Elas vencem barreiras e ocupam profissões tipicamente masculinas
15 de junho de 2017 Anne Ellen MarquesAs mulheres têm conquistado seu espaço no mercado de trabalho. Mas um espaço entre profissões antes dominadas apenas por homens. Em Vitória da Conquista, como em demais lugares do Brasil, não diferente. Existem profissionais como mecânica, açougueira, motorista de ônibus, segurança patrimonial. Elas possuem nome, rosto e uma trajetória marcada pela superação do preconceito, da desvalorização e até do assédio sexual.
Elza Oliveira Guimarães, 50 anos, é uma dessas mulheres que escolheu uma profissão do padrão tipicamente masculina. Mas nada nem ninguém a fez mudar de ideia. Ela trabalha há 10 anos com balanceamento, troca de pneus e outros serviços mecânicos, e conserta cerca de 20 carros por dia. A conquistense tem formação em magistério e trabalhou em uma escola municipal da cidade, porém o seu sonho sempre foi ser mecânica. “Quando eu cheguei aqui, fazia outra atividade, mas sempre ficava observando os meninos trabalharem. Eles tiveram muita resistência em me aceitar, até brigaram. Alguns foram embora e falaram que aqui, na oficina, não era lugar pra mulher, e sim para homem. Eu respondia de imediato para eles, ‘não tem isso não, mulher também pode”.
O caminho até a realização do seu sonho foi cheio de obstáculos e cercado por preconceito. Além das piadas diárias dos clientes, Elza se deparava ainda com atitudes machistas dos próprios colegas de trabalho. “Uma das coisas que me marcou foi eles querendo me ensinar errado só para eu não conseguir, e se faziam de desentendidos para não me explicar. Mas não deixei eles me vencerem não, continuei a observar e anotava tudo. E com pouco tempo aqui, já estava vendo os erros que eles cometiam, ia falar e eles achavam ruim”, relembra a mecânica.
Outra historia de mulher desbravadora é a Flavia Andrade, 41 anos, motorista de transporte coletivo há oito anos. Bem humorada, ela não se vê em outro trabalho. “Ah, eu adoro isso aqui. Eu não me vejo fazendo outra coisa a não ser dirigindo um ônibus. Gosto de fazer minhas coisas em casa, porém não me vejo em outra profissão a não ser de motorista. Se precisar dirijo o dia inteiro, me sinto como se tivesse algum poder. Adoooooro (risos)”.
Ela foi a primeira mulher a dirigir ônibus de transporte coletivo em Conquista, e por ser mulher enfrentou diversos obstáculos. “O pessoal já se acostumou. Mas antes, no começo, falavam que por eu ser mulher não iria saber dirigir, que não ia conseguir. Duvidavam da minha capacidade, faziam descaso. Foram tantas coisas…Mas nunca desanimei do meu desejo, fiquei cinco anos sofrendo sozinha, só eu de mulher. Me sinto orgulhosa de ter começado a abrir a porta para outras mulheres que hoje são minhas colegas de trabalho”, relembra Flávia. Atualmente, das duas empresas de transporte coletivo que operam na cidade somente a empresa Vitória emprega mulheres como motoristas. O número aumentou desde a entrada de Flávia, subindo para três, mas, ainda assim, elas são uma minoria.
As historias de Elza e Flávia, apesar de inspiradoras, são exceções, não é regra geral que uma mulher pode ser aquilo que quiser. Fatores históricos e culturais contribuem para essas diferenças entre os gêneros feminino e masculino. O trabalho laboral, que exige o raciocínio rápido, preciso e a força física, permanece atrelado ao homem, enquanto áreas ligadas ao “cuidar” continuam sendo ocupados pelas mulheres.
Segundo professora do Curso de Ciências Econômicas da UESB e Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Política e Sociedade (NETPS/UESB), Andréa Braz da Costa, a “divisão sexual do trabalho baseia-se na divisão de funções diferentes para homens e mulheres, em que situa na esfera da produção o lugar do homem e na esfera da reprodução o lugar da mulher”. Segundo ela, “nessa lógica também se pode identificar uma hierarquização no qual o trabalho do homem se constitui o mais importante, subordinando, dessa forma, o trabalho feminino.”
No mercado de trabalho também estão mulheres em áreas ditas masculinas por necessidade. É o caso de Esmeraldina Dias Machado, que foi a obrigada a entrar em um novo ramo profissional. Com apenas 23 anos, ela se tornou uma açougueira. “Na verdade, não fui eu quem quis, foi uma necessidade.” Hoje em dia está muito difícil arrumar emprego e o que eu arrumei nessa fase da minha vida foi o açougue, e o meu aprendizado foi na prática. Quando comecei, não conhecia nada, mas aí através do meu patrão fui apreendendo”, explica comenta.
O trabalho dela é valorizado pelo patrão, já a clientela do açougue formada por homens costuma fazer piadas machistas. “Isso é comum por que eles acham que é uma profissão para os homens, e falam: ‘ah, ela é mulher não sabe de nada. Vai cortar a carne errada’. Mas acho que mesmo assim, nós, mulheres, devemos persistir porque eu vou muito por aquele ditado: a mulher deve estar onde ela quer estar”, afirma Esmeraldina confiante.
Já Analice Teles desde criança admirou profissões que estiverem relacionadas à segurança. Almejando encontrar trabalhos que fossem dessa área, ela fez um curso básico de segurança e, hoje, conta com orgulho as vitórias. “Fui a primeira segurança patrimonial a ser convocada pelo concurso municipal. De 40 pessoas, fui a única mulher, e depois de alguns meses, convocaram outras. Há pouca participação das mulheres nos cursos e na área de atuação aqui na cidade.”
Como as demais mulheres Analice também já foi muito questionada sobre a escolha da profissão e o seu talento para a profissão. “No início, alguns falaram que a é mulher sexo frágil, que não tem capacidade para defender o patrimônio, perguntavam como eu tinha coragem de exercer essa profissão masculina, e ainda diziam que eu iria perder a minha feminilidade. Só que eu consegui surpreender a todos eles. Hoje, sou admirada pela minha coragem de estar exercendo um papel que é desenvolvido mais pelos homens”.
Mesmo presente em espaços profissionais tipicamente masculinos, ainda, é visível a desvalorização da atividade desempenhada pela mulher em comparação ao homem. “Evidentemente, as conquistas dos trabalhadores ocorrem ao longo de tempo (de séculos), mas não de modo completo e homogêneo no mundo, e nessa trajetória, seguramente, embora tenha obtido conquistas, não podemos falar de igualdade no mercado de trabalho entre homens e mulheres”, analisa a professora Andrea.
Além da capacidade profissional posta à prova em ambientes predominantemente masculinos, muitas trabalhadoras ainda têm que lidar com o assédio dos homens. Aline do Nascimento Santos, frentista em um posto de gasolina, relata que a função que desempenha não é difícil, o complicado mesmo é lidar com o assédio sexual diário. “Todo dia, toda hora, sofro com o assédio. Me pedem o whatsapp, o número do telefone, fazem piadinhas, oferecem carona, me dão dinheiro. Acho que eles deviam respeitar mais o meu trabalho. Isso é o que me chateia hoje no meu trabalho. Meus colegas me respeitam e até me defendem desses abusos dos clientes”.
Pedreira viraliza na internet
Inspirada pelo pai, Jéssica Mayra Barbosa dos Santos, 23 anos, que mora na cidade de São Paulo, começou a aprender os ofícios da profissão de pedreiro muito nova, aos 13 anos. Interessada em arranjar dinheiro para um novo par de tênis, ela conseguiu o seu primeiro trabalho como pedreira. A partir daí, ela não parou mais. “As pessoas sempre falam porque eu não procuro um serviço mais leve. Mas eu gosto de trabalhar como pedreira, é uma coisa que me relaxa e que eu gosto de me envolver”.
Apesar da realização profissional ao exercer a profissão escolhida, Jéssica diz que sofre questionamentos e dúvidas frequentes sobre a qualidade do seu trabalho. “Têm pessoas que acham diferente e querem conhecer mais, outras, ficam olhando você trabalhar para ver se vai fazer certinho.”
Para além dos comentários acerca de sua escolha profissional, após divulgar um vídeo na internet no qual ultrapassou a marca de 45 milhões de visualizações, a pedreira passou a enfrentar situações desagradáveis em sua rede social. “Depois que o meu vídeo viralizou, um ou dois caras tentaram desvalorizar meu trabalho falando que eu queria fama. Porém, eu só coloquei o vídeo trabalhando, não procurei nada demais”.
A pedreira ressalta como é importante essa transformação no campo profissional e de como a divulgação do seu trabalho pode ajudar outras mulheres. “Acho legal que o cenário está mudando, porque aí quebra esse tabu de que mulher não pode trabalhar com isso, ou de homens que têm preconceito.Antes tinham profissões que a mulher não se encaixavam e, hoje, se encaixam. Então, com meu vídeo, muitas mulheres se identificaram e buscaram força para trabalhar com isso. É uma profissão como qualquer outra, como tem policial homem tem policial mulher, jogador e jogadora. Então é legal todo mundo ter essa noção das coisas e do trabalho, e de que você também pode ser uma pedreira.”
Para Jessica: “o importante na vida profissional é o trabalho ser digno, e você estar se sentindo bem. Não adianta eu trabalhar em um escritório, no shopping, se eu não me sentir bem, eu trabalho com isso porque eu gosto. Erga a cabeça e não ligue para o preconceito, o importante é saber quem você é e onde quer chegar”.
Elza, Jéssica, Flávia, Esmeraldina, Aline e tantas outras espalhadas por Conquista e todo país servem de motivação para outras mulheres que querem trabalhar em áreas em que há predominância masculina. A desconstrução do preconceito, da diferenciação de gênero e salário exige persistência e a luta constante das mulheres para vencer essas barreiras no mercado de trabalho, algo que já uma realidade, como demonstraram as entrevistadas da reportagem.