Ser entregador por aplicativo: quando sua vida vale menos do que uma entrega

14 milhões de pessoas prestam serviço para empresas-aplicativos responsáveis pela precarização do trabalho 5 de agosto de 2019 Marcos Gabriel

Thiago de Jesus Dias, entregador por aplicativo, morreu na segunda-feira, dia 8 de julho, após sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC), enquanto fazia uma entrega.  A Rappi foi acionada por uma cliente, porém, não prestou nenhum auxílio, apenas se limitou a dizer que era para ela “dar baixa na viagem para não atrasar as outras entregas”. Segundo os irmãos de Thiago de Jesus, o entregador trabalhava numa média de 12 horas por dia.

Thiago, não é nem mesmo a primeira vitima da precarização do trabalho, precarização esta que se mascara em discursos motivacionais, de independência e empreendedorismo, em Londres um outro brasileiro morreu em Maio deste ano, após ser espancado por assaltantes, quando ele tentava finalizar uma entrega pela Uber. Há ainda outros casos relatados de morte de entregadores durante o trabalho na Argentina e Espanha.

Geralmente, a lógica do trabalho dos entregadores começa bem, com altas demandas e pagamentos acima da média, muito devido ou ao monopólio de alguma empresa na região, ou a ascensão de uma nova empresa que busca angariar fidelidade dos clientes, muito provavelmente através de subsídios na hora do pagamento para o motoboy, fazendo com que a sua disponibilidade como entregador seja sempre frequente.

Eu faço entregas pelas empresas Uber e Rappi em Salvador, na rua não é estranho respostas hiperbólicas dadas quando eu questionava algum entregador acerca de seus ganhos no início de cada aplicativo, “Dava para comprar um avião” foi uma das respostas entre várias outras que obtive. No entanto, tal lógica é insustentável em um país onde o desemprego atinge níveis recordes e grande parte desta massa vislumbra a partir destes aplicativos possuir alguma renda.

Tal movimentação em grande número acaba por gerar uma maior disponibilidade a estes aplicativos, em que fica cada vez mais fácil propor a diminuição dos valores do frete pago e por consequência, diminuição do repasse ao entregador. Se por um lado, a livre concorrência entre os entregadores gera uma diminuição de seu pagamento devido ao aumento de trabalhadores disponíveis, a concorrência entre empresas gera exatamente a mesma coisa, uma moeda viciada que evidentemente não esta a favor dos trabalhadores.

Quando nasce uma nova empresa, esta a priori, tende até mesmo gerar entregas com pagamento levemente melhorado em relação a outras empresas que possam já estar bem estabelecidas no mercado. Provavelmente há um subsídio para que haja estímulo a permanência dos entregadores online em seus aplicativos e assim consigam elevar as chances de entrega em múltiplos locais, porém, uma hora esse subsídio acaba e esta formula de pagamento tende a mudar, tal como recentemente mudou com a Rappi, cujo o valor das entregas não mais possuirá um valor base imutável independente da distância da corrida.

A Uber, por exemplo, desde o ano passado extinguiu a taxa de 20 a 25% cobrada dos motoristas, e adotou o modelo variável calculado pelo tempo e a distância de cada viagem, tanto para os motoristas como para os usuários, praticamente eliminando a estimativa prévia feita pelo aplicativo. A mudança no modelo de cobrança da Uber, tem levado os motoristas a criarem formas de burlarem o sistema para conseguir ganhar mais dinheiro, com o cálculo sendo feito por tempo e quilometragem, os motoristas estão optando por fazer um trajeto maior, que leve mais tempo, evitando trabalhar nos feriados, madrugada e aos domingos.

Alguns, torciam para que a chamada economia de compartilhamento removesse personagens como a empresa de terceirização das relações trabalhistas, para que assim o trabalhador tivesse alguma liberdade ao invés de ser mais um no processo de espólio de sua força de trabalho. Na prática, o que se conseguiu foi a criação de grandes multinacionais como a Uber, que eleva a terceirização a outros níveis, nos quais o trabalhador ganhará em relação a sua produção e aumentando entre os trabalhadores a lógica da concorrência.

Gamificação e legalidade

Para que haja também estímulo as corridas, pode se dizer que não há qualquer aplicativo deste que não proponha ao entregador bonificações variadas, para que ele permaneça mais tempo na rua disposto a fazer entregas, sem garantia alguma que haverá uma demanda e essas entregas serão realmente feitas.

Tal procedimento é chamado de “gameficação”, a aplicação de conceitos de jogos virtuais para a lógica de trabalho, em que o estímulo ao trabalho vem através de desafios e suas bonificações. Em outras palavras, coisas simples como “Faça 4 corridas no período de X e Y hora e ganhe 20 reais”.

A gamificação traz com ela uma série de problemas, que vão desde privacidade de dados até questões legais. Não há qualquer garantia que o algoritmo seja minimamente justo para os entregadores, possibilitando que eles consigam atingir a meta proposta, fazendo com que se esteja sempre dependente de uma demanda necessariamente muito alta para que não haja saída ao aplicativo, a não ser lhe direcionar uma corrida. Em miúdos é muito comum ouvir entre os entregadores, que quando faltam apenas uma corrida para ganhar uma bonificação, o aplicativo simplesmente deixa de lhe propor corridas a serem feitas.

E com o caráter closed-source destes aplicativos, as empresas tem total privacidade sobre como eles colocam para funcionar tais algoritmos, ao seu bel prazer, sem que precise justificar ao entregador e nem ao Estado o seu funcionamento. Legalmente falando, todo método de bonificação é necessariamente ILEGAL, segundo a LEI Nº 12.436:

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º É vedado às empresas e pessoas físicas empregadoras ou tomadoras de serviços prestados por motociclistas estabelecer práticas que estimulem o aumento de velocidade, tais como:

I – oferecer prêmios por cumprimento de metas por números de entregas ou prestação de serviço;

II – prometer dispensa de pagamento ao consumidor, no caso de fornecimento de produto ou prestação de serviço fora do prazo ofertado para a sua entrega ou realização;

III – estabelecer competição entre motociclistas, com o objetivo de elevar o número de entregas ou de prestação de serviço.

Art. 2º Pela infração de qualquer dispositivo desta Lei, ao empregador ou ao tomador de serviço será imposta a multa de R$ 300,00 (trezentos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais).

Parágrafo único. A penalidade será sempre aplicada no grau máximo:

I – se ficar apurado o emprego de artifício ou simulação para fraudar a aplicação dos dispositivos desta Lei;

II – nos casos de reincidência.

Essa lei foi feita na época pelo então senador Marcelo Crivella, hoje, prefeito do Rio de Janeiro, visando a diminuição dos riscos da profissão, uma vez que era comum infrações de trânsito variadas e aumento de velocidade, originadas por estes estímulos ao motoboy e a indução de competitividade entre os trabalhadores.

Privacidade

Qualquer dado a respeito de chats com suporte (por exemplo) são vedados o acesso pelo motoboy, eu já tive uma experiência na qual eu queria ter acesso a todos os registros de atividades, conversas com os clientes e suporte, e a Rappi se negou a disponibilizar qualquer arquivo com tal conteúdo, me impedindo além de ter acesso a algo de minha autoria (conversas e etc), me impede também de ter como comprovar qualquer equivoco ou ilegalidade cometida pela empresa ou cliente. Como consequência, se houver algum problema relacionado ao pedido, você pode ter sim sua conta suspensa sem que tenha possibilidade de defesa em relação a qualquer crítica feita por parte do cliente.

Saúde

Não há em qualquer momento da hora da “contratação” algum tipo de verificação acerca da saúde do trabalhador, se você possui moto, a única coisa que você precisa mostrar são seus documentos como RG, CPF e carteira de motorista, já para “bikers”, apenas RG e CPF. Na prática, este método “empregatício” rápido, quando combinado principalmente com os fatores da gamificação do trabalho, pode gerar tragédias como as que matou o ciclista Thiago, citado no início deste texto.

Quando Thiago sofreu o AVC, a temperatura de São Paulo já estava muito baixa, quando as ruas se mostram hostis para o trabalho é comum a diminuição de entregadores nas ruas, o que pode gerar bonificações para um estímulo maior aqueles que decidiram não sair em clima adverso, ou elevar as chances de permanência daqueles que escolheram trabalhar em tais condições.

Independente de qualquer taxa adicional de entrega ser ou não compatível com a periculosidade  do trabalho em tais condições, sabe-se que cada individuo possui necessidades diferentes e condições físicas diferentes, segundo o Instituto Nacional de Cardiologia, no frio, a cada 10°C que caem, aumentam as chances de AVC em 7%, principalmente se houver uma queda abaixo dos 14°C, no inverno, ainda segundo o instituto, o número de AVC’s sobem em até 20% se comparado a outras estações do ano. Lembrando que as ruas de São Paulo atualmente, volta e meia ficam com temperaturas abaixo dos 10°C. O que nos leva a pensar que a morte de Thiago, não somente foi fruto do descaso estatal e empresarial, como também previsível.

A ilusão da Liberdade

Um dos pontos levantados em defesa a estas empresas é a liberdade dada ao trabalhador, uma liberdade que está sempre a dispor da lógica de oferta e demanda, logo, não há qualquer liberdade fora dessa lógica. Sendo assim, o entregador necessariamente ficará preso a fatores culturais e socioeconômicos da cidade onde se trabalha. Se sua cidade não possuir cultura de consumir qualquer coisa pelo período da manhã através destes aplicativos, seu trabalho ficará restrito necessariamente aos horários de pico, que geralmente são entre 11 e 15 horas e depois das 19 até as 22. E claro, nos bairros em que existe esta demanda, geralmente bairros onde o poder de consumo é maior, em que o gasto com o frete é recompensador e a localidade é considerada mais segura.

Portanto, a chamada liberdade de trabalho fica restrita a horários específicos muitas vezes, e a bairros igualmente restritos, fazendo com que muitos trabalhadores tenham que sair de bairros distantes para trabalhar, quando não, de outras cidades, como foi o caso de um rapaz que eu conheci, que vinha pedalando da cidade Lauro de Freitas (Região Metropolitana de Salvador) para trabalhar na Pituba e adjacências.

Outro fator é que se por um lado você não é empregado, por outro você é submetido não somente a empresa do aplicativo como também a empresa que usa o aplicativo como intermédio. Usando como exemplo pessoal, já foi negado a mim, a entrega de um pedido originado no restaurante “Rei do Pirão”, situado ao bairro da Boca do Rio, por eu “não estar nos trajes” que o estabelecimento exigia que eu estivesse, que no caso seria camisa de manga, calça e sapato fechado. Só lembrando que faço entregas no sol de meio dia, subindo ladeira e de bike, em que a minha produtividade depende única e exclusivamente da força física, tal traje não é pedido por qualquer outro estabelecimento, foi apenas pedido neste, mesmo comigo explicando que estava a andar de bicicleta e que por isso, não seria interessante andar com calça e camisa fechada naquele horário em Salvador.

O pedido além de não ter sido liberado para que eu fizesse entrega, em nenhum momento foi cogitado o pagamento do trajeto que eu tive que fazer inutilmente até o estabelecimento, como também foi setado na minha conta uma dívida no valor do pedido, que foi removida somente quando eu fui até a sede do aplicativo (Rappi) explicar o ocorrido. E não, não falam em pagamento de qualquer valor referente ao transporte feito até a base da Rappi para se remover a dívida.

Como na prática não há qualquer garantia que você seja atendido em tempo hábil, caso você não seja estudante há também a possibilidade então de pagar 8 reais somente devido o transporte gasto para ir remover a divida (ida e volta de ônibus), se contarmos com o pedido que você não fez, poderíamos adicionar a taxa de 5,40 pelo pedido não feito, quando te removem do pedido (que foi o caso).

Não é incomum você também permanecer bloqueado por 15, 30 ou 60 minutos (ou até mais a depender da demanda pelo o que entendo) de receber pedidos, ou seja, por não seguir a conduta de um único estabelecimento que você não possui vínculo empregatício algum, há a possibilidade de você gastar no mínimo R$7,40 reais até R$18 reais (ou mais) para que você não pague uma dívida, que no meu caso era acima de R$50. Ou seja, você entra no aplicativo sob a promessa de não possuir patrões, quando na verdade você poderá possuir todos eles. É a terceirização dos riscos do empreendedor, indo direto para as costas do trabalhador, que para este, ficará a responsabilidade de tomar rédea de todos os riscos, sejam relacionados a sua própria saúde, segurança e vida financeira.

O que aconteceu com Thiago, não foi somente previsível como foi na prática apenas a continuação da violência ocorrida contra ele enquanto trabalhador, que trabalhava sob as regras aqui descritas por até mesmo 12 horas por dia, cujo o ápice foi a sua morte. O modelo atual de espólio da classe trabalhadora, é como um penhasco onde o trabalhador cai, não encontrando fim, na qual sua posição enquanto trabalhador foi terceirizada a tal ponto, que ele não é mais o chicoteado pelo patrão, mas agora se encontra em uma posição dúbia: a de boi e capataz de sua própria biga.

Foto destacada: Pexels

Charge: André Dahmer

Marcos Gabriel é estudante do bacharelado interdisciplinar em Humanidades pela (ainda não extinta) UFBA, faz entregas como Biker pela Rappi e Uber eats para pagar as despesas com ensino.

Uma resposta para “Ser entregador por aplicativo: quando sua vida vale menos do que uma entrega”

  1. Ketia disse:

    Consciente reflexão sobre a condição subhumana a que os trabalhadores estão sendo submetidos. O pior é saber que trabalhadores, desprovidos de uma consciência crítica sobre o que está acontecendo, aplaudam as mudanças da legislação trabalhista.

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