Três Marias e suas histórias de vida

Elas compartilham muito mais do que apenas o nome. Suas vivências e singularidades perpassam pela condição de mulher 9 de março de 2020 Raquel Rocha

“Maria, Maria é um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta. Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta. Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor, é a dose mais forte e lenta de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta”. Em 1978, Milton Nascimento e Fernando Brant compuseram essa letra e a música que, ao homenagear duas Marias, falam das mulheres brasileiras. Em 1980, a cantora gaúcha, Elis Regina, regravou a música que se tornou, na época, símbolo do movimento feminista.

Assim como na música, a mulher brasileira é plural. É livre, tem cores diversas, força e resistência. Elas representam 51,7% da população brasileira, e deste total, 11,7 milhões se chamam Marias. São mulheres que compartilham muito mais do que apenas o nome. Suas vivências, singularidades e rotinas diferentes perpassam a condição de mulher. Suas lutas, embora distintas, se completam.

A vida de cada Maria constrói a história da mulher brasileira. Em cada canto do Brasil, uma vida vivida importa. Nessa cidade do interior baiano, Vitória da Conquista, Marias acordam às 5h, 6h, 7h ou 10h, pegam ônibus, dirigem carros, lavam roupas, administram empresas, são alunas e professoras. Zona Norte, Leste, Oeste ou Sul, juntas representam as mulheres de Conquista, da Bahia e do Brasil.

Maria, Maria: nomes iguais e histórias diferentes

Maria das Graças de Oliveira mora na Vila Bonita, Zona Sul da cidade, em uma pequena casa. É onde suas lutas e conquistas, como a graduação em Serviço Social, são acolhidas. No dia 27 de março de 2020, ela irá completar 50 anos, e já festeja por cada dia vivido. Ela imaginou, sonhou, mas não esperava tantas realizações concretizadas na vida.

Nasceu na cidade de Planalto, mais uma do interior da Bahia, e trabalhou, dos 8 aos 16 anos, na roça catando café. Num período de quatro meses, entre junho e setembro, acordava às 5h juntamente com seu pai, para subir no “boia fria”, nome dado aos caminhões que carregavam as pessoas até as roças de café. Pegava a peneira, o saco e o rastelo, e trabalhava. No fim da tarde, esperava a contagem das latas. Por amar o trabalho na roça, preferiu abandonar os estudos.

“Eu gostava do meu mundinho, mas eu queria mais”. Maria das Graças, funcionária pública. Foto: Avoador

Maria cursou apenas a primeira e segunda série do ensino fundamental. “Não foi falta de oportunidade, meu coração batia forte para catar café, era o meu mundo. A coisa mais deliciosa da vida. Abri mão dos meus estudos, na época, porque era prazeroso fazer os trabalhos na roça”. Quando era adolescente e sonhava em morar na cidade grande, ela ouviu de alguém: “cidade grande não é pra você, seu mundinho é Planalto e roça”. Mas Maria não deu atenção, ela queria mais. Em 1989, aos 19 anos de idade, veio morar em Vitória da Conquista e fez da cidade o seu lar.

Para se sustentar, ela saiu de porta em porta à procura de emprego e, nessa empreitada, encontrou Iraci Alves que a contratou para trabalhar na creche que administrava. Maria trabalhou lá por quase dois anos, mas ela tinha outro sonho, queria trabalhar na lanchonete do supermercado Super Lar. “Talvez as pessoas achem que é um sonho bobo, mas era o meu sonho, um sonho grandioso”.

Ao sair um dia pelas ruas de Conquista acompanhada de sua prima, para vender leite, ela encontrou o coordenador da obra do antigo CEFET (atual IFBA), Luciano Mármore, que a convidou para ir ao seu escritório. Conversaram, e ele, que era amigo próximo do gerente do Super Lar, indicou Maria para o trabalho no supermercado. Começou como faxineira, mas conquistou a vaga na lanchonete. O mundo de Maria das Graças então se tornava maior e mostrava que era possível realizar sonhos.

Maria Prado Oliveira também sonha. Embora desejasse coisas diferentes de Maria das Graças, suas histórias tem origem no mesmo chão, a roça. Nascida na Fazenda Lage, zona rural do município de Cercadinho, Maria Prado, moradora do bairro Patagônia, zona oeste da cidade, sorri pela alegria de ser quem é. Começou a estudar com 13 anos e parou na terceira série do ensino fundamental, com 16 anos. Aos 18, casou-se e foi se aventurar na capital de São Paulo. Teve seu primeiro emprego aos 28 anos, mas por causa do filho, trabalhou apenas 28 dias.

Maria do Prado, costureira. Foto: Avoador

Após dar à luz ao seu terceiro filho, ela adoeceu. “Uma energia negativa tentou me impedir de prosseguir”. Foi internada em um hospital psiquiátrico por 18 dias. Seus olhos alegres, porém, cheios de lágrimas, contam mais que suas palavras. Quando retornou a Conquista, perdeu uma filha, e parte de si foi embora, contou emocionada. Apesar disso, ela ainda diz acreditar na vida e tem esperança.

É essa esperança que liga a história de Maria Prado a de Maria Feitosa de Sousa. Outra jornada de coragem e resiliência. Ela perdeu o pai antes dos 10 anos e, logo depois, também teve que se despedir da mãe. Começou a trabalhar aos 14 anos em uma fábrica de sorvete, em Recife, Pernambuco, sua cidade natal. Apesar de nunca ter frequentado a escola, tem muito a ensinar sobre caráter.

Sem conhecer ninguém, deixou os irmãos e foi viver a vida na maior cidade brasileira, São Paulo, aos 14 anos. Descia e subia os morros do Jardim Elisa Maria na capital paulista, e quando se casou, veio com o marido conhecer a Bahia. Quando chegou na em Conquista, comprou a casa em que vive até hoje.

As Marias do Brasil carregam em seus olhos as suas histórias: sofrem, amam, festejam e choram. Suas lutas são comuns porque representam a luta das pessoas simples do Brasil, que batalham para superar a pobreza e a falta de oportunidades, deixando o lugar de origem em busca de uma vida melhor. Muitas dessas pessoas enfrentam tragédias pessoais, se deparam com situações dolorosas que deixam uma marca permanente, mas, mesmo assim, conseguem se reconstruir e continuar lutando todos os dias. O olhar de Maria Feitosa chorava ao dizer, “o sofrimento é a escola da vida”. É a memória de uma dessas pessoas, que conhece e é dona de sua própria história.

Apesar do sofrimento, existem Marias das Graças que decidem recomeçar e completar o ensino médio com 33 anos. E, há também, Marias Prado que renascem da dor. Essas Marias representam um pouco da vida de cada mulher brasileira, da luta por igualdade de direitos, da busca pela liberdade, e emancipação do corpo e da mente.

Maria, Maria: quem traz na pele essa marca  

Quando o sol brilha às 6h, em cada canto de Conquista uma Maria levanta da cama. Maria das Graças é uma delas. Às 7h15, ela já está no ponto de ônibus, e depois de 15 minutos, chega ao trabalho. Há 20 anos, passou em um concurso e, até hoje, trabalha na função de auxiliar de arquivo com pesquisa de plantas arquitetônicas no Arquivo Público Municipal da cidade.

Anos atrás Maria disse para si mesma: “ainda vou trabalhar em um escritório onde as pessoas vão chegar e perguntar ‘quem é Lia aqui?’, e hoje isso acontece sempre”. É assim que gosta de ser chamada carinhosamente: de Lia. É uma pessoa livre e sem ressentimentos. Em 2015, concluiu a graduação em Serviço Social e lembra com um sorriso de cada obstáculo que teve que enfrentar. Tinhas dificuldades em compreender os conteúdos e, às vezes, contava com a ajuda da família para pagar as mensalidades e conseguir permanecer na faculdade.

Por conta das suas memórias da infância, decidiu abrir o próprio brechó. Quando era criança, seu pai só lhe comprava roupas desses estabelecimentos, desde então, alimenta um amor pelas roupas de brechó. “É muito mais que um negócio, é afeto”. O seu amor e generosidade se estendem às obras sociais, por isso, dedica alguns dias do mês a projetos de voluntariado, a fim de ajudar pessoas necessitadas de afeto e esperança.

Em alguns sábados, ela é voluntária na Casa da Vida, lugar que acolhe acompanhantes de pessoas que estão hospitalizadas no Hospital Geral de Conquista. Duas vezes no mês, encontra-se com as Naninhas do Bem da Cidade, projeto que reúne homens e mulheres para confeccionar travesseiros em formato de bonecas que são doados para crianças e idosos carentes.

Já o dia de Maria Prado começa com o café posto na mesa e um belo show. Ela canta enquanto limpa a casa onde mora com uma filha e quatro dos seus 18 netos. Depois que o marido faleceu, passou a receber pensão, mas complementa a renda costurando. Com a linha na agulha e a tesoura na mão, ela faz a sua arte com os tecidos.

Às terças-feiras sua casa acolhe o projeto “Casa de paz”, ela recebe amigos e colegas da igreja para um momento de

Maria Feitosa, aposentada. Foto: Avoador

reflexão e exercício de fé. Como canta Gilberto Gil, “andar com fé eu vou que a fé não costuma faiá”, assim é a vida de Maria Prado. Ela acredita que pode todas as coisas e, como mulher, ela entende o valor que tem. Sua voz um pouco trêmula, deixa ecoar o som da convicção de quem se sente privilegiada por ser mulher. “A mulher vale muito mais do que a sociedade diz”.

Quando o sol nasce para Maria Feitosa, no bairro Senhorinha Cairo, ela entende que é mais um motivo para agradecer. Depois de tantos encontros e desencontros na vida, encontra no sentimento de gratidão, a grandeza de quem tem muita vida para deixar como legado. “Eu soube o que é buscar a vida, o que é lutar. Pra você ser alguém, tem que lutar, batalhar, ser digna, honesta, nunca pensar no que é dos outros. Minha vida hoje é parada, parei de movimentar, parei de trabalhar, mas estou vivendo”. Como as Marias que encontraram o descanso depois de uma longa jornada de lutas, ela se sente realizada pelas coisas que viveu e aprendeu.

Maria, Maria: é preciso ter força, é preciso ter sonhos

“Esse mundo é sujo, mas é nesse mundo que a gente precisa viver, temos que lutar e batalhar por ele”. Maria Feitosa se sente afetada pelas próprias palavras que pronuncia. Por amar a neta, sabe as marcas que o mundo pode deixar em cada mulher. Por isso considera importante lutar pelo mundo e escrever sua própria história. Quando a realidade se apresenta de forma cruel para as mulheres, Marias como ela revigoram as forças para peitar aqueles que querem determinar os espaços e os direitos de uma mulher.

As lágrimas que descem sobre o rosto enrugado de Maria Feitosa são a mistura da dor de quem chora as surras e as rasteiras que levou durante o caminho com a alegria de quem soube saborear e dançar sobre o chão molhado de água da chuva. O sorriso de quem amou e foi amada se abre ao lembrar das palavras do amor que se foi, mas deixou leveza em seu coração.

Maria Prado não resiste e logo começa a cantar no meio da entrevista, canta quem carrega marcas de recomeços, possuindo a “mania de ter fé na vida”. Resistiu a dor da perda e ganha a vida com ternura, “nós precisamos nos valorizar, ser otimistas e não abaixar a cabeça diante das circunstâncias”. A vida é mais difícil para quem é mulher, mas brinca ao saber que pode fazer um mouse de limão quando a vida lhe der alguns.

Maria sorri e vibra cheia de graça e sonhos. Ela é Maria das Graças e se constrói enquanto vive seus sonhos que não são bobos, nem simples, nem tolos. Mas são grandes, alegres e vivos, são pulsantes e cheios de gana. Como cada mulher que acorda com coragem de perseguir seus sonhos, que anda pelas ruas atrás de seus objetivos. A mulher brasileira que se machuca, mas encontra a cura quando olha o azul do céu e sabe que pode.

Toda mulher é Maria cheia de graça, de autenticidade, e de luz. É feita de liberdade, tem cor de coragem e os olhos de quem ama. São Marias de cabelos encaracolados, lisos, ondulados, pretos, castanhos, loiros ou brancos. Tem na pele as rugas das vivências e dos afetos. Carregam a coragem de parar e gastar tempo com nada. São donas de si mesmas, são livres.

A vida de uma mulher é cheia de cicatrizes e lembranças de alegrias e tristezas, de lutas e lutos, mas como Milton Nascimento e Fernando Brant escreveram: “É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, quem traz no corpo a marca. Maria, Maria mistura a dor e a alegria”.

Dedicada a todas as Mulheres, às Marias. De luta, gana, coragem, amores, sonhos e resistência. Às mulheres do passado que morreram lutando por igualdade de direitos, e às mulheres que lutam nos dias de hoje. Às mulheres de toda cor, etnia, religião, orientação sexual… A todas nós!

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