Mulheres trans e travestis reivindicam políticas de inclusão na Uesb
Nos três campi da Uesb, há poucas pessoas que se identificam pelo nome social e ainda não há políticas de inclusão específicas para a população trans e travestis. 1 de novembro de 2022 Por Daniela Palmeira, Letícia Mendes, Raila Costa, Gisele Oliveira e Jéssica Sande“Eu acho que esse espaço não é pra mim”, conta Gabi Bomfim Cruz, 26 anos, que é mestranda no Programa de na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), no campus de Vitória da Conquista, e que por muitos momentos, tem se percebido em um caminho solitário durante sua trajetória acadêmica. Ela faz parte da pequena parcela de 0,1% da população trans que conseguiu alcançar o ensino superior, de acordo com uma pesquisa realizada em 2018 da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Diante dessa realidade desanimadora, ingressar e permanecer na universidade é um desafio para esse grupo minoritário Isso porque, segundo a professora e psicóloga social, Jaqueline Gomes de Jesus, “as pessoas trans são historicamente estigmatizadas, marginalizadas e perseguidas devido à crença na sua anormalidade.” Essa ainda é uma realidade no Brasil que, pelo quarto ano consecutivo, ocupa a primeira posição no ranking das nações que mais matam minorias sexuais.
Por isso, ocupar espaços públicos, como o da universidade, é símbolo de resistência e de luta diária para Gabi. Ao mesmo tempo em que o mestrado é uma conquista importante, tem sido acompanhado por ela do medo de não conseguir levar suas pesquisas voltadas às questões trans para fora dos muros da academia. “Fico pensativa de até aonde minha pesquisa pode contribuir com minha comunidade ou não. É um misto de sensações, felicidade, tristeza, preocupação, e atenção para que o trabalho que faço acabe voltando para gente de alguma forma.”
Estar presente no espaço acadêmico também é importante para a graduanda em Física da Uesb, de Conquista, Calíope Gomes, 20 anos, igualmente uma mulher trans. Para ela, as mulheres trans não deveriam ficar restritas a falarem somente sobre assuntos que as machucam. “Uma coisa muito triste é quando pessoas que pertencem a ‘minorias’ são reduzidas a falar sobre aquilo que as fere, impedidas de ocupar outros espaços. Não me permito ser impedida de ocupar outros espaços também. Eu me permiti falar sobre outras coisas, sobre outros tópicos que são também muito importantes.” Ela tem se dedicado a debater problemáticas sociais e a estudar sociologia e filosofia, além das ciências exatas.
Apesar da vontade e do empenho em desafiar as estruturas sociais, muitos são os fatores que interferem para que essa parcela da população tenha acesso ao ensino superior público de qualidade. Como é o caso da licenciada em Teatro pela Uesb de Jequié, Judá Nunes, 25 anos, que durante o processo da graduação, sofreu com assédio moral, sexual e preconceito por ser travesti. Em 2016, ela ingressou no curso com o sonho de seguir a carreira acadêmica e tornar-se professora, sem imaginar que a realidade se transformaria em pesadelo.
Judá relembrou com indignação alguns dos episódios que mais a marcaram durante o período de graduação. Dentre eles, quando um docente a fez sentir-se desconfortável ao usar o corpo dela como exemplo em uma aula de anatomia. Na pós-graduação não foi diferente, em uma disciplina durante o período de Ensino Remoto Emergencial (ERE), outro professor não a chamava pelos pronomes corretos, mesmo após ela ter comunicado diversas vezes o modo como gostaria de ser chamada. Para ela, essa “não é uma cultura saudável e passa longe de ser inclusiva”.
Ações afirmativas e políticas de permanência na Uesb
Atualmente, a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas, Permanência e Assistência Estudantil (ProAAPA) é o órgão responsável por atender as necessidades dos estudantes de acordo com suas particularidades, propondo políticas direcionadas ao público universitário dos três campi da Uesb, Coquista, Jequié e Itapetinga. Nesse contexto, por ser uma pró-reitoria, a ProAAPA tem voto no Conselho Universitário (Consu) e no Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe), em que discutem e aprovam políticas a serem implementadas na universidade. Além disso, a ProAAPA tem recursos próprios para investir nas ações que desenvolve.
Diante dessa responsabilidade, a ProAAPA dá seus primeiros passos na busca por ações que abarque também estudantes trans e travestis. Durante os dias 23 de setembro, 6 e 20 de outubro, a pró-reitoria realizou o 1º Encontro de Diversidade e Gênero, Acessibilidade e Inclusão. O evento trouxe como temática “Um debate sobre ações inclusivas para pessoas com deficiência (PCD), sobre respeito à diversidade sexual, combate à violência de gênero e ao racismo estrutural.” O encontro aconteceu nos três campi da Uesb e teve como objetivo discutir políticas de inclusão, diversidade de gênero e ações afirmativas.
De acordo com Judá, Calíope e Gabi, elas não foram amparadas com ações e políticas específicas deste órgão, que deveria abranger os alunos trans com a inclusão e a continuidade na graduação. A Uesb também não dispõem de dados relativos à quantidade de alunos que se identificam como pessoas trans, o que demonstra que ainda há um longo caminho a ser percorrido para a implementação de políticas de acolhimento e defesa dessa categoria de universitários. “Falta uma ação pública de verdade, porque a universidade tem esse dever, o dever de nos mostrar que esse é o caminho”, enfatizou Calíope.
Outro fator que reforça a necessidade de políticas públicas para a população de trans e travesti no ensino superior são os dados referentes à evasão escolar. Conforme levantamento realizado em 2017 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), estima-se que 13 anos é a idade média em que travestis e mulheres transexuais são expulsas de casa pelos pais. Destas, 56% não possuem o ensino fundamental completo e 72% não concluíram o ensino médio. Essa situação é um reflexo da exclusão e da invisibilidade diária por que passam nos âmbitos social, familiar e escolar.
Na universidade pública, as cotas para transexuais e travestis são um estímulo fundamental para que essa população tenha acesso à faculdade. De acordo com o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), na Bahia, apenas cinco instituições em nível estadual e federal adotaram essa política de cotas: Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). A Uesb ainda não dispõe dessa ação afirmativa. A pró-reitora da ProAAPA, Adriana Amorim, reconhece que “é preciso que existam políticas específicas para esse grupo, e que sejam construídas com essas pessoas que já estão na universidade, ou que não conseguem entrar.”
A única ação afirmativa voltada diretamente para a inclusão de pessoas trans é a possibilidade da adição do nome social nos registros da Uesb, bem como a retificação do nome. Essa medida foi implementada pelo Consepe (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão) da Uesb, em 2014, dois anos antes do Decreto Federal Nº 8.727. Mesmo assim, desde que a medida foi colocada em prática pela universidade, não houve orientação de como o campo “nome social” deveria ser preenchido nos formulários da instituição. “Quando o nome social foi incluído no Sagres, muitos colegiados preencheram por desconhecimento, sem saber o porquê.” relata a gerente da Secretaria Geral de Cursos (SGC), Cynthia Souza. Por esse motivo, em alguns casos, apelidos e caracteres diversos eram colocados no campo reservado para o nome social independente de quem fosse o estudante. Em 2021, o acesso à ferramenta do nome social foi desabilitado para os colegiados e centralizados na SGC.
Diante desse impasse, a quantidade de pessoas trans nos três campi da Uesb não pôde ser apurada de forma efetiva, já que os os números datam do período de um ano após a transferência da função de inclusão do nome social. De acordo com um levantamento realizado pelo Avoador, constam nos registros apenas oito estudantes trans com matrícula ativa, que procuraram a SGC para incluir o nome social. Nesse mesmo período, outros oito estudantes procuraram a SGC para fazer a retificação do nome, nos três campi da Uesb.
Outras formas de inclusão na Uesb
O Laboratório de Linguagens e Diversidade Sexual (LaLidis) é um programa de extensão coordenado pelo professor Marcus Lima. O programa busca dar visibilidade às narrativas de vida das pessoas LGBTQIPA+, em especial aquelas que estão fora da faculdade, por meio de eventos, palestras e cursos que abordem temáticas voltadas para essa população. “Não é só levar a pesquisa, mas esses meus trabalhos para a sociedade, principalmente trazer essas pessoas que são excluídas do debate público para a universidade”, disse o professor.
As atividades do Laboratório são desenvolvidas por orientandos de iniciação científica que estão vinculadas ao Grupo de Pesquisa em Práticas, Escritas e Narrativas (GPEN), mas o projeto está aberto às contribuições de qualquer categoria da instituição. “Qualquer pessoa que tiver interesse, pode entrar em contato e participar das reuniões”, explicou Marcus
Para o professor, o LaLidis é uma forma de trazer à tona as pautas LGBTQIAP+ em Conquista, de modo a possibilitar que as histórias dessas pessoas sejam contadas e reconhecidas dentro e fora da Uesb. “No geral, a inclusão de pessoas trans nas universidades, sejam federais, estaduais, municipais, ainda é tímida.”
Quem também tenta fazer com que o cenário acadêmico seja mais receptivo e acolhedor é o Diretório Central dos Estudantes (DCE). Como uma entidade que atua na representação das demandas estudantis, sua função central é identificar e levar as principais necessidades às instâncias administrativas. Na atual gestão Marielle Franco, eleita em março deste ano, existe a coordenação da temática LGBT que discute meios de contribuir para que a universidade seja mais inclusiva, acessível e democrática.
Além de reforçar sempre o combate às opressões, como a LGBTfobia, o DCE tem buscado retomar o debate de cotas para pessoas trans na Uesb. A coordenadora, Larice Ribeiro, considera que a instituição ainda precisa de mais políticas voltadas para esse grupo. “Dessa forma, acreditamos que, ao apresentarmos as ações de atenção à saúde psíquica e física para essa comunidade, conseguiremos ter alguma devolutiva que dê encaminhamento.”
Expectativas em um futuro incerto
Planejar o futuro pode ser tão desafiador quanto encarar as dificuldades do presente. Isso porque o mercado de trabalho na maioria das vezes não oferece perspectivas que integrem as pessoas trans, o que perpetua o ciclo de exclusão dessa camada da população. A invisibilidade se manifesta de diferentes formas. De acordo com dados do Instituto Center for Talent Innovation, das pessoas trans que conseguem emprego, 61% precisam esconder a sua identidade de gênero. A pesquisa aponta ainda que 20% da população trans não tem emprego formal e 56,82% sofrem com insegurança alimentar.
Buscando fugir das estatísticas, Calíope Gomes disse que não pretende desistir. Lutar pelo seu sonho significa fugir da exclusão. “Se eu conseguir esse diploma, se eu conseguir chegar até o fim, eu espero muito que eu consiga, eu não vou ganhar só por mim. Vou ganhar por todas que são como eu, vou mostrar que todas também podem estar recebendo aquele diploma de Física.”
Em contrapartida, as preocupações continuam presentes diante de uma realidade pouco otimista, em que os resultados avançam ainda de forma lenta. Calíope pretende seguir carreira científica, mas a insegurança de não conseguir ter sua carteira assinada a aflige. Por enquanto, ela dá aulas particulares e não tem enfrentado tantos problemas, contudo, permanece o medo e o receio do que encontrará no mercado de trabalho ao fim da graduação.
Já o caminho de Gabi Cruz, por outro lado, foi dividido entre inquietudes e desistências, uma trajetória na graduação marcada por altos e baixos. “Desde a metade do curso para o final, era um querer desistir diário”. Ela contou que sempre se sentiu deslocada, cheia de interrogações sobre se seria realmente possível continuar sendo ela mesma em um lugar em que pouco é representada. Em meio a essa turbulência, sua incerteza aos poucos diminuiu frente a rede de apoio que surgiu ao seu redor. “Pessoas apareceram me mostrando que era possível entender que eu poderia fazer um trabalho importante?”
Refletir sobre essas vivências e a rede de apoio que encontrou nesse percurso fizeram Gabi sentir a importância da representatividade. O contato com outras mulheres trans que fazem parte da universidade foi o bastante para dar a dose de ânimo necessária para seguir em frente. “Se talvez eu encontrasse uma dessas [mulheres trans], em um dos momentos críticos da minha graduação, as coisas pudessem ter funcionado de uma forma diferente. Então eu penso: por que não ocupar esse espaço no futuro?” Ela pretende seguir carreira acadêmica, e quem sabe, ser para outras mulheres trans a representatividade que um dia ela tanto precisou.
Mercado de trabalho
Os medos e receios dessas mulheres refletem quão cruel pode ser o mercado de trabalho para quem é trans. Segundo relatório da Antra, uma pesquisa com pessoas trans aponta que 88% dos entrevistados acredita que “as empresas não estão preparadas para contratar ou garantir a permanência de pessoas trans em seus quadros.” Nem sempre incluir e acolher essas pessoas são uma prioridade para as empresas e instituições, e esse preconceito velado ou explícito empurra essa minoria para o subemprego, a exclusão, mesmo que tentem a todo custo fugir dessa realidade.
Judá Nunes sofreu tudo isso na pele. Após concluir a graduação, retornou a Conquista em busca de emprego dentro da área de sua formação, e com apenas um pensamento na cabeça, “eu preciso trabalhar.” Mesmo com um currículo recheado de experiências, principalmente na área do teatro, Judá já sabia, como em uma peça teatral, sobre qual seria o resultado, o último ato: exclusão, transfobia e desemprego. Ela recorda: “mandava o currículo por email, eles falavam ‘ah seu currículo é incrível’, e na entrevista falavam que eu não faço o perfil, o que aconteceu?”
Na trama de sua própria vida, o que restou para Judá foi improvisar. Aflita atrás de algum emprego, começou a trabalhar como garçonete, bartender fazendo drink em festas e qualquer coisa para sobreviver. Nesse meio tempo, não deixou de estudar, participar de cursos e se qualificar para trabalhar com o que realmente queria. Foi então que começou a produzir conteúdos para o LinkedIn e criou uma rede de contatos com outras pessoas trans. Posteriormente, ela foi reconhecida pela plataforma como creator e, hoje, faz parte do grupo LinkedIn TopVoices Orgulho 2022. Em virtude disso, a sua vida mudou completamente. “Minha saída foi a comunicação, ela me tirou desse limbo de extrema vulnerabilidade e me permitiu sonhar uma outra realidade pra mim.”
Diante desse contexto em que não é fácil sobreviver, até na universidade pública, como a Uesb, nem tudo depende apenas da força de vontade em persistir e fazer acontecer. Mesmo assim, é da fome de viver que essas pessoas encontram forças para não desistir. “Continuar aqui dia após dia é difícil, mas no final vai valer a pena, eu tenho fé que vai”, disse Calíope. Já Gabi acredita que estarem juntas é a melhor forma de enfrentar um mundo que não as compreende: “quando a gente está unida, acabamos ficando mais fortes.”
Parabenizo a todas as mulheres trans que independente de todas as dificuldade a vitória como objetivo, trará colheita abundante. Pioneiras serão exemplos de que o ser humano tem que ser humano e mostrar o quanto é importante ser útil a ciência, a riqueza de conhecimento e a humanização em mundo onde só o amor poderá salvar o que ainda resta nesse mundo deteriorado
Ser feliz deve ser umas missão e a persistência uma diretriz
Força e luz são esses lindas mulheres.