A vida dos artesãos de rua e a polêmica da Praça 9 de Novembro

9 de junho de 2017 Débora Lisboa

Viajantes, artesãos, trabalhadores ou, como gostam de serem chamados, os “malucos de estrada”. Eles não se consideram “hippies”, apesar de serem identificados dessa forma pela população. Esse é o perfil dos artistas de rua que passam por Vitória da Conquista e ocupam a Praça 9 de Novembro, o local escolhido por eles para venderem os produtos que fabricam, bijuterias e artigos alternativos que garantem uma renda para sobreviverem durante a passagem pela cidade.

No último mês de maio, eles foram envolvidos em uma polêmica com a Prefeitura de Conquista e a CDL (Câmara de Dirigentes Lojistas) que pediram a desocupação da praça. De acordo com a assessora de Comunicação da CDL, Analice Vieira, havia queixas de lojistas que têm comércio no local e que alegavam estarem incomodados com a presença dos artesãos na praça.

Após os artistas de rua serem retirados da praça pela Polícia Militar a pedido da Prefeitura, em 11 maio, eles retornaram dois dias depois para o mesmo lugar.  A partir daí, uma comissão foi formada por vereadores, representantes da Prefeitura, do Ministério Público, da CDL, da PM e dos trabalhadores da arte para encontrarem uma solução para o problema. A primeira reunião foi em 26 de maio e saiu uma proposta de que eles permaneçam no local até a definição de diferentes pontos da cidade em que possam trabalhar. Foi decidido também que a Secretaria de Serviços Públicos teria um prazo de 90 dias para publicar uma normativa sobre esses espaços a serem disponibilizados. Já a nota entregue pela Prefeitura de pedido de desocupação, foi suspensa.

Mas a relação entre os envolvidos ainda é controversa. Comerciantes acusaram os viajantes de uso de drogas na praça.  “Sobre os hippies (sic), tem sido observado o uso frequente de bebidas alcoólicas/drogas e recorrentes discussões entre os componentes do movimento, além do uso de palavras de baixo calão, perturbação aos consumidores e público que transitam pelo percurso”, divulgou Analice. E a Prefeitura concordou com as alegações. Além disso, ambos chamam os artesãos de “hippies” mesmo eles rejeitando esse rótulo.  “Pra vocês verem a falta de informação deles. Nós não somos hippies, somos artistas de rua, até isso é falha deles”, diz Breno Quaresma.

Apesar dos acontecimentos terem gerado constrangimento e insegurança para os artesãos em Conquista, também despertou interesse pelas histórias de vida deles, que, em meio a arte alternativa que vendem, é carregada de curiosidade, aventura e desapego aos padrões convencionais. Não há um registro de quantos deles vivem e trabalham pela cidade, mas eles já fazem parte do cenário urbano conquistense.

Leandro Barreto é um desses artesãos. Natural de Ilhéus, litoral sul da Bahia, 31 anos, separado, pai de dois filhos, ele vive da arte em Conquista. Consegue tirar de 500 e 600 reais por mês e, desse valor, 400,00 reais vai para a pensão dos filhos: “Eu tenho compromisso com meus filhos. Com essa média que tenho conseguido aqui, sobra pra mim de 100 a 200 reais, depende muito de como estão às vendas”. Sem moradia fixa, ele afirma que quando acaba o horário estabelecido para trabalho, 18h, se retira da praça para procurar onde dormir.  “À noite, eu rodo por aí procurando um canto, não fico aqui na praça, aqui é só meu local de trabalho, e também não fico em qualquer lugar, observo antes o canto e percebo se posso ou não dormir ali. Quando sobra um dinheiro, procuro um pensionato, uma pousadinha mais barata, que consigo pagar”.

Leandro se denomina “viajante” e se mostra indignado com toda a situação provocada pela CDL e Prefeitura. “Eles contam uma história de que bagunçamos na praça. Isso é mentira. É verdade sim que vem uma galera pra cá a tardezinha e devem ficar pra noite, ficam namorando nos bancos, mas é gente da cidade mesmo. O que também é normal, desde meu avô os casais já iam pra praças namorar, mas sempre com respeito, claro”. Segundo ele: “A Praça como é grande, além dos casais, vem também jovens que ficam pelos cantos menos vistos. Mais escondidos, e são da cidade também. É com eles que deveriam se preocupar”. Ele diz que não ficará em Conquista por muito tempo, mas defende que a praça não seja desocupada: “Isso é história. Não somos os primeiros a expor nosso trabalho aqui. É coisa de muito tempo. Em todas as grandes cidades acontece isso, e é normal. Não estamos atrapalhando ninguém”, aponta.

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O artesão Leandro Barreto expondo seu trabalho na Praça 9 de Novembro. Foto: Rhaic Piancó

Outro artista de rua é Breno Quaresma, 22 anos, roraimense, que já passou por diversas cidades brasileiras mostrando seu trabalho antes de chegar aqui. Há cinco meses, ele escolheu viver dessa maneira e quando chegou à cidade a notificação tinha sido entregue há dois dias pela Prefeitura. Ele era estudante universitário, com o sonho de poder conhecer o maior número de lugares possível: “Eu tive uma adolescência normal, estudei em escola pública, era aluno regular. Fui aprovado no programa de bolsas do governo, Prouni, e entrei pra uma universidade particular. Cursava Engenharia de Minas e fiz até o quarto período. Mas eu me vi numa situação que eu me senti sufocado pela rotina, pela vida que eu estava levando e a que eu iria levar depois. Aquela responsabilidade… Eu não iria me sentir vivo ali”.

Breno viaja acompanhado de sua namorada, Marília Veloso, 20 anos, nascida em Brasília, mas criada no estado de Tocantins. Ela também estudou, tem o Ensino Médio completo e fez cursos como o de auxiliar administrativo etc. Juntos há um ano e cinco meses, compartilham dos mesmos objetivos e se assumem felizes com a escolha que fizeram. “Nosso objetivo é conhecer o máximo de estados brasileiros, então esse meio faz com que isso facilite mais. A gente tava em Tocantins, veio pra Bahia facilmente, daqui vamos seguir viagem. Então, foi uma forma de conhecer os lugares trabalhando. A gente absorve conhecimento diferente e vai passando também nosso conhecimento, e a gente vai evoluindo dessa forma”, pontua Marília.

Marília e Breno expondo seus trabalhos artesanais e tocando na Praça 9 de Novembro. VÍDEO: Rhaic Piancó

 

Além da habilidade em fazer produtos artesanais, o casal também trabalha com música. No período diurno vendem artesanato, brincos, colares, bolsas na Praça Nove de Novembro, e durante a noite, eles trabalham nos bares da cidade, onde tocam carron, violão e cantam. “Dessa forma, nós somos nossos próprios patrões, nós fazemos nossos horários. E a gente tem que ter consciência de que precisamos ter a grana pra dormir, pra comer, enfim, pra viver”, afirma Breno.

Deixar o conforto de casa, do elo presencial com a família para seguir viagem pelo mundo não é algo comum, e que preocupa os familiares de quem faz essa opção, como conta Marília: “Tem sempre a questão da preocupação, porque a gente é artista de rua, mas a gente procura se comunicar o máximo possível, fazer ligações, pela internet, dizer que comemos e que estamos dormindo bem. Procuramos nos comunicar o máximo possível, na tentativa de não gerar essa preocupação toda”.

O trabalho com a música e o artesanato é o que gera a renda do casal, garante a alimentação e custos próprios no geral, incluindo a estadia. Em Conquista, eles estão hospedados em uma pousada, da Dona Jane. O pagamento acontece por meio de diária, no valor de 20,00 reais por pessoa. Esse valor foi estabelecido flexivelmente para os artistas de rua, conforme relatou Breno, e não incluso alimentação. A indicação da pousada foi feita por outro artesão que já havia se hospedado no endereço.

O casal, que não presenciou a ação dos policiais para a retirada dos demais artesãos da praça, relata que no dia seguinte quando chegaram na cidade, foram à praça observar toda a situação: “Quando a gente chegou, o pessoal já estava em resistência, nos avisaram que não podia expor (o trabalho). Aí no dia seguinte, a gente não expôs, não abrimos o pano. A gente só veio pra cá mesmo, ficamos aqui esperando, observando e não rolou nada. Então a gente conversou e decidimos ficar aqui”, esclarece Breno e Marília finaliza: “Por que é direito nosso. Isso é uma tradição e o povo tá a favor da gente. É patrimônio mundial, em todo lugar existe artista de rua, não tem sentido querer tirar isso daqui da praça”.

O trabalho realizado na rua é sinônimo de coragem. As pessoas estão lá pelos mais variados motivos, há os que estão nas ruas por opção, como o casal relatou a experiência própria, e também aqueles que estão por extrema necessidade, e Marília e Breno afirmam ter consciência disso.

Ricardo Morais da Silva, 39 anos, está em Conquista há dois meses, e conta que existem três cadernos, dois fixos na praça e um circulando pela cidade, nos quais são coletadas assinaturas da população que se mobiliza a favor da permanência dos trabalhadores na praça. Já existem cerca de duas mil assinaturas, mas ele reforça: “Não estamos preocupados com números, a gente só quer que entendam que tem um clamor público, uma população que nos enxerga com bons olhos e não é favorável à nossa retirada. São vários coletivos que nos apoiam, porque na verdade é uma afronta aos direitos do cidadão como um todo, é o direito de ir e vir que está sendo afrontado”.

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Ricardo Moraes da Silva. Um dos artesãos da Praça 9 de Novembro. Foto/Reprodução: Web

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Caderno com assinaturas da população em apoio aos artesão da Praça 9 de Novembro. Foto: Rhaic Piancó

Manifestações políticas de motivação e resistência aos artesãos da Praça 9 de Novembro. Foto: Rhaic Piancó

Manifestações políticas de motivação e resistência aos artesãos da Praça 9 de Novembro. Foto: Rhaic Piancó

Geração de renda

Além venderem produtos para sobreviverem, os artesãos também contribuem para a economia da cidade. A “Pousada da Dona Jane” é a preferida deles. Com 64 anos e há 30 no ramo de hospedagem, Janemeire Dias, hospeda os artistas de rua. “Eu recebo viajantes, pessoas que vêm de fora conhecer a cidade, representantes, pessoas de Conquista que por algum motivo saem de casa, e eles, os artesãos. Desde que estou aqui, sempre os recebi. Alguns ficam por meses, outros, como já sabem que os recebo me procuram quando está frio, chovendo e que não podem ficar nas ruas. Faço um valor mais acessível e eles ficam aqui”.

Janimeire Dias (Dona Jane) em sua pousada. Foto: Rhaic Piancó

Janimeire Dias (Dona Jane) em sua pousada. Foto: Rhaic Piancó

Dona Jane afirma ainda que o primeiro artesão que abrigou se chama Jairo, e que hoje já é um idoso: “Por sinal ele não era nem diarista, já era um mensalista. Ele morou anos aqui comigo, cerca de uns três, quatros anos, por aí, ele ficou aqui. Hoje, ele quase não fica nas ruas. Acho que conseguiu se aposentar, conseguiu um auxílio, já tem uma casa que mora e está mais descansado”.

Com relação à retirada dos artesãos da praça, Dona Jane é categórica: “Eu acho um absurdo. Acho uma crueldade. Porque eles são pessoas que vivem daquilo. Com a crise que a gente tá, cada um procura seu jeito de ganhar o pão de cada dia e esse foi o jeito que eles encontraram. Vão tirar eles daí e vão colocar eles onde? Lá na praça de cima? Quem vai ir lá comprar?”.

Segundo Dona Jane, a retirada dos artesãos que trabalham na praça influencia diretamente na renda dela como proprietária de pousada, também no comércio em geral e assim na economia da cidade: “Vou ter um prejuízo, porque a gente já perde de ter mais hóspedes. Eles ficam aqui, uma semana que seja, já é um lucro que tenho, um dinheiro que ajuda em minha renda. Fora que a mercadoria deles, você não acha em loja nenhuma, então. Todo mundo tem direito de trabalhar”. Ela completa expondo: “Eles são de bem. Não mexem em nada dos outros. Às vezes até me avisam: ‘A senhora esqueceu dinheiro em cima de tal lugar’”.

 

NOTA AO AVOADOR

 

A Prefeitura de Vitória da Conquista, por meio da Secretaria de Serviços Públicos, informa que no dia 26 de maio, em audiência realizada no Ministério Público, foi criada uma comissão – reunindo representantes dos artistas de rua, incluindo o advogado desta categoria, da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), Câmara Municipal, Associação Comercial e Industrial de Vitória da Conquista (ACIVIC) e da Prefeitura – para que apresente ao Ministério Público um relatório com os locais escolhidos para alocação dos artesãos e artistas de rua.

Secom

30 de maio de 2017

 

VOCÊ SABIA?

O termo “Hippie” é uma denominação que surgiu por volta dos anos 60 nos Estados Unidos, e era um dos grupos participantes do movimento de Contracultura. A palavra define indivíduos que escolheram viver em comunidades alternativas e que passaram a exercer atividades que fugiam dos padrões tradicionais da família, da religião, do estado e do mercado de trabalho. Muitos negavam o nacionalismo e consideravam o governo, os militares e o setor industrial como uma instituição única e sem legitimidade. Além disso, nessas comunidades hippies havia liberdade dentro dos relacionamentos, onde a relação não era construída por um casal apenas, mas várias pessoas podiam se envolver e relacionar-se em conjunto. O consumo de substâncias psicotrópicas era cotidiano, tendo como intuito, elevar a consciência em busca de experiências transcendentais. Na época, chegaram a existir mais de duas mil comunidades nos Estados Unidos. Atualmente, poucas experiências comunitárias pelo mundo se mantêm, mas os ideais de liberdade permanecem.

Foto destacada: Rhaic Piancó/Site Avoador.

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