Deficiências e o estigma da necessidade de uma “cura”

A falácia da necessidade de um corpo que produza e gere lucro e/ou seja belo e perfeito desrespeita a diversidade humana e a aceitação da deficiência como algo natural da natureza 11 de outubro de 2021 Israel Peixoto

Neste 11 de outubro, celebra-se o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência. A data foi instituída pela Lei Nº 2.795, promulgada em 15 de abril de 1981 pelo governo de São Paulo e posteriormente comemorada em todo o território nacional. Importante fazer esse registro.

Antes de tratar do tema deste artigo, quero agradecer a todos os comentários positivos que recebi do artigo anterior que tratou do Setembro Verde.  Também sou imensamente grato a oportunidade de publicar no site Avoador e, assim, poder compartilhar minhas vivências enquanto pessoa com deficiência.

Neste texto, o tema é polêmico e, talvez, por isso é até pouco discutido entre a própria comunidade de pessoas com deficiências. A questão é que nem todo deficiente precisa/quer ser “curado”. A etimologia do verbo curar remete a livrar alguém da dor, da enfermidade, da doença de um modo geral. Em alguns contextos, essa palavra pode conter um significado negativo, porque, às vezes, curar alguém significa livrá-la de sua principal característica, e isso tem outro nome. Falaremos desse conceito lá na frente, por agora, precisamos fazer algumas considerações.

A necessidade de cura no meio PCD’s é algo problemático porque somos diversos, temos histórias diversas e formas de pensar independentes. Este texto não se propõe a falar por todas elas. Por exemplo, pessoas que adquiriram alguma forma de deficiência ao longo da vida querem, sim, uma cura, uma forma de sua vida voltar a ser o que foi antes, e tudo bem, isso não é um problema. Por esse motivo escrevo para mim e para os meus, para as pessoas que já vieram ao mundo com algum tipo de deficiência em seus corpos, tendo a deficiência como mais uma, dentre outras características, como quem nasce com olhos castanhos.

Na minha infância, quando eu era uma criança atípica aos olhos alheios e, até mesmo aos olhos de conhecidos, eles desejaram a cura para mim. Desejaram tanto que, por boa parte da minha vida, pensei que precisava dela. Num dia simplesmente percebi que no fim das contas, que o que eu queria de fato não era andar, mas ter o privilégio que pessoas andantes tinham. Eu não preciso andar. Na verdade, eu já o faço, mas de maneira diferente da convencional, na minha cadeira de rodas.

Em uma sociedade capitalista, há uma valorização da utilidade dos corpos, a necessidade da força de trabalho gerar riqueza. E quanto mais força, mais possibilidade de lucro ao sistema. Eu sei das boas intenções daqueles que desejavam que eu fosse como uma criança “normal”. Porém, é importante ressaltar a logística capitalista que se esconde nesse pensamento. É que para o capital não existe outra função para os corpos senão o trabalho.

“Então quer dizer que é errado querer que alguém doente viva bem?”

Essa pergunta é importante porque traz dois pontos. Primeiro, doença e deficiência são conceitos paralelos, mas que são confundidos com certa frequência. Doença é definida, segundo a Organização Mundial de Saúde, como a ausência de saúde, aquilo que afeta o bem-estar físico e/ou mental do indivíduo. A mesma OMS define deficiência como a incapacidade total ou parcial de realizar determinadas atividades por fatores psicológicos, físicos ou neurológicos. Conceitos diferentes, coisas diferentes. Ou seja, ninguém pode ser considerado deficiente por ter pegado uma gripe, assim como uma pessoa não pode ser considerada doente por andar numa cadeira de rodas.

“Sendo assim, as pesquisas científicas sobre os mais diversos tipos de deficiência deveriam parar?”

Não, de maneira alguma. É importante que as pesquisas avancem com o objetivo de o bem-estar das pessoas com deficiência.

Como foi dito anteriormente, quando a cura vem com o objetivo de tirar de alguém alguma de suas características, o conceito muda. Não é cura, é eugenia. Para alguns, pode soar um tanto exagerado citar eugenia quando a intenção é boa, mas como diz o ditado: “De boas intenções o inferno tá cheio”. Basicamente, num exercício rápido é possível perceber que o objetivo é sempre o mesmo: rejeição à diversidade humana.

É óbvio que as coisas não são do jeito que são por mera coincidência ou aleatoriedade do acaso. Somos o resultado de uma civilização que nasceu há séculos antes de nós, os frutos que colhemos hoje foram plantados há milênios. Em uma breve viagem no tempo, é possível resgatar a criação dessa cultura eugenista que veste a máscara da benevolência.

Na sociedade espartana da Grécia antiga, quando uma criança nascia, seu estado anatômico era avaliado por um sacerdote. Caso apresentasse alguma anomalia ou alteração de parâmetro, esse recém-nascido era jogado de penhasco direto para boca da morte. Esparta e seus civis viviam para a guerra. Existia ali também a utilidade do corpo.

Ainda nesse mesmo período, em algumas cidades da Grécia, existia um ritual nomeado Pharmakos.  Esse ritual era praticado, geralmente, em épocas de desgraça, como fome, guerras e doença. Uma pessoa feia daquela cidade era dada como sacrifício aos deuses para que esses momentos ruins passassem de pressa. E não se engane com a morfologia da palavra feia, porque os escolhidos para a morte apresentavam algum tipo de deformidade corporal, ou seja, eram deficientes.

Avançando um pouco mais na história, com a popularização do cristianismo, a coisa muda de figura, e as deficiências ganham o aspecto de doenças, enfermidades. As passagens mais famosas da Bíblia são a cura do paralítico e o cego que volta a enxergar, milagres famosos de Jesus. Já na idade média, muitas pessoas com deficiências que eram intelectuais foram queimadas na fogueira, pois seus sintomas eram associados à possessão demoníaca, um estigma que perdura até os dias de hoje.

Na era moderna, mais especificamente entre os anos de 1933-1944, o mundo testemunhou as barbáries do regime nazista que pregava o ódio contra toda e qualquer tipo de minoria. As pessoas com deficiência não ficaram de fora. Uma das primeiras vítimas, mas não tão mencionada é Anna Lehnkering, uma jovem de 24 anos que morreu sendo cobaia num dos testes das câmaras de gás.

Anna Lehnkering apresentava tremores noturnos e, em algumas situações, episódios de nervosismos e agitação durante a infância, e também tinha dificuldades de aprendizagem. Em 1931, ela foi mandada para uma escola para crianças especiais,  termo usado na época. Em 1934, por ordens de um tribunal nazista, Anna foi esterilizada à força. Dois anos depois, a jovem foi levada para ao sanatório e asilo Bedburg-Hau, onde passou por diversos testes e foi diagnosticada como “incurável”. Ela tinha 24 anos quando foi transportada para o Centro de Eutanásia Grafeneck, no Sul da Alemanha, e assassinada.

Em tempos atuais, apoiar ideias como essa é inaceitável. Porém, a história é maleável e minorias, como a nossa, pessoas com deficiências, são reféns o tempo inteiro das regras sociais de cada época. O nosso corpo, o corpo deficiente não é aceito, nunca foi. No momento presente, ele é apenas tolerado. Daí vem essa ânsia pela cura, esse desejo de concertar o que na verdade nunca foi quebrado. Essa vontade não nos pertence, é alheia a nós, no entanto, nos incubem o anseio de tê-la porque querem negar o poder e a força de sua própria diversidade. Mortais com síndrome de deuses.

*O autor tem 24 anos, é técnico em agropecuária formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia Baiano.  É também escritor e poeta, teve seu primeiro poema publicado na Antologia Antologia Poética Bardos Baianos Médio Sudeste. É ainda articulista do site Avoador. Administra a página Ritma Poesia onde posta seus poemas interpretados pela voz de Camila Castro. Sonha em seguir carreira jornalística e pretende publicar seu primeiro livro em breve. E

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