Em tempos de intolerância, o fascismo bate à porta

Para o historiador Afonso Silvestre, o fascismo não está mais ligado exclusivamente à política, passou a ser “um jeito de ver o mundo” 23 de março de 2018 Israel Oliveira, Jhou Cardoso, Queli Cruz

Com o turbulento momento político vivido em nosso país, e o acirramento da disputa entre progressistas e conservadores, a palavra “fascista” vêm sendo muito usada na atualidade. Mas poucas pessoas compreendem realmente bem o seu significado e o seu valor histórico. A esquerda denomina a direita de fascista e vice-versa. E assim, o “fascismo” acabou se tornando um termo banal no Brasil.

Diante desse dilema, é preciso de fato esclarecer: O que é o fascismo? O que ele representou e representa à sociedade? Quem são os verdadeiros fascistas? Para entender esse movimento político histórico, o seu conceito e suas práticas no cotidiano, o Avoador bateu um papo com o historiador Afonso Silvestre. Ele apontou os ressignificados do fascismo e fez uma avaliação do comportamento humano em relação à sensibilidade para com o outro.

Silvestre, 51 anos, graduado em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em 2002, é pesquisador das diferentes formas de opressão na construção histórica da modernidade. Ele foi coordenador do Núcleo Municipal de Direitos Humanos, Prevenção e Combate à Homofobia e, recentemente, coordenou a mostra cinematográfica “As Realidades Sociopolíticas do Século XX”, que retrata o fascismo. Entre 2012 e 2016, ele foi coordenador técnico do Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista.

Avoador: O que é o movimento fascista?

A.S.: Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que os termos são sempre ressignificados. Originalmente, o fascismo foi criado por Benito Mussolini, em março de 1919, numa reunião em Milão que transformou uma associação nacionalista em partido nacional. A associação se chamava FascidiCombattimento, ou feixes de combate, em tradução livre, e deu origem ao Partido Nacional Fascista. A ideia era reunir um “feixe de frágeis”, e eles, uma vez unidos, seriam fortes. Uma das propostas desse partido era oferecer aos investidores europeus uma Itália livre de direitos trabalhistas, e o capitalismo topa jogar com isto, com o lucro imediato. O resultado foi o óbvio: o partido passou a ter apoio do capital estrangeiro e logo se elegeu. O mesmo aconteceu na Alemanha, dez anos depois, com o nascimento do Partido Nacional Socialista, ou Nazista. O que acontece é que essas nações foram derrotadas na Primeira Guerra, e viviam a ressaca de uma população empobrecida por conta de arranjos entre nações imperialistas. Foi, de fato, uma guerra mais vergonhosa que as outras do século. Diferente do que muitos pensam, o fascismo não surge para destruir a democracia. Ao contrário, seu surgimento só é possível quando a democracia já está enfraquecida, quando uma nação vive momentos de fragilidade moral, ética, econômica e política. E mesmo uma nação de cultura tão forte e influente, além de reconhecida pelo próprio povo, essa densidade de conteúdos sucumbe à fome e à baixa autoestima. Então, ele surge nesses momentos de fraqueza, e aos poucos desorganiza costumes, enfraquece juízos, faz aumentar a corrupção e até mesmo legalizar alguns meios. São momentos de regressão do gosto estético, de legitimação do precário, e da promoção de pessoas frágeis, dos membros desse feixe, que embora não tenham conhecimento ou capacidade técnica, cognitiva, moral ou alguma erudição, recebem muito poder nas mãos.

“Diferente do que muitos pensam, o fascismo não surge para destruir a democracia. Ao contrário, seu surgimento só é possível quando a democracia já está enfraquecida, quando uma nação vive momentos de fragilidade moral, ética, econômica e política”

Avoador: Como o fascismo vem se manifestando?

A.S.: Aqui entra o que falei sobre a ressignificação dos termos. Acredito que por ter ajudado a desorganizar as culturas, o fascismo acabou se reproduzindo com essa confusão. A Primeira Guerra Mundial, mais um espasmo da velha luta do século 19 contra o Antigo Regime, criou multidões de apátridas (aqueles que, tendo perdido suas nacionalidades de origem, não adquiriram outra) buscando um lugar e sofrendo a discriminação de outras pessoas. As divisões geopolíticas surgidas a partir da Guerra não respeitaram costumes, submeteram pessoas católicas a reis protestantes, obrigaram costumes e línguas distintas a conviverem juntas e fizeram com que alguns idiomas passassem a ser combatidos, inclusive, através da lei. Em nome das nações, os desejos e os devires individuais foram desprezados. É natural crer nas consequências desse tipo de movimento. Ódios foram criados pela via da desinformação. As pessoas tinham que elaborar seus próprios conceitos em situações emergenciais e, quando isso acontece, esses conceitos se arrastam sem ser devidamente revisados e se reproduzem sem que se saiba o porquê ou de onde exatamente eles vêm. Assim, ideias típicas do fascismo, como a possibilidade de tornar brutos em homens importantes e com poder de decisão, a oportunidade de se ter ascensão social sem capacidades, a inserção de costumes alheios ao povo que os consome sem saber o porquê, tornaram-se comuns e passaram a ser vistas como coisas normais. Creio, então, que o fascismo passou a ser um jeito de ver o mundo. Um conjunto de crenças sem fundamento, mas que se bastam por serem favoráveis a quem as crê legítimas. Na prática, no quesito política, a Revolução Francesa não ajudou muito. Entramos no século XIX, mas não saímos dele. O mundo tem culturas elevadas, costumes nobres, memórias que são capazes de ensinar e salvar vidas. Mas as populações vêm preferindo coisas mais simples e alegres, e isso não seria problema se não fosse uma espécie de totalitarismo que transforma em pedantismo (modo arrogante expresso por pessoas com grau mais “elevado” de erudição­) qualquer coisa mais elaborada. E no caso de instituições, o mundo tem visto a grande maioria sem muita qualificação ou ética. Quando assistimos a corrupção invadir expressões de cultura como o futebol ou o carnaval, que têm tentáculos por todo o mundo, estamos vendo um jeito mais escancarado daquele fascismo que antes tinha algumas preocupações em se esconder, e mentia. Hoje, não é preciso mentir sobre essas coisas, há sempre um grande número de eleitores para concordar. E aqui entra outra face do fascismo atual: ele se reproduz em sistemas ainda democráticos, e não está mais ligado exclusivamente à política. Trata-se de uma sociedade com suas representações mentais divididas, como a de um homem barroco, um discurso desorganizado, atitudes delirantes e decisões equivocadas, exageros e malabarismos de raciocínio que demonstram uma fragilidade na razão e nos afetos. As pessoas tornam-se intolerantes, cheias de razão, assumem atitudes acusadoras de outrem, e têm ódio ao que é indiferente, e parece que perdem a capacidade de uma atividade intelectual fundamental para a convivência: a articulação da cognição com os afetos.

“Creio que o fascismo passou a ser um jeito de ver o mundo. Um conjunto de crenças sem fundamento, mas que se bastam por serem favoráveis a quem as crê legítimas”

Avoador: O que caracteriza o movimento fascista?

A.S.: Os regimes fascistas eram regimes de ódio. Eu poderia enumerar algumas de suas características que continuaram sendo reproduzidas mesmo depois de sua queda: a exaltação da pátria; o apelo religioso; a retirada de direitos de categorias fragilizadas historicamente, como negros, mulheres, homossexuais; o desprezo pelos direitos humanos; desejo de supremacia militar; proteção de direitos corporativistas; desprezo pela arte; obsessão por castigar pequenos delitos e usá-los como exemplo; vistas grossas para a grande corrupção; e nepotismo.

 

Avoador: Por que o movimento fascista conquista tantos adeptos?

A.S.: Primeiro, pela tentação que oferece a investidores. Conquistando o capital, pode-se conquistar tudo, inclusive o coração das pessoas. Em todos os países que passaram pela experiência de uma ditadura militar, percebeu-se um vazio cultural, um vazio de identidade. Essa crise se agravou junto com as diversas crises que vieram em seguida. Crises econômicas, políticas, e também morais, de costumes, éticas e identitárias. Ao atuar na cultura, o capital opera de modo perverso, no sentido estrito do termo. A seu bel-prazer, ele manipula os discursos, pinça seus elementos e empilha montando novos discursos sem identidade alguma. Apodera-se de conceitos, os reinventa e empurra violentamente a nova linguagem goela abaixo da humanidade. As pessoas, dominadas pelo desejo de poder consumir e pelas ilusões da política econômica, acabam fazendo escolhas não condizentes com seus devires. O medo e a insegurança, o crescimento do crime organizado, o não cumprimento das atribuições do Estado e o consequente esvaziamento de sua importância no imaginário popular gera nas pessoas uma expectativa de que políticos venham para salvar a todos. Isso se dá justamente pela falta de entendimento dos processos históricos e da própria política. E os meios de comunicação não ajudam. Concessões públicas direcionam até mesmo o gosto e a preferência dos consumidores. Não há como se defender quando o principal aparato de proteção social, no caso o Estado e as instituições que o representam, deixa de atuar em sua finalidade para reproduzir uma burocracia que satisfaz ao Capital. Assim, se destrói a memória dos povos, que se tornam confusos.

“O medo e a insegurança, o crescimento do crime organizado, o não cumprimento das atribuições do Estado e o consequente esvaziamento de sua importância no imaginário popular gera nas pessoas uma expectativa de que políticos venham para salvar a todos”

Avoador: O comportamento fascista tem crescido no Brasil?

A.S.: Ele sempre existiu no Brasil. Na história da nossa República, para falar de um princípio republicano, quantos presidentes eleitos pelo povo governaram até o fim do mandato, sendo precedidos por um governo nas mesmas condições e sucedido por outro como tal? A resposta é três: o segundo governo de Fernando Henrique, o primeiro e o segundo governo de Lula. Numa República que completa 130 anos no próximo ano. Também temos o problema da cidadania, que não é um processo muito bem entendido e incorporado por aqui. O historiador José Murilo de Carvalho lembra que um cidadão brasileiro não é a mesma coisa que, por exemplo, um cidadão inglês. Lá o processo de aquisição da cidadania ocorreu numa ordem não apenas cronológica, mas, principalmente, lógica. No século 18, os trabalhadores do campo mudaram para as cidades e foram trabalhar nas indústrias, em plena Revolução Industrial. Então, os direitos vão sendo conquistados, primeiro os civis, depois os direitos políticos no século 19 e, finalmente, em consequência dos dois, os direitos sociais no século 20. Ou seja, foi com base no exercício dos DIREITOS CIVIS que os ingleses reivindicaram o direito de votar e participar do governo de seu país. A participação permitiu a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, favorecendo o surgimento dos DIREITOS POLÍTICOS, que, por sua vez, foram os responsáveis pela introdução dos DIREITOS SOCIAIS. Já no caso do Brasil, acontece que os direitos sociais precedem a todos, além de terem mais ênfase que os outros. Como havia lógica na sequência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Por conta da forma de exploração predatória, sob a qual o Brasil foi construído durante todos aqueles séculos, a discussão sobre direitos sempre esteve manca. Não seria possível que houvesse plenitude de direitos. Só com o advento da República, já às portas do século 20, a palavra cidadão começa a ser utilizada em seu real contexto. Mas nunca foi uma cidadania plena. Muitas pessoas, diversas classes e categorias estiveram fora do rol dos benefícios da cidadania. Tudo isso atrapalha muito o entendimento de um povo sobre si mesmo, o torna frágil e suscetível às ameaças contra os seus costumes e modos de ser e agir. São justamente desses momentos de fragilidade que falei, e isso tem acontecido em todos os lugares do planeta. Infelizmente, em países de condições mais frágeis de cultura, como ocorre nos países emergentes, isso acontece com mais intensidade.

 

Avoador: Há alguma diferença entre o fascismo europeu para o fascismo brasileiro?

A.S.: Creio que não haja diferença, principalmente se estivermos falando de um comportamento, de um modo de ver o mundo. É claro que o exercício da política tem diferenças de sutilezas. Em países emergentes, governos atuam mais descaradamente contra o próprio povo. Nas nações desenvolvidas economicamente, seus povos são menos desrespeitados, embora elas promovam as práticas nos países em que dominam economicamente.

 

Avoador: É possível dizer o que é preciso ser feito para conter o crescimento do fascismo no Brasil?

A.S.: Sinceramente, eu não sei. Seria muito bom se pudéssemos aprender com a História, mas isso não é possível porque os meios de comunicação não querem e trabalham contra o conhecimento. Todo o material televisivo, grande parte da informação que circula na internet, jornais, rádio, traz mentiras. Até mesmo a ficção apresentada pela televisão é mentirosa. E nem sempre são mentiras elaboradas por quem prepara esses programas, a coisa é pior, elas são apenas reproduzidas. Praticamente não há mais livrarias no país, e as pesquisas mostram que não é isso que as pessoas buscam na internet. Então, eu nem sei se as pessoas, a maioria delas, já que vivemos democracia, querem de fato parar o movimento. Mas vamos saber na prática, logo, logo.

 

Avoador: Você acha que há alguma chance de um candidato com ideias fascistas se eleger este ano?

A.S.: Temo que sim.

 

Foto destacada: Arquivo/Site Avoador.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *