Covid-19 e o dilema do tratamento precoce no Brasil

Na contramão do mundo, Bolsonaro assumiu uma postura negacionista no combate à covid-19 ao minimizar os riscos da doença, estimular aglomerações, desprezar as medidas de contenção da infecção e fomentar uso de medicamentos sem eficácia comprovada 4 de março de 2021 Raphael F. Queiroz

No final de dezembro de 2019, as autoridades de saúde da China reportaram diversos casos de uma síndrome respiratória aguda, de origem ainda desconhecida, em moradores de Wuhan, na província de Hubei. Em seguida, cientistas chineses identificaram o agente etiológico como um novo coronavírus, denominado de SARS-CoV-2, e a doença foi referida como doença do coronavírus de 2019 (covid-19, do inglês, coronavirus disease 2019).

O surto inicial em Wuhan se espalhou rapidamente, atingindo outras regiões da China, seguido de outros países do globo, o que chamou a atenção da comunidade internacional em geral. Como consequência, a Organização Mundial de Saúde (OMS, do inglês, World Health Organization) declarou a covid-19 como pandemia em 11 de março de 2020. Desde então, quase 115 milhões de pessoas foram infectadas pelo coronavírus em todo mundo, sendo que desses, 2,6 milhões vieram a óbito.

No Brasil, há pouco mais de um ano da identificação do primeiro caso no país, 10,7 milhões de brasileiros foram infectados pelo coronavírus e mais de 260 mil pessoas morreram em decorrência da doença. Na última semana, 1.331 vidas em média por dia no país foram ceifadas pela covid-19, sendo que em 3 de março de 2021 foi registrado 1.910 óbitos – maior número desde o início da pandemia – o que coloca o Brasil mais uma vez no epicentro da doença. Importante ressaltar que esses números podem ser ainda maiores devido à escassez de kits para testagem em massa da população, à subnotificação pelas secretarias de saúde, à ocorrência de resultados laboratoriais falso-negativos e à presença de portadores assintomáticos.

Com a gravidade da pandemia, a comunidade científica dedicou esforços e recursos na busca de uma resposta rápida contra o novo coronavírus. Na corrida para o desenvolvimento de vacinas, existem atualmente 71 vacinas sob estudo clínico, 20 estão em estágios mais avançados em testes com humanos (fase 3), e seis foram aprovadas como imunizantes contra o vírus. No Brasil, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou emergencialmente, em meados de janeiro deste ano, duas dessas vacinas: Coronavac, da parceria China e Brasil, e ChAdOx1 nCoV-19, fruto da colaboração Reino Unido, Astrazeneca e Brasil.

No que diz respeito ao tratamento da covid-19, centenas de moléculas tem sido investigadas e, infelizmente, nenhuma delas ainda se mostrou eficaz e segura em reduzir a infectividade do coronavírus, com exceção dos glicocorticoides, que diminuíram a mortalidade de pacientes graves com covid-19. Dentre essas moléculas, a hidroxicloroquina (HQ) foi a que mais chamou atenção, especialmente em função dos pronunciamentos do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e do Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, conclamando a população ao uso da HQ como profilaxia e tratamento de rotina dos doentes. A Anvisa, a FDA (do inglês, Food and Drug Administration; reguladora norte-americana equivalente à Anvisa brasileira), a OMS e inúmeras entidades científicas e médicas nacionais e internacionais refutaram a existência do chamado “tratamento precoce” contra a doença, embasados pelos trabalhos científicos publicados até então.

Enquanto isso, o presidente do Brasil ainda insiste em defender o tratamento preventivo da doença com HQ associada a outros dois medicamentos, azitromicina e ivermectina, igualmente ineficazes. A polarização criada pelo governo e apoiadores do uso da HQ no tratamento da covid-19 e a divulgação de inúmeras fake news nas redes sociais têm sido motivo de confusão na população e dividido equipes médicas no país.

A temática é ainda tão recorrente que em 1º de março de 2021 o jornal O Globo noticiou uma Diretriz publicada por especialistas da OMS na renomada revista médica britânica The BMJ, na qual enfaticamente não recomendam o uso da HQ na prevenção ou tratamento da covid-19, e que estudos envolvendo o medicamento não sejam mais prioridade. Os especialistas da OMS se basearam em uma metanálise de seis ensaios clínicos randomizados englobando mais de 6.000 indivíduos com e sem exposição conhecida à covid-19, cuja eficácia do uso com HQ foi mínima ou inexistente, mas os efeitos adversos foram estatisticamente importantes.

Em 12 de fevereiro de 2021, o banco de dados da Cochrane, uma rede global independente e reconhecida internacionalmente pelos trabalhos de alta qualidade sobre efetividade em cuidados de saúde, publicou outra metanálise de 12 ensaios clínicos randomizados, totalizando 8.569 participantes, que também concluiu que a HQ não reduziu a taxa infecção pelo novo coronavírus e tampouco alterou o curso doença, embora os efeitos colaterais tivessem sido mais evidentes que do grupo que recebeu placebo.

Importante destacar que a metanálise é um método estatístico utilizado em revisões sistemáticas que agrega resultados de dois ou mais estudos independentes, sobre uma mesma questão, sendo considerada a melhor forma de evidência para tomada de decisão, ocupando o topo da pirâmide de impacto científico na área da saúde.

Assim, na contramão do mundo, o governo do Brasil implementou desde o início uma postura negacionista no combate à covid-19 ao minimizar os riscos da doença, estimular aglomerações, desprezar as medidas de contenção da infecção, fomentar uso de medicamentos sem eficácia comprovada, dificultar a compra de vacinas e insumos e desacreditar os imunizantes produzidos em solo nacional em colaboração com a China. Bolsonaro tem potencializado com tudo isso a acentuação da polarização política e ideológica. Infelizmente, as medidas tomadas pelo governo colocam o Brasil no último lugar para vacinação e em um momento crítico da covid-19 no mundo, no qual a transmissão e as mortes seguem em crescimento, além da notificação de casos de reinfecção e do surgimento de novas cepas do vírus possivelmente mais resistentes às atuais vacinas.

Foto: Ilustrativa/Reprodução

*Raphael F. Queiroz é professor titular de Farmacologia e Bioquímica no curso de Medicina da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; Coordenador e orientador em Programa de Pós-graduação nível de Mestrado e Doutorado; Pós-doutor em Biologia Vascular – VCCRI (Austrália); Doutor em Bioquímica – USP (SP); Farmacêutico-Bioquímico – UNIFAL (MG)

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