“Eu era vítima, mas me sentia culpada”, diz mulher agredida

Apesar de possuir uma delegacia especializada e um centro de apoio, violência doméstica ainda é uma realidade em Vitória da Conquista 7 de agosto de 2021 Gabriela Matias, Luana Carvalho e Talyta Brito

Neste sábado, dia 7 de agosto, a Lei Maria da Penha completa 15 anos. Mesmo com uma das legislações consideradas mais avançadas no mundo, a mulher brasileira é uma das que mais sofre violência doméstica, sendo o Brasil  o quinto colocado no ranking de feminicídio, de acordo com Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).

Durante a pandemia da covid-19, especialmente em 2020, o que já era grave ficou ainda pior. Nesse período, 105.671 queixas de violência contra a mulher foram registradas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), segundo dados divulgados em março deste ano. Desse total, 75.753 eram de violência doméstica e familiar, que foram direcionadas ao Disque 100 (direitos humanos) e ao Ligue 180 (central de atendimento à mulher). 

Em Vitória da Conquista, essa violência também é realidade. Conforme dados da Delegacia Especializada da Mulher (Deam), entre janeiro e maio de 2021, Vitória da Conquista registrou 817 ocorrências de violência doméstica. Um aumento de 304 casos, em comparação com o ano anterior, sendo que mais de 300 medidas protetivas foram solicitadas.

Uma dessas mulheres que já sofreu violência doméstica relata sua história. Durante quase 20 anos, Roberta, nome fictício, teve um relacionamento abusivo e violento. Demorou para conseguir vencer a co-dependência do ex-companheiro e quebrar o ciclo da violência doméstica. Tudo começou um ano após o nascimento do seu caçula, quando ela sofreu a primeira agressão. “Durante anos, eu aguentei a situação sozinha. Eu não me abria com ninguém”. O casal se conheceu ainda na adolescência e os pais da moça eram contra o relacionamento. Na época, ela tinha 14 anos e o rapaz 24. Mesmo com todas as resistências familiares, o casal optou por morar junto, três anos depois do início do namoro. “Eu fui uma adolescente muito rebelde. Começamos a namorar escondido, pois meus pais não aceitavam”, relembra.

As agressões aconteciam dentro do quarto do casal, à noite ou de madrugada, segundo Roberta contou à reportagem.

 

 

Com o passar do tempo, a jovem foi se aproximando do catolicismo, religião dos seus pais. “Eu decidi, na verdade, que eu queria casar na igreja. Não era nem por conta do casamento em si, mas porque eu queria comungar² ”. No início, o marido a acompanhava nas programações religiosas, mas isso logo mudou. “Quando eu comecei a frequentar a igreja, percebi que a gente fazia coisas que não eram legais. Eu comecei a dizer não em algumas situações. Que eu me lembre mesmo, as coisas começaram a ficar tensas quando eu comecei a impor limites, principalmente na questão sexual.”  

As agressões aconteciam dentro do quarto do casal, à noite ou de madrugada. “Estava com dois filhos pequenos, dependia dele financeiramente e emocionalmente. Então, ele me manipulava do jeito que queria. Eu sentia que isso estava errado de alguma maneira, mas não sabia como reagir.” As agressões que anteriormente aconteciam uma ou duas vezes ao ano passaram a ser frequentes. “Depois a coisa relaxou, era na frente de quem tivesse. Meu filho mais velho das últimas vezes precisou intervir. Eu não aguentava mais ficar dentro do quarto com ele de noite, sofrendo.”  

Sobre a relação entre o ex-marido e os filhos, que atualmente estão com 17 e 18 anos, ela diz que é madura, que foram eles os responsáveis por defendê-la. “Ele [o filho mais velho] deixou claro para o pai que aquilo que fazia não era o certo e que, se precisasse, chamaria a polícia. Foi só depois disso que ele (marido) saiu de casa.” Os garotos moram com o pai porque Roberta está desempregada. 

A vítima estima que as as pancadas se iniciaram entre os anos de 2005 e 2006, mas ela só foi procurar ajuda cerca de nove anos depois. “Em 2015, eu não me lembro como, fiquei sabendo do Crav. Eu fui lá sozinha procurar ajuda e lá eu passei pela assistência social. Aí, eles encaminham a gente para o jurídico, caso você queira alguma coisa.” O Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos (Crav) fica situado na Avenida Jesiel Norberto, nº 40, e há 15 anos atua na prevenção e acompanhamento de mulheres vítimas de violência residentes em Conquista.  

“Eu passei um tempo sendo usuária do Crav sozinha, escondida de todo mundo. Eu tinha colocado na minha cabeça que eu precisava convencê-lo, conscientizá-lo que aquilo que ele estava fazendo era errado.  Na verdade, eu passei muitos anos lutando por meu casamento focada nisso. Eu queria fazê-lo entender que eu não casei para me separar. Eu era vítima, mas ao mesmo tempo, me sentia culpada.” 

Diante dos incessantes conflitos dentro de casa, foi preciso buscar apoio. “Eu comecei a buscar ajuda de grupos de casais. As pessoas se abriam para gente até um determinado limite, eu me sentia muito sozinha. Eu sentia que as pessoas não queriam se envolver. A gente chegou a frequentar grupos de casais, até que eu entendi que estava dando murro em ponta de faca. Estava lutando por uma coisa que nem eu queria mais. A gente chegou a se separar várias vezes, separava, voltava. A iniciativa de voltar era sempre minha.”

Embora Roberta reconheça que houve uma preocupação tanto da entidade religiosa a qual pertencia quanto do órgão da Prefeitura, ela desabafa que não foi o suficiente. “Eu não encontrei apoio, a verdade foi muito essa. Eu encontrei um apoio superficial na igreja e no Crav. Eu sempre fui muito questionadora, muito curiosa, eu comecei a estudar por conta própria. Eu não estou encontrando apoio em ninguém. O que eu posso fazer por mim? Eu comecei uma busca incessante por autoconhecimento que é minha vibe até hoje.” 

Segundo a doutoranda em Psicologia Social, especialista em Psicologia em Saúde e psicóloga do Complexo Hospitalar Clementino Fraga, na Paraíba, Liana Mirela Souza Oliveira, a violência começa de forma muito disfarçada. “Normalmente, essa violência ela é insidiosa. Às vezes, são anos de um relacionamento abusivo. A mulher passa a se reconhecer no lugar de que foi vítima. Isso vai deixando marcas associadas a alguns sofrimentos que só tempos depois, quando ela consegue de fato sair desse relacionamento ou quando essa violência chega de fato a uma violência física, que de fato a vítima  reconhece tudo que sofreu.”

Por fim, a profissional relembra a sanção da Lei 14.188/2021, que tipifica violência a psicológica como crime. “A grande questão é como a vítima identifica essa violência psicológica? Até porque ela aparece muito diluída e muito associada a alguns fenômenos emocionais. Então, por exemplo: só acontece quando ele bebe, aconteceu porque ele perdeu alguém ou porque perdeu o emprego. A mulher acaba não percebendo aquela violência, porque ela associa alguns fatores a eventos emocionais.”

Em 2019, Roberta divorciou- se. Ela  não achou necessário solicitar medida protetiva contra ele. No entanto, até hoje, tem gatilho quando escuta histórias, vê ou fica sabendo de casos de violência contra a mulher. A última vez foi quando viu o caso da agressão sofrida pela mulher do DJ Ivis, do Ceará.  “Aquelas cenas  de agressão me fizeram reviver a minha própria história.” 

As marcas da violência em uma mulher ficam marcadas para sempre, por isso é tão importante buscar ajuda psicológica, os serviços de apoio e até a polícia o quanto antes. Os números estão aí para mostrar que muitas demoraram para sair desse tipo de relacionamento e pagaram com a própria vida. 

Serviços de apoio

O Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos (Crav), inaugurado em 2006, atende mulheres em situação de violência doméstica. De acordo com a coordenadora de Política para as Mulheres da Prefeitura de Vitória da Conquista (PMVC) e gerente do Centro desde 2017, Dayanna Eveline Andrade,  o órgão atende as mulheres por demanda espontânea e por encaminhamento de outros serviços públicos, como a Delegacia de Atenção à Mulher (Deam), Centro de Referência Especializada da Assistência Social (Creas), Centro de Atenção Psicossocial (Caps), Centro de Referência Especializado de Assistência Social para a População em Situação de Rua (Centro Pop), Defensoria Pública, Centro de Atenção e Apoio à Vida Dr. David Capistrano Filho (Caav).

O atendimento por demanda espontânea não é apenas quando a vítima decide denunciar, mas também por pessoas próximas a ela. “Eu gosto de frisar que a denúncia não é uma condição, ‘Só vai ter o atendimento se denunciar’, não. Porque a gente sabe que muitas mulheres não buscam ajuda no início, não denunciam por medo. O que a gente vai fazer? Enquanto serviço, a gente vai trabalhar aquela situação daquela mulher, para que futuramente ela possa realizar a ocorrência, a gente vai empoderá-la, para que ela se sinta confiante, para fazer a denúncia [na delegacia]”, explica Andrade.

Ao chegar no Crav, a mulher é atendida por uma equipe multidisciplinar, composta por assistente social, psicóloga e advogada. Foto: PMVC

 

 

Ao chegar no Crav, a mulher é  atendida por uma equipe multidisciplinar, composta por assistente social, psicóloga e advogada. A assistente social faz a escuta e a acolhida, é o primeiro contato que a mulher tem ao serviço. Desse atendimento, saem os encaminhamentos para os demais serviços, como o da advogada, ou então há o direcionamento à Deam (Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher) e, em caso de necessidade, quando existe risco de morte da mulher, a vítima é encaminhada a um dos três abrigos do Governo Estadual. “Esse encaminhamento é o último recurso a ser realizado, que é a institucionalização. O abrigo é um local sigiloso, onde a mulher não tem acesso à rede social, telefone. Ela vai para lá justamente porque corre risco de morte”, ressalta a coordenadora do Crav.

Para ampliar o atendimento e municipalizar o abrigamento de mulheres,  a Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura de Conquista está em processo de conclusão da Casa Rosa, um abrigo para atender aquelas que estiverem com a vida em risco. É uma obra financiada por um edital do Ministério do Desenvolvimento Social de 2017, cujo investimento é da ordem  de R$ 600 a R$700 mil. A Casa Rosa vai receber de  10 a 20 mulheres, com os seus respectivos filhos. 

Durante a pandemia, as denúncias no Ligue 180 aumentaram, mas por outro lado, o número de atendimentos a novas mulheres no Crav diminuiu. “As mulheres não estavam saindo de suas residências para pedir ajuda”, relata a coordenadora do Crav. De acordo com dados do Crav, em 2017 foram atendidas 184 mulheres, no ano seguinte, 234 novas mulheres, em 2019,  299, e em 2020, caiu para 208. “A gente percebeu que a pandemia trouxe uma pandemia dentro, a violência contra a mulher é uma pandemia dentro de outra pandemia”, destaca Andrade.

 

 

Em 2020, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) alertou em abril daquele ano, que em Conquista havia uma subnotificação dos casos de violência contra a mulher durante o isolamento pandêmico. A defensora pública, que atua como titular da 13ª DP – Família e Violência Doméstica/Defesa da Mulher (vítima), Flavia Cristina Coura de Araújo, chegou até a solicitar prioridade ao Judiciário para que medidas mais duras fossem tomadas contra a intimidação dos agressores às vítimas de violência. Também em 2020 foi instalada na cidade a 2ª Regional de Defensoria, uma unidade direcionada exclusivamente a trabalhar em defesa da mulher e da família.

Deam em Conquista 

  Situada na Rua Humberto de Campos, nº 205, a Deam (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher) é aberta a denúncias de todas as mulheres que tenham sofrido algum tipo de violência. No entanto, os atendimentos realizados têm sido predominantemente de mulheres negras, pobres, com baixa escolaridade e baixo nível social, sendo as denúncias mais frequentes  ameaça, lesão, injúria, difamação e troca de ofensas. Segundo a delegada Gabriela Garrido, isso ocorre devido à desigualdade social. “As outras classes têm recursos particulares que fazem com que procurem menos a delegacia. Essas pessoas mais pobres não têm a quem recorrer e buscam mais o serviço público, que se faz ainda mais necessário.”

Em relação ao atendimento, a delegada diz que é preciso aumentar a cobertura da Deam e melhorar a estrutura do local. “A normativa das delegacias da mulher prevê para uma cidade do porte de Vitória da Conquista pelo menos três Deams, e nós temos apenas uma, com um número muito insuficiente de funcionários. Para a delegacia funcionar em regime de plantão, precisaria de uns vinte agentes de polícia, o dobro de escrivães que eu tenho, e mais quatro delegadas.” O atual corpo de funcionários da delegacia consiste em quatro investigadores, duas delegadas de polícia, quatro escrivãs e duas registradoras de ocorrências, segundo informações da própria delegada. A Deam está aberta apenas de segunda a sexta-feira, não funciona nos fins de semana. 

“A minha maior dificuldade aqui, quando eu cheguei, foi pela quantidade de procedimentos atrasados que tinha. Eu acredito, de verdade, no serviço público de qualidade. Quando eu olhava aquele tanto de coisa acumulada de tantos anos, achava que  não ia conseguir ultrapassar esse tanto de coisa para poder ter um atendimento melhor, mas graças a Deus eu consegui”, recorda Garrido. Ajudando a vítima eu não estou ajudando só ela, estou ajudando uma família, ajudando crianças a não crescerem naquele ambiente de violência, que as crianças vejam a mãe tomar uma atitude e não se resignar diante daquilo. Então o trabalho tem um significado social também”. 

Além dos atendimento às denúncias, a Deam também tem desenvolvido um trabalho social às vítimas de violência. Na delegacia, o atendimento das vítimas de violência é imediato.  É realizado o boletim de ocorrência com as declarações da mulher,  e é feita a medida protetiva, não sendo  necessário retornar à delegacia,  o que derrubou o índice de desistência para 5%, segundo Garrido. 

A delegada também é a autora do projeto Bolsa Lilás, que pretende fornecer um auxílio financeiro para mulheres vítimas de violência doméstica do município de Conquista. A proposta conta com o apoio da atual prefeita, Sheila Lemos (DEM) e, no momento, está em  tramitação para discussão e votação na Câmara dos Vereadores. “A Bolsa Lilás é uma iniciativa da Deam que a Prefeitura apenas abarcou. Começou a ser preparada em março deste ano, que é o mês da mulher, e foi meu primeiro março aqui, 15 anos da Lei Maria da Penha, queria preparar alguma coisa bem bacana.” 

Agosto Lilás

Desde o dia 30 de julho, acontecem as ações do Agosto Lilás em Conquista . A campanha, que comemora os 15 anos do Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos (Crav) e da Lei Maria da Penha, é uma promoção da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e da Deam.

De acordo com a coordenadora de Políticas para Mulheres, Dayana Eveline Andrade, o trabalho realizado pelo Crav e a Lei Maria da Penha têm sido importantes no combate à violência contra a mulher. Já a delegada da Deam, Gabriela de Diego Garrido, enfatiza que campanhas como essas do Agosto Lilás podem ajudar a libertar mulheres vítimas de violência. “Colocando o assunto em pauta, a gente estimula aquela pessoa que está sendo vítima de violência a denunciar, estimula um familiar que conhece alguém vítima de violência a denunciar.”

 

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