Drogas: a luta dos dependentes químicos para vencer o vício

As drogas são um problema de saúde pública presente na vida de 246 milhões de pessoas no mundo, segundo relatório da UNODC 2 de maio de 2016 A.J. Oliveira, Bruno Morais, Caio Amorim, Fernanda Costa, Joslei Sandro Mathias, Nayla Gusmão, Patrícia Fernandes e Ronny Brayner

O contato inicial com as drogas quase sempre é inocente. Bruno Andrade fumou maconha pela primeira vez aos 12 anos, “para ficar com uma menina”. A partir daí, ele não parou mais. O passo seguinte foi cheirar cola com os amigos do seu bairro. Era o “presente” que os meninos ganhavam do pai, por ajudar a buscar água num chafariz.

Cheirar cola também virou rotina para Bruno. Depois disso, ele conheceu o mesclado, mistura de crack e maconha, e o seu contato com as drogas mudou de nível: ele se tornou um dependente químico. Um problema que iria carregar até agora, com 31 anos.

As drogas são um problema de saúde pública presente na vida de 246 milhões de pessoas no mundo, segundo relatório da UNODC (Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime) publicado em 2015. Destes, apenas pouco mais de 10% são classificados como usuários que tenham algum problema, seja ele de saúde ou social. As condições que influenciam o vício são, além de sociais, biológicas.

“A dependência química é um transtorno que tem a ver com características genéticas”, explica Lisandra Chagas, psiquiatra e professora do curso de Medicina da Uesb. “Como tal, algumas pessoas já nascem com predisposição e outras não. Dessa forma, algumas vão fazer uso de álcool e outras substâncias de forma recreativa e passageira sem danos à sua vida. Mas infelizmente isso não ocorre com todos. A grande questão é que ninguém nasce com uma marca que determina essa predisposição. Isso ainda é desconhecido. Assim sendo, toda experimentação e uso de substância é sempre uma ‘roleta russa’, um risco”.

Devido a certas características do cérebro adolescente, o risco é ainda maior quando o contato com a droga é mais precoce – como costuma ocorrer em boa parte dos casos. Com Paulo*, a história começou realmente cedo: seus problemas vieram com o álcool, substância de fácil acesso, e nem sempre encarada como uma droga. O pontapé inicial foi dado quando ele tinha apenas sete anos. “Lembro que minha mãe fazia aqueles licores, e aí eu comecei a beber por ser algo doce”, relembra.

Com o passar dos anos, o álcool ganhou mais importância na vida de Paulo. No começo, ele bebia apenas em festas e encontros com amigos, mas isso deixou de ser suficiente. De uma partida de futebol à chegada do fim de semana, tudo era motivo para beber mais. “E assim foi, até que o álcool começou a não fazer mais efeito”, diz Paulo.

O cinegrafista Lucas Chaves viveu 15 anos de perdas causadas pelo vício em entorpecentes. Ele começou na adolescência, experimentando lança-perfume. “Existem pessoas que fazem uso de drogas e conseguem parar, existem pessoas que continuam usando e têm uma vida social normal”, observa. “Já eu tive uma predisposição a fazer o uso e não conseguir parar por conta própria, não conseguir controlar minha vida”.

Lucas passou por três internações em comunidades terapêuticas. A primeira, motivada pelo nascimento do seu filho, acabou depois de quatro dos sete meses previstos, já que ele não se deu bem com o teor religioso do tratamento. A segunda vez foi ainda menos eficaz: Lucas só foi para o centro de recuperação por pressão dos familiares, e acabou não ficando mais que dois meses.

Mais recentemente, os problemas causados pela dependência química trouxeram uma terceira tentativa – agora, movida pela vontade de mudar. Assim, ele finalmente conseguiu completar os nove meses de tratamento na Cotefave, Comunidade Terapêutica Fazenda Vida e Esperança. “Eu aprendi a lidar com a minha personalidade, a saber me colocar no lugar do próximo, a poder ter um pouco de respeito comigo mesmo”, conta.

A saída mais comum para quem quer abandonar a dependência química costuma estar nos centros de recuperação. Mas, como mostra o caso de Lucas, “querer” é uma palavra-chave aqui. “O mais difícil é fazer alguém entender que precisa fazer a coisa certa”, avalia Ricardo Alves, coordenador de um dos projetos do Creame, Centro de Recuperação e Amparo ao Menor. “Alguns chegam aqui em um dia e vão embora no outro porque não se adaptam. Têm pessoas que passaram por 20 clínicas e não concluíram um tratamento”.

Bruno Andrade decidiu ir para o centro de recuperação pela primeira vez ainda na adolescência, quando uma menina por quem era apaixonado disse que só lhe daria uma chance se ele abandonasse o vício. “Mas eu fui pelos motivos errados, fui para que ela gostasse de mim e ficasse comigo”, reconhece. “Quando tive um pequeno recesso do centro, num feriado em que pude ficar com a família, cheguei em casa e fui direto ver ela. Eu estava muito apaixonado. Chegando lá, ela já estava com outro cara, e pior ainda, estava grávida dele. Meu céu caiu naquela hora e não voltei mais para o centro”.

Internação compulsória, então, é algo que geralmente tende a trazer resultados desastrosos. “Não podemos generalizar e dizer que ela (a internação compulsória) não funcione em caso algum”, explica a psiquiatra. “Há talvez uma possibilidade de sucesso em casos de adolescentes ou de indivíduos que tenham sua capacidade de julgamento por vezes prejudicada, ou mesmo perdida, pelo consumo de substâncias. Mas se já é difícil o tratamento quando alguém decide que quer se tratar, imagine isso sendo algo forçado sem uma decisão expressa”.

Davi Alves, pastor e dono de um centro de recuperação em Minas Gerais, lembra uma curiosa ligação que recebeu certa vez. “Era um rapaz perguntando qual é o processo de internação involuntária, pois a família dele estava desesperada porque descobriu que o irmão mais velho dele estava fumando maconha”, conta. “Então eu falei: (…) ‘se vocês fizerem isso ele certamente vai odiar vocês pelo resto da vida e nunca mais vai querer se aproximar de vocês’”.

O vício de Paulo, que começou por meio do álcool, o levou a uma situação desesperadora. “Eu cheguei a um ponto em que me vi sozinho”, relata. “Eu olhei para os quatro cantos e não tinha amigos, não tinha o apoio da minha família. A minha família não falava mais comigo e eu me sentia muito sozinho”. Foi então que ele reconheceu que estava doente e precisava de ajuda, e nesse momento os parentes voltaram a apoiá-lo.

“Quando alguém entra para o submundo das drogas ou se torna um dependente químico, uma das primeiras perdas é a do apoio da família”, explica Davi Alves. “Esse afastamento faz com que ele piore mais ainda o seu quadro de adoecimento. Então quando ele decide se tratar, compartilha isso com a família e ela abraça o tratamento, esse é o segundo medicamento que ele toma. O primeiro é a sua atitude de querer mudar”.

Os familiares também precisam saber lidar com o problema da dependência quando ele ainda está no seu início. “Quando a família descobre que o filho está com dependência química, é como se o mundo tivesse acabado”, diz Alves. “E muitas vezes essa forma de ‘chegar para’ o filho já faz com que ele desista de se tratar e imagine que está sendo visto de uma forma diferente”.

A comunidade terapêutica de Alves, em Minas, procura não utilizar remédios. O foco está na conscientização, trabalhada nos três primeiros meses dos nove que compõem o tratamento. O Creame, aqui em Conquista, parece funcionar de forma semelhante: “A abstinência no início do tratamento começa forçada, mas depois eles sentem prazer em estar em abstinência, porque começam a perceber os ganhos de estar sem usar as drogas”, explica Roseli Cajayba, psicóloga da instituição. “As atividades desenvolvidas são sempre voltadas à mudança de comportamento deles”.

O mais comum é que as comunidades terapêuticas tenham a conscientização como foco, mas a limitação a um tratamento psicológico pode ser perigoso. “Infelizmente essa é nossa realidade”, diz a psiquiatra Lisandra Chagas. “Existem poucos serviços de saúde e clínicas especializadas com atenção médica adequada para essa população. Muitas vezes os pacientes são submetidos a situações de violência física nessas instituições. Sem contar que a síndrome de abstinência de algumas substâncias, como o álcool, pode levar o indivíduo à morte se não houver o suporte médico adequado”.

O Governo Federal oferece tratamento por meio do programa “Crack, é possível vencer”. Um dos seus serviços é o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, o Caps AD. Em Vitória da Conquista, atende 1287 usuários com equipe de suporte 24h, funcionando aos fins de semana e feriados.

Não existe cura para a dependência química. Segundo Chagas, trata-se de um transtorno de ordem crônica, e suas taxas de recuperação são muito semelhantes às de outras doenças do tipo, girando em torno de 30%.

Lucas Chaves reconhece que a luta é diária. “Eu tenho que ter uma constância no que diz respeito à manutenção da minha recuperação”, conta. “Ou seja, se eu me afastar da minha manutenção, vai chegar uma hora em que meu psicológico não vai aguentar e minhas vontades vão se sobressair. Não me privo de frequentar lugares que eu frequentava, eu só enxergo esses lugares hoje de forma diferente e com mais receio que antigamente, porque eu me conheço”.

Os dependentes químicos ouvidos nesta matéria hoje se encontram livres do consumo de drogas ou álcool. Uma demonstração de que é possível superar o problema, por mais que seja difícil.

“Há um sentimento impagável no segundo domingo de cada mês, quando as famílias podem vir visitar os residentes, o que muitas vezes coincide com a entrega dos certificados das pessoas que terminaram o tratamento”, conta o presidente do Creame, Josafá Barreto. “E é realmente um momento muito emocionante, acho que só o coração mais duro não conseguiria derramar uma lágrima. Quando você vê uma pessoa dizer que estava na sarjeta e que agora é um novo homem, muito embora ele saiba que o momento de voltar para a sociedade é difícil… nós oferecemos as armas para ele. E também estamos sempre prontos para auxiliá-lo. O nosso pagamento acontece quando os antigos residentes ligam e dizem que está tudo bem”.

*Nome fictício.

Fotos: A.J. Oliveira, Bruno Morais, Caio Amorim, Fernanda Costa, Joslei Sandro Mathias, Nayla Gusmão, Patrícia Fernandes e Ronny Brayner

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *