social, para onde essas vítimas são encaminhadas logo após a denúncia.

A Lei Maria da Penha também pode ser aplicada para casais de mulheres?
É uma lei bastante abrangente. Sua aplicação não se restringe apenas a casais heterossexuais, mas também para casais de mulheres e transexuais. Nestes casos, o atendimento é igualmente garantido, o que foi recentemente homologado pelo Tribunal da Justiça de São Paulo.

Qual a relação da Lei Maria da Penha com a Lei do Feminicídio?
São duas coisas distintas, mas que possuem uma interdependência. Cada caso é tratado com uma lei diferente. A Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) foi sancionada em março de 2015 e passou a classificar como crime hediondo atos de Feminicídio, incluindo agravantes em determinadas situações, como casos de vulnerabilidade em relação à vítima. No entendimento desta lei, o Feminicídio é qualquer agressão intencional cometida contra uma pessoa do sexo feminino no âmbito familiar que cause lesões ou condições propícias à morte da vítima. No entanto, o menosprezo ou a discriminação à condição de ser mulher são formas de Feminicídio, pois são agressões – ainda que não físicas – à posição de mulher. Apesar disso, ainda não estão englobados nem na Lei do Feminicídio e nem na Lei Maria da Penha.

O Brasil ainda não possui informações estatísticas de inquéritos policiais acerca de crimes deste tipo, mas, em breve, graças à recente aprovação de tipificação deste crime como hediondo, essas informações confiáveis e acessíveis estarão disponíveis ao conhecimento público, principalmente na fase judiciária e criminal, que são base para tais estatísticas. Existem, porém, outras fontes de dados que nos dão uma ideia, em números, de incidência de crimes deste tipo. Por exemplo: segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, foi contabilizado que o Brasil é o 7º país no mundo que mais pratica crimes contra as mulheres, pois a cada 100 mil mulheres, 4,4 são vítimas de Feminicídio. Além disso, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde diz que a cada ano morrem, em média, 5.664 mulheres em decorrência de causas violentas, o que representa 15,52 mortes a cada dia no país.

Casos específicos são tratados na justiça com a Lei do Feminicídio e não são enquadrados na Lei Maria da Penha. Mas é claro que, estatisticamente, é mais uma tipificação de violência contra mulheres. Difere apenas a motivação do crime.

O Disque-denúncia recebe ligações para ambas as Leis?
Sim, pois esse é um serviço para casos de violência ligadas aos gêneros do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, é o principal canal de acesso aos demais serviços que compõem a rede nacional de enfrentamento à violência contra a mulher, cujas bases são a Lei Maria da Penha, e funciona também como um banco de dados ao Governo Federal para a formulação ou aprimoramento de políticas nessa área.

O Ligue 180 ou Central de Atendimento à Mulher é um serviço que funciona desde o ano de 2005 em todo o território nacional brasileiro (e em outros 16 países para mulheres brasileiras), 24 horas por dia, durante todos os dias da semana, incluindo finais de semana e feriados. A ligação é gratuita e o atendimento é feito por 250 mulheres que se revezam. O objetivo deste canal é auxiliar e amparar a população feminina do país sobre os seus direitos e sobre os serviços existentes, além de dar orientações, tirar dúvidas e, é claro, registrar denúncias de forma segura.

O Disque-denúncia tem ajudado no encaminhamento de mulheres para serviços mais especializados?
Desde que foi criado o Disque-denúncia, os números de ligações, tipos de violência registradas, alcance populacional e vidas salvas só aumentam. Entre os anos de 2005 e 2015, os 10 primeiros anos de funcionamento do canal, foram realizados 5 milhões de atendimentos. Desses, 552.748 foram relatos específicos de violência contra a mulher, sendo que a violência física foi a que teve maior destaque.

O montante de informações que alimenta o banco de dados do Governo, nesses dez anos, foi de 1.661.696 denúncias pelo Ligue 180, e o número de encaminhamentos aos outros serviços que integram a Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres chegou a 824.498. Do total de atendimentos do ano de 2015, 39,52% foram somente prestação de informações, principalmente sobre a Lei Maria da Penha. Foram encaminhados para serviços especializados 9,65% desses atendimentos e 40,28% foram encaminhados para outros serviços, tais como 190 (Polícia Militar), 197 (Polícia Civil) e Disque 100 (Secretaria de Direitos Humanos). Entre Janeiro e Outubro de 2015, a quantidade de relatos de violência foi 40,33% maior que a quantidade registrada no mesmo período de 2014.

Foto destacada: Elza Fiúza/Agência Brasil

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