“A proteção de todos depende de cada um”, Jarbas Barbosa, diretor da OMS

Apesar da devastação provocada por tantas mortes, o médico acredita que a pandemia vai mudar a forma com que os países e as pessoas olham o mundo 27 de maio de 2020 Liseane Morosini

O SUS (Sistema Único de Saúde) é a melhor resposta que o Brasil pode dar à covid-19 em termos de uma política social generosa, de visão includente e promotora de equidade. E é preciso aproveitar esse momento de grande visibilidade da saúde pública para garantir um financiamento adequado. É o que afirma Jarbas Barbosa, diretor adjunto da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), escritório regional para as Américas da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Jarbas Barbosa é pernambucano e, antes da Opas, foi diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de secretário de Vigilância em Saúde e de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégias do Ministério da Saúde. Sanitarista e epidemiologista, ele conversou com Radis por telefone, de Washington, onde vive, e falou sobre a importância do multilateralismo e da garantia do acesso a vacinas, tratamentos e equipamentos a todos os países independentemente do grau de desenvolvimento.

Apesar da devastação provocada por tantas mortes, o médico acredita que a pandemia vai mudar a forma com que os países e as pessoas olham o mundo. Para determinados tipos de doença, como a covid-19, não houve barreira eficaz para impedir a disseminação. “A proteção de todos vai depender diretamente da proteção de cada um. O mundo todo ficará automaticamente vulnerável se um país não tiver condições mínimas com capacidade para detectar e controlar o surgimento de um novo vírus”, disse.

Por que o senhor tem afirmado que o SUS é a melhor resposta que pode ser dada por um sistema de saúde?

O SUS tem todas as dimensões que caracterizam um sistema de saúde moderno. Além de prover a atenção à saúde, o sistema também se responsabiliza por todas as soluções. Eu não tenho dúvida de que o SUS é a melhor resposta que podemos dar em termos de uma política social generosa, de visão includente e promotora de equidade. É um avanço uma criança pobre ter acesso às mesmas vacinas que o filho de uma família rica, ou de todas as pessoas com HIV terem acesso ao antirretroviral independentemente do nível de renda. A pandemia tem revelado aspectos do SUS que as pessoas muitas vezes não se davam conta, como a insuficiência de leitos em determinados locais, problemas que estão muito ligados ao subfinanciamento e à maneira como o sistema se organizou, sem plataformas de compartilhamento regional em que vários municípios podem trabalhar de maneira cooperativa e não concorrencial para ter racionalidade de gastos, por exemplo. Espero que essa visão positiva fortaleça o SUS. E isso significa começar por um financiamento adequado, capaz de permitir que ele exerça plenamente todas as suas atribuições.

Com que desafios os sistemas de saúde são confrontados na pandemia?

Ter um sistema de acesso universal gratuito, como o SUS, é uma grande vantagem para enfrentar uma crise. Mas, ao mesmo tempo, alguns dos problemas estruturais dos sistemas de saúde, inclusive o SUS, aparecem nesse momento. O SUS nunca teve um financiamento adequado para poder cumprir com os preceitos de fornecer atendimento universal, integral, apesar dos grandes avanços em vários programas. Muita coisa importante foi feita nesses anos. Mas quando há uma crise dessa proporção, esses problemas estruturais se revelam. A expectativa de quem trabalha na área de saúde pública é que isso sirva também como uma reflexão para o Brasil e todos os países da América Latina sobre a importância de se fortalecer os sistemas de saúde em todos os seus níveis. A maioria dos países da América Latina tem sistemas fragmentados e os subsistemas geralmente não possuem nenhum tipo de coordenação. Em uma emergência como essa é preciso aumentar o número de leitos de UTI de maneira rápida e muitas vezes não há mecanismos de negociação com o setor privado para ampliar rapidamente os leitos. Creio que cada país vai buscar dentro da sua realidade, da sua conjuntura e legislação, como fazer para fortalecer sistemas de saúde para que se garanta acesso e a cobertura universal da saúde.

Como a falta de financiamento adequado afeta nesse contexto?   

O Sistema Único de Saúde do Brasil tem um subfinanciamento histórico. Esse é um problema. Nós recomendamos, não só para o Brasil, mas para qualquer país da América Latina e Caribe, que busquem pelo menos 6% de gasto público com seus sistema de saúde para atender as demandas atuais da sociedade, como a prevenção e promoção da saúde, no atendimento do quadro social complexo de doenças crônicas não transmissíveis e de doenças transmissíveis, equacionar o impacto dos acidentes e a violência sobre o sistema de saúde. No Brasil, o financiamento público fica perto de 4% para a saúde. O subfinanciamento estrutural do SUS seguramente aparece agora quando alguns estados já têm sua capacidade de UTI em nível crítico e muitos não podem contratar recursos adicionais. Sabemos que todos os países alocaram recursos adicionais, inclusive o Brasil, o que é bom, mas precisamos ainda avaliar se são suficientes ou se será necessário um aporte maior para reforço.

Em relação à covid-19, qual o quadro enfrentado agora pela América Latina?

A cada dia nós estamos descobrindo muitas características do vírus e de como se dá a transmissão. Mas algumas tendências já estão muito evidentes. É preocupante que a América Latina passe por um momento de aceleração da transmissão. Vários países do continente implantaram medidas de distanciamento social de maneira adequada, mas a tendência de crescimento é evidente quando olhamos as curvas desses países nas primeiras semanas de maio. Prevemos que vai ocorrer um crescimento importante no número de casos e mortes em maio e junho se medidas adicionais de distanciamento social não forem implementadas.

A Opas está preocupada com a situação brasileira e a quebra de medidas de isolamento?

O Brasil tem uma grande população e apresenta uma transmissão rápida em áreas urbanas muito importante. Isso é preocupante, mas ele não é o único problema na América do Sul. O Peru tem um número grande de casos, a Argentina tem tido crescimento acelerado e no Equador houve uma explosão de casos em Guaiaquil. Estamos preocupados com todos os países da América Latina e não fazemos avaliação de atitudes de governantes durante uma crise. Isso tem que ser feito depois. Durante a crise, a Opas presta cooperação técnica e apoia os países com recomendações, oferecendo as evidências, mas a decisão é tomada por cada país. Nós já aprendemos a duras penas que nenhum sistema de saúde do mundo, mesmo em países ricos e desenvolvidos, consegue atender a demanda gigantesca por leitos e respiradores que se cria quando se deixa a transmissão natural ocorrer. As evidências mostram que, no mundo inteiro, as medidas de distanciamento social são hoje a única maneira de reduzirmos a velocidade de transmissão e isso é fundamental para salvar vidas. Não há outra.

Não ter uma única recomendação única impacta no controle da doença?

Sim, pode dificultar. Em países federados como o Brasil, México ou Estados Unidos, há divergências entre o governo federal e os governos estaduais e locais. O ideal é ter uma recomendação única, uma boa coordenação entre as várias esferas de governo, porque isso aumenta a confiança da população e facilita a aplicação e a implementação de medidas na sociedade. Favorece também que ações multisetoriais sejam tomadas, com o fortalecimento da rede de proteção social com compensações para reduzir o impacto econômico que a pandemia está causando principalmente sobre as pessoas mais pobres.

Países mais pobres têm mais dificuldades para compra de testes e equipamentos?

A Opas treinou os países da região, inclusive o Brasil, e distribuiu testes para todos eles. Alguns países adotaram estratégias mais agressivas com parcerias público-privada e efetuaram compras no início da pandemia, como o Chile. Mas, fora o Chile, quase todos os países das Américas tiveram dificuldades, até os Estados Unidos. Nós doamos sete milhões de testes em apoio aos países mais frágeis como Haiti, Venezuela, Guatemala, Honduras e outros do Caribe. Por meio do nosso fundo estratégico [mecanismo para auxiliar os países e territórios das Américas a terem acesso a insumos de alta qualidade para a saúde], estamos entregando mais testes. O Brasil pediu dois milhões de testes, que foram entregues, e outros 10 milhões serão comprados. Agora, o Brasil tem capacidade de produção e terá que avaliar o que provocou o desabastecimento de testes, no início de março.

Ampliar a testagem permitiria conhecer o tamanho do problema?

Nenhum país sabe exatamente o número de casos que tem. Acho importante ter testes, mas não para toda a população. Faz sentido testar todos os sintomáticos, os profissionais de saúde, os contatos dos casos confirmados. Não ter testes suficientes para cumprir essa estratégia faz com que haja um menor número de casos registrados do que efetivamente ocorre. Mas, mesmo assim, é importante observar a tendência. Mesmo com essa restrição de testes, não temos dúvida de que o Brasil a partir de maio apresentará uma tendência de aceleração muito rápida no total de casos.

Qual a recomendação da Opas para vencer a guerra contra as informações falsas?

Acho que as autoridades sanitárias de todos os países têm que combater a informação falsa sendo uma fonte confiável para a população e fornecendo informações transparentes sobre o que está ocorrendo. A chamada infodemia, que é a proliferação dessas notícias falsas, vai desde remédios milagrosos a descobertas de características da covid-19 e não apresentam fonte científica. Essas notícias geralmente falam de forma genérica, pedem compartilhamento, citam algum hospital. Há áudios de médicos com depoimentos pessoais e com tratamentos. A OMS fez um acordo com o Facebook, Twitter e o Google para direcionar as buscas sobre corona para fontes seguras. Por isso, algumas notícias em redes sociais são bloqueadas porque divulgam falsidades sobre covid-19. A melhor maneira de combater fake news é divulgar informações baseadas em evidências.

A OMS poderia ter sido mais ágil na detecção e coordenação da resposta da pandemia?

Depois que a pandemia passar, vamos avaliar o processo, o que é previsto pelas regras do Regulamento Sanitário Internacional [RSI], e verificar o que poderia ter sido feito de outra forma até como preparação para uma outra crise de saúde pública. Mas em 30 de janeiro, quando a OMS decretou a emergência de saúde pública de importância internacional, que é o mais alto grau de alerta dentro do RSI, só havia 52 casos de covid-19 fora da Ásia. A organização divulgou os riscos do que se conhecia até aquele momento. Assim, eu vejo que o papel de liderança da OMS se consolidou com várias iniciativas importantes contra a pandemia. A OMS coordena o Solidarity Trial [“Solidarity” clinical trial for covid-19 treatments, que envolve mais de 100 países], que é o maior estudo que está sendo feito para validar algum medicamento para a covid-19. Lançamos em maio uma grande iniciativa para levantar 8,5 bilhões de dólares que vai promover o acesso equitativo a uma vacina, com apoio de vários países. Agora, vamos fazer o nosso trabalho e não vamos entrar em nenhum tipo de disputa política pois o interesse de deturpar fatos, alimentar teorias da conspiração, buscar culpados é parte do processo.

Um país como o Brasil pode ser candidato a provocar uma nova pandemia?

Uma pandemia é um risco global. Não temos certeza de quando, qual será o vírus, mas sabemos que vai ocorrer outra crise no futuro. Sabemos também que locais onde há mais contato das pessoas com animais, como em um mercado de animais vivos, algo que comum em muitas cidades pobres, do interior, ou fruto do desequilíbrio ecológico, são mais propícios. No Brasil e na América Latina, houve surtos de hantavírus no começo dos anos 2000 relacionado com a ocupação não planejada de áreas silvestres que viraram condomínios habitacionais. Os roedores que viviam ali vieram buscar alimento perto das casas o que produziu casos de rotavírus. O mesmo se sucedeu com a febre amarela. Por isso é muito importante que os países tenham condições de fazer detecção rápida e buscar sempre uma resposta efetiva.

Que mecanismos podem ser criados para garantir o acesso de países periféricos a tratamentos e uma futura vacina?

O acesso equitativo é um dos grandes desafios atuais e pode ser uma boa lição dessa pandemia. Os países mais pobres do mundo, inclusive alguns da nossa região, só tiveram acesso à vacina do H1N1 seis a oito meses depois dos países mais ricos. Temos que evitar isso agora. Falar em acesso equitativo é dar acesso a todos os insumos críticos para responder a uma emergência de saúde pública, sejam respiradores mecânicos, kits de PCR, vacina, medicamentos. Houve ações de embargo, transporte, cancelamento de pedidos porque países mais ricos compraram os equipamentos. A Opas participou dessa disputa buscando equipamentos para os países mais pobres, como o Haiti, que, com 12 milhões de habitantes, só tinha 40 respiradores. E a Costa Rica tem sido um líder importante na América Latina se posicionando a favor de medidas como um pool de patentes, vacinas ou medicamentos, de processo de transferência de tecnologia, para que não haja diferença de acesso à vacina entre países independentemente do seu grau de desenvolvimento. O mundo vai ter que refletir sobre a criação de mecanismos permanentes de promoção do acesso equitativo numa emergência de saúde pública internacional.

É possível pensar no desenvolvimento global sustentável em saúde diante da adoção de práticas protecionistas?

Não. Todos os países praticamente adotaram barreiras desse tipo. Países produtores proibiram exportações, outros cancelaram pedidos de maneira irracional gerando problemas para todos. Nós tivemos dificuldade de entregar vacinas, antirretrovirais, equipamentos de proteção individual [EPIs]. Já distribuímos cerca de 17 toneladas de EPIs para os países mais pobres da região. Eu entendo que o processo da produção às cadeias logísticas tem de ser pensado a partir da lógica da promoção do acesso equitativo, e não do primeiro os meus e depois os teus. Isso tem que ser parte de um debate prioritário nos foros de saúde global, na Assembleia Mundial da Saúde, da OMS, como uma lição importante dessa pandemia.

Qual a importância dessa resposta internacional coordenada?

A falta de uma coordenação internacional para atender de maneira emergencial uma emergência de saúde pública pode ocasionar situações dramáticas. A coordenação é importante para mobilizar recursos para atender crises humanitárias que podem ocorrer em países pobres que enfrentam uma crise social e econômica, às vezes política, somadas à crise sanitária, como no Haiti, em países da África e Ásia. A coordenação otimiza os esforços para o desenvolvimento de novas ferramentas e a implementação de estratégias como Solidarity Trial, um grande ensaio clínico para testar quatro esquemas de medicamentos contra covid19. Essa plataforma global vai recrutar mais rapidamente pessoas para participarem destes estudos. O mesmo será feito para a vacina. A fase 3 da vacina, de ensaios clínicos, tem que ter a participação de 30 a 40 mil pessoas e a resposta será mais rápida se 90 a 100 países trabalharem juntos para recrutar voluntários. Eu acho que o multilateralismo vai ser fortalecido porque ele cria uma plataforma de colaboração e coordenação para fazer face a ameaças que nenhum país sozinho tem capacidade de se proteger. Claro que haverá uma disputa ideológica. Infelizmente, há pessoas, governos e partidos que creem que podem construir um mundo em que as soluções não são coordenadas internacionalmente.

É possível de alguma maneira barrar a entrada do vírus em um país ou região?

A pandemia nos mostra que, nenhum país está imune. Foram afetados países ricos que tomaram medidas como fechar fronteiras e cancelar voos. Para determinados tipos de doença, não há nenhuma barreira eficaz para impedir que ela se dissemine. A covid19 comprovou isso, não é uma novidade para pessoas da saúde pública, mas essa é uma prova inconteste. Isso reforça a ideia de que a proteção de todos depende sempre da proteção de cada um. O mundo todo ficará automaticamente vulnerável se um país não tiver condições mínimas em um sistema de saúde com capacidade para detectar e controlar o surgimento de um novo vírus. Vamos ter acertos e erros que precisam ser estudados de maneira independente e objetiva para gerar recomendações que fortaleçam os sistemas de saúde diante de uma epidemia. Nós não podemos perder essa oportunidade. É um aprendizado que se dá com uma carga de sacrifício com a perda de milhares de vidas. Eu creio que esse é um legado importante para todos os sistemas de saúde do mundo.

Quais são os caminhos que o senhor aponta para o futuro?

Temos de garantir acesso e cobertura universal de saúde. Saúde universal é um conceito que muitos países têm abraçado e implantado, outros têm a previsão legal, mas ainda não conseguiram garantir o acesso de forma efetiva para todos, devido a barreiras econômicas e sociais. O fortalecimento de sistemas universais será uma tendência. Ao mesmo tempo, destaco que há várias experiências importantes sobre a melhor maneira de como se organiza o sistema de saúde, para que ele tenha resiliência e consiga enfrentar uma crise como essa. Nós estamos perdendo vidas não só para a covid-19, mas pelo excesso de mortalidade devido a outras doenças, já que quase todos os países não tiveram capacidade de manter funcionando serviços essenciais de saúde pública. Temos estudos demonstrando a dificuldade de acesso a medicamentos e ao controle periódico para avaliar a saúde de pessoas hipertensas e diabéticas, com tuberculose, HIV e câncer. Esse é um aspecto importante no que nós chamamos de um sistema de saúde resiliente, que tem capacidade de adaptar, incorporar novas tecnologias, telemedicina, teleconsulta, ver o papel da atenção primária. Desde o tema do financiamento adequado até a maneira como organizar melhor a própria atenção, a linha de cuidado dos sistemas de saúde, como remover barreiras que existem para o acesso, devem fazer parte dessa agenda pós pandemia.

Matéria originalmente publicada na  Revista Radis Comunicação e Saúde, editada pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz.

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