Jovem denuncia assédio de policiais em Conquista

Ela tinha saído do trabalho acompanhada da mãe e de uma colega quando ouviu "bonitinha você, hein" de um Policial Militar da 77ª CIMP 1 de outubro de 2019 Tamyres Lenes

Em 18 de julho deste ano, um vídeo que mostrava uma jovem grávida, sua mãe e dois policiais militares em meio a uma discussão na rua Dois de Julho, no Centro de Vitória da Conquista, circulou pelo Instagram por meio dos stories. A gravação foi feita por alguém que passava dentro de um Uber, mas que não deseja se identificar. A jovem, que chamaremos de Maria*, tem 24 anos, e na ocasião estava grávida de cinco meses. Ela tinha saído do trabalho acompanhada da mãe e de uma colega, às 18h40. Ao passar em frente a um posto da Polícia Militar da 77ª CIMP, localizado em frente a Primeira Igreja Batista de Conquista, Maria disse ter ouvido a seguinte frase: “bonitinha você, hein”.

“Quando eu ouvi aquilo, eu voltei, mas quando percebi que se tratava de policiais, a minha conduta mudou um pouco. Eu já sabia que eu não poderia agir de uma forma agressiva, então tentei ser branda, sem deixar de fazer algo que eu acho que é certo”, relembrou. Quando Maria acusou o agente mais velho de assédio, os dois negaram imediatamente. “Eles disseram que aquilo não era assédio, que eles haviam feito apenas um elogio”, disse. Segundo a jovem de 24 anos, ao ser contestado, o policial que havia cometido o assédio retrucou dizendo: “Você está achando ruim?, então denuncie”.

Ao ouvir essa afirmação, ela procurou o celular na mochila e pediu os nomes completos dos militares para formalizar uma denúncia, mas eles não quiseram responder. Quando a jovem insistiu, os policiais disseram que estavam constrangidos e mudaram de atitude, passando a agir de forma mais incisiva. Pediram à moça que entregasse a carteira de identidade e, enquanto ela procurava o documento na mochila, um dos guardas pediu que ela abrisse os braços e começou a revista-la.

Nesse momento, a mãe da jovem percebeu que a situação começou a se agravar e decidiu interferir. Os policiais pediram que ela se identificasse e, em seguida,  informaram que sua filha estava detida por desacato a autoridade, crime previsto no artigo 331° do código Penal Brasileiro. Maria pediu à colega que gravasse tudo com o celular: “Amiga, filma isso”, pediu, mas sua colega estava com medo e não reagiu. Foi quando a vítima notou que o policial mais jovem estava muito alterado, aparentemente nervoso e com um tom de voz intimidador. Maria decidiu que ela mesma faria um vídeo, mas só conseguiu filmar por cinco segundos porque o militar arrancou o celular de sua mão. “Minha mãe ficou nervosa porque na hora que o policial puxou o celular, eu tentei resistir um pouco e puxei o telefone em direção à minha barriga. Nessa hora, minha mãe se preocupou com o meu bebê e pediu que eu parasse e entregasse o celular”.

Com o celular da vítima nas mãos, o policial se afastou e chamou mais viaturas. Quando voltou, ele estava com o dedo sangrando e disse que a Maria o havia agredido fisicamente. A jovem disse não ter percebido nada que poderia ter feito o corte porque a capa do seu celular era de borracha e suas unhas não estavam compridas na ocasião. “Eu estava assustada com a quantidade de sangue, não entendi como eu poderia ter feito aquilo”.

O policial mais velho, que havia dito a frase Bonitinha você, hein!”, aproximou-se e buscou uma conciliação, afirmando não existir um motivo para as reclamações. Nesse momento, três viaturas já haviam chegado ao local. “Uma parou em frente ao Banco do Brasil e duas em frente à loja onde a gente estava. Dessas viaturas, desceram mais de 10 policiais”. A jovem disse que se sentia razoavelmente tranquila até esse momento, mas, ao ver a proporção que a situação havia tomado, passou a sentir medo e a ficar em choque.

Maria contou que os policiais que haviam chegado ao local a acusaram de desacato e desobediência, revistaram sua mochila, pediram que ela lhes entregasse seus documentos e os celulares e, em seguida, conduziram sua mãe de forma violenta até uma das três viaturas. “O carro que tinha camburão estava parado em frente ao Banco do Brasil. Foi nesse momento que eu comecei a sentir muito medo. Um dos policiais conduziu minha mãe com brutalidade, puxando-a pelo braço. Acredito que se eu não falasse que estava grávida, ele me conduziria do mesmo modo”, lembra. As duas não foram algemadas.

Maria foi levada até o banco de trás de uma das viaturas e sua mãe para um camburão. “Foi muito chocante. Enquanto eles gritavam comigo, eu senti medo, mas consegui manter uma postura serena. A partir desse momento, as forças que eu tinha para lidar com aquilo caíram por terra”. Os policiais envolvidos no episódio foram em outro carro com a amiga de Maria, levando também seus pertences.

Delegacia

No Disep (Distrito Integrado de Segurança Pública), Maria passou por mais situações constrangedoras. Um dos policiais fez exame de corpo de delito por causa do arranhão no dedo, e, ao retornarem à sala de espera, a discussão continuou. A jovem contou que foi agredida verbalmente inúmeras vezes, mesmo após dizer que estava com muita dor e que gostaria de aguardar tranquilamente. “Eles diziam que o meu comportamento era devido ao fato de eu ser de classe média e falaram que é da classe média que vêm os bandidos. Quando eu dizia que estava sentido dor, eles diziam que eu mesma havia provocado aquilo tudo”, desabafou.

Outro momento constrangedor, segundo o relato da vítima, foi o preenchimento da ficha com um dos policiais com quem havia discutido. Maria foi questionada se era de esquerda, e se era filiada ao PT (Partido dos Trabalhadores), PCdoB (Partido Comunista do Brasil) ou PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). A moça disse que não compreendeu como isso poderia ter alguma relação com o ocorrido. “Quando percebi do que se tratava, eu até ocultei o fato de ser feminista”, afirmou. Ela diz se considerar feminista por acreditar na igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas que não participa ativamente de nenhum grupo organizado.

Maria contou também que no Disep os dois policiais continuaram com as provocações. Eles insinuaram que ela e a mãe não sabiam o que era assédio, e para explicar às duas o significado do termo, fizeram uma busca no Google. De acordo com a professora do curso de Direito e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da Uesb (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Luciana Silva, “o assédio sexual é tratado como crime no Código Penal, sendo caracterizado pelo constrangimento, visando obter vantagem ou favorecimento sexual com prevalência de superioridade hierárquica ou ascendência em razão de cargo, emprego ou função”.

Sobre o caso de Maria e os policiais, a professora e advogada Luciana disse que tudo será apurado e analisado pela Polícia Militar e pelo Judiciário, mas ela não acredita que houve uma “motivação legal para a condução da jovem e de sua mãe, o que, supostamente, pode incidir em abuso de autoridade”.

A jovem relatou que depois de tudo o que aconteceu no dia 18 de julho, ela teve dificuldades para dormir e andar tranquilamente pela cidade. “No dia seguinte, eu fui tentar cumprir os compromissos. Quando eu andei na rua, comecei a perceber o meu medo. Eu olhava para todos os lados, não tirava o celular da mão. Fui para um dos salões da minha mãe, me sentei e não conseguia sair do lugar. Foi aí que eu percebi que eu não estava normal”.

Confira na integra a nota oficial da Polícia Militar da Bahia sobre o caso

No dia 1º de outubro, a Polícia Militar da Bahia, por meio do Comando de Policiamento da Região Sudoeste, informou em nota oficial que tomou conhecimento do ocorrido e que “ toda a circunstância já foi apurada em sede de Sindicância determinada pelo Comandante da 77.ª Companhia Independente de Polícia Militar, visando apurar autoria e materialidade sobre a conduta dos policiais militares, com recente relatório sugerindo a abertura de processo disciplinar para o referido caso, o que será feito imediatamente. Diante de tal contexto, o Comando de Policiamento da Região Sudoeste”.

A Polícia também ressaltou que a conduta dos agentes foi pontual e não representa o compromisso da corporação, que preza pela segurança e o bem-estar dos cidadãos conquistenses.

Cotidiano de assédios

O caso de Maria não é novidade no Brasil. Um estudo de 2016, feito pela ActionAid, organização internacional de combate à pobreza, e divulgado pela Agência Brasil, constatou que 86% das brasileiras que participaram da pesquisa sofreram assédio em locais públicos de suas cidades. Os tipos mais comuns de importunação são os assovios, olhares insistentes e comentários. Até mesmo policiais mulheres estão sujeitas a situações de assédio e constrangimento. Em uma pesquisa de 2015 , foi constatado que 40% das mulheres que trabalham na polícia já sofreram assédio sexual ou moral dentro e fora das corporações.

Depois de passar por uma situação estressante durante a gravidez, Maria vai receber suporte psicológico da Clínica de Direitos Humanos da Uesb, que também divulgou uma nota pública de solidariedade juntamente com as comissões de Direitos Humanos e da Mulher da OAB, subseção Vitória da Conquista, os coletivos feministas Obá Élekó e Negras da Dió, a comissão de Direitos Humanos Cidadania e Defesa da Mulher da Câmara dos Vereadores e a União de Mulheres de Vitória da Conquista. Até o momento da publicação dessa reportagem, a jovem e a mãe permanecem com os nomes fichados na polícia por desacato e desobediência e ambas movem ações para reverter a situação.

*O nome da jovem e dos policias não foram revelados por motivos de segurança e privacidade.

Foto destacada: Arquivo/Avoador

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