Masculinidade tóxica: prejudicial aos homens e um perigo às mulheres
A desconstrução do machismo pode ajudar o homem a lidar melhor com seus problemas e também reduzir o ciclo de violência contra as mulheres 22 de dezembro de 2020 Brendon Eduardo, Lucas Oliveira, Marlon Martins, Sebastian Nascimento e Thiago AraújoDe acordo com informações divulgadas pela Delegacia da Mulher (DEAM), os casos de estupro em Vitória da Conquista cresceram 133% em apenas quatro anos, de 2015 a 2019. No ano de 2020, até o mês de outubro foram registrados 111 casos. Durante a pandemia da covid-19, os casos de feminicídio registrados no primeiro semestre do ano cresceram em 20% no estado da Bahia. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 11 minutos ocorre um estupro no Brasil.
No dia 3 de novembro, o site The Intercept Brasil publicou uma matéria que gerou comoção nacional, sobre o caso Mariana Ferrer. A jovem de 23 anos foi estuprada por André Camargo Aranha no ano de 2018. Neste ano, o processo chegou ao fim e o acusado foi inocentado. O veículo jornalístico revelou vídeos até então inéditos em que os advogados de defesa humilham a vítima diante do tribunal.
O aumento do número de estupros em Conquista e o caso de Mariana Ferrer escancaram o machismo e a violência contra a mulher. Segundo a estudante de Psicologia e militante pelos Direitos das Mulheres, Alice Benevides, os espaços que discutem as violências e opressões que as mulheres sofrem são majoritariamente ocupados pelas próprias vítimas dessas violências. A reclamação comum dentro dos movimentos feministas e de luta pela igualdade de gênero é que os homens não ocupam o papel de aliados na luta feminina, nem se responsabilizam pelos seus atos, ou reconhecem os privilégios de ser homem na atual sociedade.
Além disso, os debates sobre a masculinidade e o papel dos homens neste cenário de violência contra a mulher não acontecem entre eles. Alice ressalta que não se pode delegar apenas a mulher esse fardo. Diante dessa perspectiva, a equipe do Avoador decidiu reunir um grupo de repórteres homens, para procurar outros homens a fim de debater a masculinidade e questioná-los sobre o seu papel na luta por respeito e pela igualdade de direitos. Pedimos entrevistas para cinco homens, mas somente dois se disponibilizaram a falar com a reportagem. Isso também diz muito sobre o quanto ainda é preciso avançar.
Essa percepção de que homens não discutem questões relacionadas à masculinidade foi o que levou o cineasta Daniel Leite a fazer uma série de lives em seu perfil no Instagram com o título “Conversas com meninos antes de dormir”. As conversas ao vivo ocorreram entre os dias 21 de julho e 28 de agosto e trataram dos mais variados temas, tais como masculinidades, pornografia, amor, futebol, sexualidade, assédio, educação e paternidade, para debater o papel do homem e da masculinidade em um espaço que não seja tóxico ou violento.
Para Daniel, a necessidade de falar sobre esses assuntos veio de suas próprias vivências, ao perceber que os espaços tidos como masculinos negligenciam os sentimentos dos homens. Em uma live que participou com algumas mulheres, ele disse que “não dá para discutir machismo sem trazer o agente central do machismo para essas conversas, ou seja, o homem”, e daí surgiu o projeto que tem desenvolvido no Instagram.
Em geral, tudo que afeta o sexo masculino é considerado um tabu, desde o trabalho doméstico até a demonstração de afeto entre homens, mesmo entre pais e filhos. “O sexo frágil na verdade é o masculino, tudo nos afeta”, disse o cineasta.
Ao falar sobre pornografia, por exemplo, Daniel enfatizou os problemas sociais que o consumo desse conteúdo provoca. O uso excessivo de pornografia pode causar problemas para se relacionar sexualmente, impotência ou ejaculação precoce, além de afetar as relações entre o feminino e o masculino. “A mulher é sempre subalternizada enquanto o homem tem que estar sempre viril”, destacou Daniel. “Se o homem tem um processo de impotência, ele vai ser ridicularizado. Isso afeta a relação dele com a sexualidade e, consequentemente, com sua parceira”.
A construção da masculinidade tóxica é o elemento central desse cenário de homens que não falam sobre seus problemas nem discutem e se engajam em eliminar a violência contra a mulher. Para o professor do curso de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Sérgio Lizias Rocha, a masculinidade tóxica aparece nas relações sociais como um fenômeno embasado, por exemplo, pelo mito do Jardim do Éden, em que a mulher foi feita a partir da costela do homem. Desta maneira, a mulher “já nasce” como propriedade do homem, a quem ela deve obediência, uma vez que é tida como objeto.
O sistema que garante poder aos homens e inferioriza o sexo oposto é o patriarcal. Por meio dele, a mulher é objetificada e os homens são ensinados, desde crianças, que eles podem decidir o que é melhor para eles e para as mulheres. “O homem, como diz o sociólogo Pierre Bourdieu, acaba vivendo num ‘ardiloso privilégio’, pois se sente poderoso. Porém, esse ‘privilégio’ custa caro, pois a construção da masculinidade é um desafio para ele”, disse o psicólogo.
Mesmo com a ocorrência de processos históricos e sociais que determinaram a desigualdade e a submissão da mulher no passado, mas que perduram até o presente, faz-se necessária a construção de uma identidade masculina saudável. Essa construção, com uma sociedade mais igualitária e equânime, vai permitir que o homem possa manifestar as vulnerabilidades e sensibilidades. O caminho para perceber esse “ardiloso privilégio” do homem que o prejudica também é o autoconhecimento que um processo psicoterapêutico pode trazer.
O psicólogo explicou ainda que outra forma de desconstruir a masculinidade tóxica é a reflexão dos homens frente às atitudes que tomam ao se relacionarem com as mulheres, verificando quais são os padrões que repetem ou avaliando as queixas mais comuns das mulheres que tiveram algum relacionamento. “O homem pode abrir mão de uma masculinidade tóxica ressignificando o seu papel, entrando em contato com suas fragilidades e retirando de si o peso de achar que é ele quem precisa conduzir ou dominar a mulher.”
“Homem não chora”, “homem de verdade é homem bruto”, “homem não mostra fraqueza”, “homem não cuida da beleza” são frases que desde criança o sexo masculino escuta diversas vezes. Elas apresentam o perfil “perfeito de masculinidade”, mas é tóxica e destrutiva. A psicóloga e conselheira tutelar Letícia Prado, destacou que esses padrões sociais fomentam a ideia de que o homem é superior e, quando contrariado, passa a agir de maneira violenta. “Enquanto psicóloga, percebo que a masculinidade tóxica traz consigo danos causados à autoestima e autoconfiança, promovendo o não desenvolvimento saudável da inteligência emocional para lidar com possíveis adversidades vivenciadas no dia a dia.” Por conta disso, muitos homens desenvolvem agressividade, desrespeito e não sabem lidar com a raiva, a frustração e a angústia.
Combater a masculinidade tóxica é papel dos homens para garantir a eles, não só um modelo de vida mais saudável e menos violento, mas também é uma forma de se aliar às lutas pela igualdade de gênero. “Nós homens precisamos dar espaço para as mulheres, para que elas ocupem posições de destaque, é necessário saber ouvir e não questionar. Precisamos reconhecer que existem locais em que só as mulheres podem falar”, destacou o cineasta Daniel Leite.
Lei Maria da Penha e os homens
A lei Maria da Penha foi sancionada em 2006 e criou mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher efetuada por homens. Foi resultado de lutas do movimento feminista e da farmacêutica Maria da Penha que lutou para que seu ex-marido e agressor, Marco Antonio Heredia Viverosque, que a deixou paraplégica, fosse condenado. Além de medidas punitivas, a lei prevê direcionamentos sócio-educativos que visam a reinserção do agressor na sociedade.
A lei visa fortalecer a autonomia das mulheres e educar a sociedade. Ela tipifica todos os tipos de violência doméstica e familiar (física, psicológica, patrimonial), cria políticas públicas de assistência às vítimas, institui juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, prevê as medidas protetivas de urgência e estabelece programas educacionais com perspectiva de gênero, raça e etnia.
Dentre as medidas educativas previstas pela Maria da Penha, um dos encaminhamentos é a reinserção dos agressores na sociedade. Entre as determinações, está que homem agressor deve comparecimento a programas de recuperação e reeducação e fazer acompanhamento psicossocial, de forma individual ou em grupo de apoio. Entretanto, apesar de constar em lei, esses espaços de acompanhamento para o homem ainda são raros e pouco comentados.
Segundo a advogada e professora do curso de Direito da Uesb, Luciana Silva, a lei Maria da Penha traz uma série de equipamentos, como centros de educação e reabilitação de agressores, mas cabe à União, estados, municípios e Distrito Federal implementarem. Esses espaços de combate e prevenção à violência doméstica e intrafamiliar contra as mulheres são fundamentais para prover mudanças na sociedade. “Contudo não há um formato único para esses grupos, que em geral funcionam por meio de grupos reflexivos com equipe multidisciplinar”, explicou.
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