Assassinato de militante Raphaela Souza denuncia a exclusão e a violência sofrida pela população LGBT+
Crime ocorrido em novembro de 2018 segue sem solução. A Delegacia de Homicídios de Vitória da Conquista descarta crime de ódio, enquanto movimentos sociais e pessoas próximas a Raphaela apontam para a LGBT+fobia 28 de junho de 2019 Marcelo Bahiano e Péricles da Costa Lima“Travesti executada com três tiros na cabeça em Vitória da Conquista”. Manchetes como essa foram comuns na mídia conquistense e baiana para se referir a Raphaela Souza, transexual e militante LGBT+ assassinada em 14 de novembro de 2018, ano marcado pela violência contra as travestis e pessoas trans na cidade. Foram 12 crimes do mesmo tipo, contando com Raphaela, cuja morte pode ser caracterizada como uma execução. A Polícia Civil acredita que os casos não sejam crimes de ódio, mas sim relacionados ao tráfico de drogas na cidade. Já para integrantes da militância LGBT+, há uma violência generalizada contra essa população, que sofre o abandono da família, a exclusão no mercado de trabalho e, muitas vezes, o isolamento e o bullying na escola.
Raphaela era uma liderança de destaque na causa LGBT+ em Vitória da Conquista. Foi coordenadora do Coletivo Finas de Travestis e Transexuais, que surgiu há cerca de 10 anos, e também membro do Conselho Estadual dos Direitos da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CELGBT). Uma de suas lutas era pela inclusão do nome social nos documentos pessoais de trans e travestis.
Em 2014, Raphaela, graduada em Serviço Social, foi a primeira transsexual a passar em uma seleção pública no município. Foi trabalhar então na Secretaria de Desenvolvimento Social, dando aulas no curso de cabeleireiro para mulheres cadastradas no programa Bolsa Família. A militante teve também um salão de beleza e tentou abrir um bar no conjunto habitacional Pau-Brasil, onde morava, mas os empreendimentos não deram certo. Essa dificuldade no mercado de trabalho fortaleceu o seu ativismo em prol da inclusão do público LGBT+ em políticas públicas de emprego e renda. Apesar do curso superior e do conhecimento técnico em beleza, ela tinha dificuldades de conseguir emprego e, muitas vezes, tinha dificuldades financeiras e, segundo fontes entrevistadas nesta reportagem, isso a levou ao envolvimento com o tráfico de drogas.
No dia 25 de outubro de 2018, a Polícia Civil estava à procura de Moisés de Jesus Matos, conhecido como ‘Mor’ que, de acordo com os policiais, era traficante e homicida. Porém, ao chegarem em uma casa localizada no bairro Ibirapuera, eles acabaram encontrando Raphaela e outra trans, Luana, em posse de drogas. As duas foram conduzidas à delegacia e presas por tráfico. Após ficarem detidas por uma semana, foram liberadas em uma audiência de custódia.
Para o delegado titular da Delegacia de Homicídios de Vitória da Conquista, Marcelo Cavalcanti, após a investigação, a conclusão foi de que “a morte de Raphaela não tem vinculação nenhuma com transfobia, mas sim ao tráfico de drogas”, pois já tinha sido presa “com uma grande quantidade de entorpecentes”. Segundo ele: “Todos os crimes relacionados aos transexuais que aconteceram em 2018 não tiveram nada a ver com transfobia: ou estavam ligados ao tráfico de drogas, ou então foram crimes passionais”.
A ex-secretária de Assistência Social de Conquista, Nádia Márcia Campos, que conheceu Raphaela quando ela trabalhava na Coordenação de Proteção Social Básica da Prefeitura, em 2011, não consegue reduzir a morte da amiga ao uso e tráfico de drogas. “A gente tem que entender todo o contexto que levou Raphaela até aquela situação, que é um contexto de homofobia, de não aceitação da sociedade das pessoas como elas são. Então a única saída que elas (as pessoas trans) têm, ainda, é a rua”, disse.
Membro do Grupo de Lésbicas Safo, Milena Camargo, era amiga de Raphaela desde 1997 e diz que ela sofria preconceito por não esconder a sua feminilidade. “A transfobia começou porque ela sempre gostou de se maquiar, fazer a unha, arrumar o cabelo. Mesmo vindo de família pobre, sempre foi muito vaidosa. E ela sofreu muito preconceito na família e em outros lugares também”. Segundo Milena, Raphaela foi vítima de estupro aos 12 anos, em Itapetinga, sua cidade natal. Após o episódio, mudou-se para Conquista com a avó, quem a criou.
Para a historiadora, militante feminista e das pautas da negritude e educadora social da Coordenação de Políticas de Promoção da Cidadania e Direitos de LGBT da Prefeitura de Conquista, Kêu Souza, não há dúvidas que o assassinato de Raphaela está ligado também à transfobia. “O Brasil é o país no mundo que mais mata LGBT+. A Bahia está em terceiro lugar (em números absolutos) entre os estados, e em Vitória da Conquista, não é diferente. Essas meninas passam pelo abandono social, são excluídas do mercado de trabalho e também da escola. Só resta a elas a rua para poder sobreviver, e acabam se envolvendo com prostituição e com o tráfico”. Ela enfatiza ainda que não existe na cidade um Censo Municipal sobre a violência contra a população trans e as informações sobre os crimes contra a população LGTB+ ficam conhecidos pelas publicações da mídia local, blogs, televisão e redes sociais
O principal foco da Coordenação de Políticas de Promoção da Cidadania e Direitos de LGBT+ de Conquista, explica Kêu, tem sido oferecer assistência jurídica e psicológica, sendo a maior demanda da população trans que busca o auxílio jurídico para a retificação do nome nos documentos. “Eles vêm buscar a retificação do nome social porque é uma conquista recente. Até então, eles tinham o direito do uso do nome social, mas não tinham essa mudança na sua documentação. Agora, por lei, há esse direito garantido. Então a assistência jurídica dá todo esse suporte.”
Há ainda o acompanhamento psicológico já que o processo de transição não acontece só no nome registrado nos documentos. “A retificação não se dá apenas no nome, mas em todo o corpo. As pessoas passam por um processo de hormonização e de transição também no corpo”, relata Kêu, educadora social da Coordenação em Conquista.
Vulnerabilidade social causa morte da população LGBT+
O relatório de Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil de 2018, divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), aponta que a cada 20 horas uma pessoa LGBT+ morre no país. No ano passado, foram 320 homicídios e 100 suicídios, num total de 420 mortes. Houve uma redução de 6% no número de mortes em relação a 2017, mas o Brasil continua sendo o país com o maior registro de crimes contra minorias sexuais, à frente de países em que a homossexualidade é considerada crime e é combatido com pena de morte, como Arábia Saudita, Afeganistão e Irã. O levantamento sobre a violência contra a população LGBT+ no Brasil é realizado pelo GGB desde 1980. A dificuldade de acesso a estatísticas oficiais em muitos países, inclusive o Brasil, prejudica analisar a dimensão dessa essa violência.
Confira abaixo o número de mortes de pessoas LGBT+ no ano de 2018, segundo dados do Grupo Gay da Bahua (GGB).
De acordo com Kêu Souza, há uma conjuntura social e econômica que leva as pessoas trans a uma situação de maior vulnerabilidade social. “O mercado de trabalho não se abre pra esse público, os números de evasão escolar também são muito altos, porque elas passam por uma situação de constrangimento, de isolamento, de bullying. Então as pessoas trans sofrem o abandono social e também sofrem o abandono familiar. O que resta para essas meninas, na maioria das vezes, é a rua, é a prostituição, porque elas precisam sobreviver. E estando na rua elas estão extremamente expostas a qualquer tipo de violência.”
Esse contexto de vulnerabilidade é exposto de forma mais detalhada na pesquisa Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT) realizada em outubro de 2017. Segundo os dados, o abandono familiar representa um dos primeiros obstáculos para a população trans e que, na América Latina, o número de meninas e mulheres trans expulsas de casa, ou que saíram por conta da falta de apoio, varia entre 44% e 70%.
Milena Camargo lembra que Raphaela começou a se prostituir quando passou por dificuldades por conta da queda no rendimento do seu último salão de beleza. Temendo os riscos da atividade, ela interveio e conseguiu um emprego para a amiga junto à Secretaria de Desenvolvimento Social. Entretanto, após mudanças na direção da secretaria, Raphaela voltou a se envolver com a prostituição e também com o tráfico de drogas.
Kêu também confirma que Raphaela esteve envolvida com o tráfico de drogas, mas acredita que apontar apenas esse fator como motivo do crime significa ignorar a discriminação estrutural que coloca a população LGBT+, em especial a trans, em maior risco de sofrer violência. “O movimento social não reconhece a morte de Rafa como algo associado ao tráfico. Se você tem uma pessoa que tem todas as portas fechadas, isso é transfobia. Raphaela era uma pessoa extremamente capacitada. Por que que ela não estava no mercado de trabalho? Por conta da sua identidade de gênero. O que levou Raphaela a transitar em alguns lugares que colocaram a vida dela em risco? Foi a transfobia”. O relatório do GGB destaca que o risco de uma pessoa trans ser assassinada é 17 vezes maior do que o de um gay.
“Rafa era uma pessoa super do bem. Era uma referência na luta contra LGBTfobia, intermediava as nossas ações aqui com as mulheres trans. Ela foi criada pela avó, por quem sempre demonstrou muito amor. Por conta disso, Rafa também tinha um coração muito acolhedor. É triste quando uma voz é calada dessa forma”, desabafou Kêu.
Raphaela foi assassinada aos 32 anos de idade. Segundo dados de 2015 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a expectativa de vida das mulheres trans é de 35 anos ou menos.
“O coletivo Finas, que ela liderava, era um coletivo que lutava por políticas públicas para a população LGBT. A luta do coletivo Finas é uma luta por políticas públicas e por ações afirmativas. Quando você consegue ações afirmativas, elas ficam muito perto de se tornarem políticas públicas. A luta de Raphaela era uma luta por visibilidade no geral”, completa Kêu. Após o assassinato de Raphaela, o Coletivo Finas está sem liderança.
2019 e a população LGBT+ no Brasil
Em janeiro de 2019, Jean Wyllys, único parlamentar assumidamente gay no Congresso Nacional, renunciou ao terceiro mandato consecutivo de deputado federal e decidiu deixar o Brasil. O deputado afirmou, em carta ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), partido pelo qual foi eleito para os três mandatos, que a decisão de renunciar se deu por conta das constantes difamações e ameaças de morte que vinha sofrendo. A sua vaga foi assumida pelo suplente David Miranda, também assumidamente gay.
Em fevereiro, o STF iniciou um julgamento para discutir a criminalização da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, levando em conta uma omissão do poder Legislativo para com o tema. No dia 13 de junho, os ministros do STF decidiram, por oito votos a três, criminalizar a homofobia, sendo agora um crime equivalente ao racismo. A punição para quem infringir a Lei Antirracismo é de um a três anos de prisão e a pena é inafiançável.
No Brasil, no dia 29 de janeiro é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Trans.
Foto destacada: Arquivo
Parabéns Marcelo Bahiano e Péricles da Costa.
Excelente matéria!