Coronavírus: informações para a cobertura jornalística
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo apresenta dicas e conselhos para cobertura ética do Covid-19, além de informações para a proteção dos jornalistas 17 de março de 2020 AbrajiO novo coronavírus tem desafiado chefes de estado, cientistas, famílias brasileiras que tiveram suas rotinas diretamente afetadas, e também os jornalistas. A emergência de saúde pública global alterou a grade de programação de emissoras e a dinâmica de redações. Diversas organizações internacionais têm construído manuais para ajudar na cobertura da pandemia
A Abraji traduziu, e o Avoador replica aqui, o detalhado manual produzido por Miraj Chowdhury, da Rede Global de Jornalismo Investigativo (GIJN, na sigla em inglês), com conselhos para uma cobertura ética e responsável da COVID-19, além de informações para a proteção dos próprios jornalistas. Você pode conferir o material traduzido abaixo.
Também listamos outras iniciativas, em português, inglês e espanhol para acessar e acompanhar.
DICAS PARA JORNALISTAS COBRINDO A COVID-19
Acesse o artigo original (em inglês) aqui. Tradução de Susana Carpenter.
Reportagem responsável
Em sua pesquisa mais recente, Karin Wahl-Jorgensen, professora de jornalismo da Universidade de Cardiff, examinou como o medo tem desempenhado um papel na cobertura da COVID-19 em 100 jornais de alta circulação de todo o mundo. Ela descobriu que uma em cada nove notícias sobre o surto mencionava “medo” ou palavras relacionadas, incluindo “assustado”.
“Essas matérias usavam outra linguagem atemorizante também; por exemplo, 50 artigos tinham a frase ‘vírus assassino’ ”, ela escreve neste artigo do Nieman Lab.
Mas, como podemos evitar espalhar o pânico enquanto continuamos a fazer uma cobertura profunda e equilibrada? De acordo com Al Tompkins, da Poynter (que planeja publicar um boletim diário sobre a COVID-19), a solução é a reportagem responsável. Aqui está um resumo de suas sugestões:
1. Reduzir o uso de adjetivos subjetivos nos relatórios; por exemplo: doença “mortal”.
2. Use fotos com cuidado para não espalhar a mensagem errada.
3. Explicar ações preventivas; isso pode tornar sua matéria menos aterrorizante.
4. Lembre-se de que reportagens estatísticas são menos assustadoras do que as anedóticas.
5. Evite manchetes “caça-cliques” e seja criativo na apresentação.
Em outro texto da Poynter, Tom Jones enfatiza a busca de fatos, mas não dos discursos. “É uma história científica, não política”, escreve ele. É claro que a política é importante, mas esteja alerto ao que é dito sobre a COVID-19 por fontes políticas partidárias e confie em especialistas médicos.
Nomenclatura
Desde o início do surto, os repórteres usam nomes diferentes para o vírus. Por exemplo, “o coronavírus”, “um coronavírus”, “novo coronavírus” ou “recente coronavírus”. “Isso ocorre porque esse coronavírus é separado de outros coronavírus que causaram suas próprias epidemias ou pandemias. Cada um recebe um nome e era novo (ou inédito) em algum momento”, diz Merrill Perlman em um artigo recente da CJR. Deseja saber mais sobre nomes? Leia a explicação da OMS sobre por que os vírus têm nomes diferentes.
Como você deve batizar o surto? A CNN está usando o termo pandemia para descrever a atual epidemia de coronavírus. Eles explicaram o porquê. [Nota do editor: a OMS atualizou sua avaliação e, a partir de 11 de março, agora está chamando a COVID-19 de pandemia.]
Palavras são importantes. Segundo o AP Stylebook, “epidemia é a rápida disseminação de doenças em uma determinada população ou região; uma pandemia é uma epidemia que se espalha por todo o mundo.” Eles sugerem “usar com moderação; seguir as declarações de funcionários da saúde pública.” Você encontrará outras dicas no Manual de Redação da AP sobre o coronavírus [AP Stylebook on Coronavirus].
Ficar protegido
Em um surto global de doença, jornalistas não podem cobrir matéria enquanto em auto-quarentena. Precisamos ir a campo e há o risco de sermos infectados. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) emitiu um alerta de segurança detalhado (em breve, o material estará disponível em português) para jornalistas que cobrem a COVID-19, que inclui preparativos preliminares, dicas para evitar infecções nas áreas afetadas, planejamento de viagens e cuidados pós-cobertura. Aqui está um resumo de suas principais dicas para o trabalho “in loco”:
1- Use luvas de proteção se estiver trabalhando ou visitando um local infectado, como uma unidade de tratamento médico. Também podem ser necessários outros equipamentos de proteção individual médica (EPI, PPE em inglês), como roupa especial de proteção e máscara facial.
2- Não visite mercados úmidos (onde se vendem carne fresca ou peixe) ou fazendas na área afetada. Evite o contato direto com animais (vivos ou mortos) e seu ambiente. Não toque em superfícies que possam estar contaminadas com excrementos de animais.
3- Se estiver trabalhando em uma unidade de saúde, num mercado ou numa fazenda, nunca coloque seu equipamento no chão. Sempre descontamine o equipamento com lenços antimicrobianos de ação rápida, seguido de desinfecção completa.
4- Nunca coma ou beba quando tocar em animais, ou perto de um mercado ou fazenda.
5- Sempre lave bem as mãos com água quente e sabão antes, durante e depois de sair da área afetada.
Os especialistas
Para manter-se atualizado, consulte os sites da OMS, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), com sede nos EUA, e o Serviço de Saúde Pública da Inglaterra (PHE) do Reino Unido. Também são recomendados o Mapa de COVID-19 da Universidade Johns Hopkins e Medicina e seu centro de recursos de coronavírus e boletins de atualização. Siga as agências governamentais do seu país responsáveis por fornecer informações sobre a epidemia. No caso do Brasil, o Ministério da Saúde.
As “Ferramentas para Jornalistas”, da The Society of Professional Journalists, listou os principais recursos e fontes. Aqui estão alguns:
1- Índice Global de Segurança em Saúde, avaliação da eficiência da segurança em saúde em 195 países;
2- Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA;
3- US Travel.State.Gov para conhecer os riscos específicos de viagem aos países;
4- O NewsMarket, Inc. para vídeos e gravações em b-roll;
5- MPassport.com, um banco de dados de médicos que falam inglês em 180 países;
Para saber mais, confira este webinar do National Press Club de Washington, DC ou este do Centro de Jornalismo em Saúde da Escola Annenberg de Comunicação e Jornalismo da Universidade do Sul da Califórnia.
Especialistas na doença não são fáceis de encontrar. O vírus é desconhecido e imprevisível, e não há pesquisadores ou médicos suficientes especializados em COVID-19. Ao escolher especialistas, considere cinco sugestões de William Hanage, professor adjunto de epidemiologia na Escola de Saúde Pública TH Chan de Harvard:
1- Escolha especialistas com cuidado. Receber um Prêmio Nobel por um assunto científico não torna alguém uma autoridade em todos os tópicos científicos. Nem fazer doutorado ou lecionar em uma conceituada escola de medicina;
2- Distinga o que se sabe ser verdade do que se pensa ser verdade – e o que é especulação ou opinião;
3- Tenha cuidado ao citar resultados de “pré-impressões” [projetos científicos, preliminares] ou trabalhos acadêmicos não publicados;
4- Peça ajuda a acadêmicos para avaliar a relevância de novas teorias e afirmações. Para evitar que as informações erradas se espalhem, os veículos de notícias devem checar a veracidade dos artigos também;
5- Leia o trabalho de jornalistas que cobrem bem tópicos de ciências.
A IJNet compilou uma lista de dicas para noticiar a COVID-19 com conselhos de jornalistas que cobriram a doença. Aqui estão os pontos-chave:
1- Entenda o estado de ânimo no local que está cobrindo- depois traduza-o no seu trabalho.
2- Concentre-se em transmitir informações, não análises;
3- Cuidado com suas manchetes;
4- Lembre-se: nem todos os números são exatos;
5- Converse com o maior número possível de pessoas;
6- Evite tons racistas;
7- Considere a maneira como você entrevista especialistas;
8- Não negligencie matérias que não são comoventes;
9- Defina seus limites. Às vezes, é melhor dizer “não” ao editor;
10- Quando as coisas se acalmarem, acompanhe o tema;
Verificação de fatos sobre a COVID-19
“Não estamos lutando apenas contra uma epidemia; estamos lutando contra uma infodemia”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, na Conferência de Segurança de Munique, em 15.fev.2020 Nesta era de desinformação e informações erradas, mitos on-line e teorias da conspiração, os jornalistas podem também desmistificar informações ruins, tais como a que a doença foi transmitida por itens fabricados na China, que cientistas criaram a COVID-19 ou que o vírus veio de um determinado laboratório de pesquisa.
Em artigo recente, a Poynter observou que pessoas em pelo menos cinco países – incluindo EUA, Índia, Indonésia, Gana e Quênia – viram ou leram sobre um boato de que “o governo chinês recorreu à Suprema Corte solicitando autorização para matar 20.000 pessoas infectadas com o coronavírus 2019.”
Para desmistificação e verificação de fatos, confira a iniciativa da International Fact-Checking Network, que inclui 90 verificadores de fatos de 39 países que colaboram para combater esse tsunami de inverdades. Até o final de fevereiro, a aliança #CoronaVirusFacts / #DatosCoronaVirus publicou 558 verificações de fatos sobre a doença.
A OMS tem uma página, a “Myth Busters”, que desmente rumores sobre o coronavírus, incluindo imagens compartilháveis para todos, inclusive jornalistas e veículos de mídia. A AFP também lançou uma iniciativa semelhante denominada “Busting Coronavirus Myths” [Acabando com Mitos do Coronavírus]. Sempre vale a pena ver quais conselhos o First Draft oferece, incluindo o artigo mais recente sobre como diminuir a disseminação de informações erradas e este sobre maneiras rápidas de verificar o conteúdo on-line. [Nota do editor: o First Draft agora adicionou Coronavírus: recursos para jornalistas.]
Existem muitas agências de mídia em todo o mundo que não têm equipes de verificação de fatos ou mesmo uma pessoa com habilidades para fazer isso. Se encontrar boatos ou informações suspeitas, entre em contato com grupos de verificação de fatos locais e regionais bem estabelecidos e dignos de confiança para obter ajuda. Normalmente, estão ativos nas mídias sociais e estão sempre em busca de leads.
Mapas: perguntas a serem lembradas
Perguntas a serem feitas ao examinar um mapa e as informações ao seu redor para determinar sua credibilidade e confiabilidade
1. Você leu o título, descrição, legenda, fonte e outros rótulos?
2. Quem fez o mapa e por quê? Você já tentou a pesquisa reversa de imagens para ver se ela já apareceu on-line antes?
3. Se o mapa mostra dados, que tipo de dados ele representa? De onde vieram esses dados? São confiáveis?
4. Verifique os tamanhos de países, condados ou qualquer outra coisa. São do tamanho errado ou distorcidos?
5. Como o mapa foi projetado? Utiliza símbolos ou áreas? Há problemas com a forma como o design comunica a história?
Lidando com trauma e vítimas
Sempre precisamos encarar rostos humanos, visitar casas e locais de trabalho e fazer perguntas difíceis para nossas reportagens. Mas, em um surto global como esse, as vítimas ficam traumatizadas. Elas podem não querer ser identificadas e discutir infecções. Mesmo indicar onde a vítima mora pode espalhar pânico em sua comunidade, deixando a família da vítima ainda mais insegura.
O Dart Center for Journalism & Trauma reuniu uma lista de recursos sobre como reportar a COVID-19. Inclui guias, lista de dicas, recomendações, melhores práticas e conselhos de especialistas em entrevistar vítimas e sobreviventes e trabalhar com colegas expostos a eventos traumáticos. Este artigo do Center for Health Journalism também inclui instruções para entrevistar sobreviventes de trauma. Aqui está um resumo de dicas:
1- Trate as vítimas com dignidade. Deixe a vítima “convidar” você a conhecer a história dela;
2- Permita que a vítima determine o momento e o local das entrevistas;
3- Seja transparente. Obtenha consentimento prévio sobre como a vítima será identificada;
4- Ponha a humanidade antes da matéria. Priorize o bem-estar da vítima à reportagem;
5- Não atropele a pessoa com as perguntas mais difíceis primeiro. Use empatia, e ouça;
6- Lidar repetidamente com vítimas traumatizadas pode afetar você;
A Poynter divulgou no domingo 16.mar.2020 um artigo (em inglês) sobre como jornalistas podem combater o estresse causado pela cobertura do coronavírus.
E A SITUAÇÃO ESPECÍFICA DOS JORNALISTAS BRASILEIROS?
Enquanto organizações internacionais se esforçam em traçar manuais de ajuda para saúde mental, jornalística e para cumprir a ética da profissão, a pandemia do coronavírus expôs a necessidade de entender o contexto brasileiro.
A Abraji ouviu jornalistas especializadas em Saúde, uma editoria que vem sendo sucateada e esvaziada, assim como outras áreas da comunicação.
Cláudia Collucci, repórter especial da Folha de S. Paulo e uma das mais experientes do país na cobertura de questões da saúde pública, considera que um manual específico para os jornalistas brasileiros seria muito importante. “Especialmente para padronizar condutas e melhorar a qualidade do que produzimos”, afirma.
Ana Lucia Azevedo, de O Globo, que também cobriu várias epidemias nos últimos 30 anos, destaca os desafios que os repórteres têm hoje. O primeiro: é lidar com o dilúvio de informações produzido por cientistas em todo o mundo. “A leitura de papers é essencial. No caso do coronavírus, temos recebido uma overdose de artigos para entender e traduzir para o público e também para os colegas jornalistas que, em algumas situações, talvez tenham caído de paraquedas na cobertura de ciência e saúde, sem ter tido tempo de ser treinado”.
Segundo Azevedo, o segundo desafio é proteger-se da contaminação durante a produção das pautas. É preciso redobrar os cuidados.
“O terceiro é entender quem estamos ouvindo. Será que é uma voz de respeito ou é uma pessoa de outra especialidade falando de políticas públicas inviáveis? Nós não podemos errar. E, principalmente, precisamos poupar o tempo dos médicos com perguntas muito básicas que, à essa altura, precisamos já saber”, conclui.
Para Cynthia Leite, há 17 anos setorista de saúde do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação e doutoranda em Saúde Pública pela Fiocruz Pernambuco, é um momento crucial para os jornalistas:
“Quando se trata de pandemias causadas por novos agentes infecciosos, sem precedentes na história da medicina, o dinamismo com que as informações sobre vírus/doença são consolidadas exige do jornalista um raciocínio igualmente rápido e que, para ser bem eficiente (no sentido de disseminar conteúdos corretos sem alarmismo), exige uma experiência prévia na cobertura de outros problemas de saúde pública”, avalia.
“Certamente esse é o maior desafio para o jornalista especializado em saúde, que precisa transmitir de forma adequada o teor das decisões das autoridades sanitárias, além de temas relacionados a autocuidado e cuidado com o outro, deixando claro que a verdade divulgada num dia pode não ser mais válida no dia seguinte. Tudo isso exige do jornalista maturidade para divulgar as notícias sobre o novo coronavírus de forma cuidadosa e responsável, sem se deixar contaminar pelos boatos nem pelo pânico”, completa.
A boa notícia é que a Coordenadoria de Comunicação Social da Fundação Oswaldo Cruz vem promovendo uma série de cursos para treinar jornalistas a cobrir epidemias. A chefe da CCS, Elisa Andries, afirma que “o objetivo é levar informação aos jornalistas para ajudá-los a divulgar corretamente os fatos à população”.
O último curso, organizado em fevereiro, está disponível online. O material traz orientações básicas como, por exemplo, as condições clínicas dos pacientes infectados.
O médico Sérgio Cimerman, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologista, afirma que, no dia a dia, os jornalistas devem entrevistar médicos com a recomendação de se manter a um metro de distância. Por enquanto, sem necessidade de uso de máscara. E se preparar para a entrevista para extrair o melhor da conversa com os médicos. A SBI divulgou outras orientações sobre o vírus.
OUTRAS INICIATIVAS
Neste artigo (em inglês), Stefanie Murray, diretora do Center for Cooperative Media, lista oito iniciativas de cobertura colaborativa da COVID-19 desenvolvidas nos Estados Unidos. Esta matéria do Poynter (em inglês), reflete sobre questões éticas envolvidas na hora de contar a história de alguém que contraiu o vírus — e também daqueles que já se recuperaram. Também o Reuters Institute for the Study of Journalism publicou um panorama geral da confiança do público sobre notícias relacionadas ao vírus.
Aqui no Brasil, a Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca) publicou material com dicas de cobertura sobre os efeitos do coronavírus na educação.
A Agência Lupa e o Redes Cordiais se uniram em prol da qualidade da informação sobre o coronavírus. Os projetos compartilharão em seus perfis nas principais redes sociais formas de criar empatia no ambiente virtual com os pacientes que contraíram coronavírus, para que eles não sejam estigmatizados e nem vítimas de ataques virtuais.
Outra iniciativa importante: a agência de checagem Aos Fatos liberou a republicação gratuita de todo o conteúdo sobre coronavírus por qualquer veículo da imprensa profissional.
No âmbito da academia, surgiram projetos semelhantes, como o Observatório de Ética Jornalística (objETHOS) que divulga cuidados éticos sobre o temaa. É uma realização do Departamento de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (POSJOR) da Universidade Federal de Santa Catarina.
*Esse artigo é uma republicação da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Imagem em destaque: Reprodução/Free