Arte e liberdade na vida hippie de Beatriz
Beatriz Aparecida Paiva dos Santos, 31 anos, dois filhos, vende sua arte pelas ruas de Conquista 29 de abril de 2016 Érika Paula SouzaSentada ao chão da Praça 9 de Novembro, Bia, como é carinhosamente chamada, se mantém sob os olhos de quem passa rapidamente pelo Centro de Vitória da Conquista. Seu nome completo é Beatriz Aparecida Paiva dos Santos, mãe da Ametista, de 5 anos de idade, e do Renan, de 3. Com seus 31 anos, hippie, cabelos Black Power, Bia, vendedora de artesanato, tem um sorriso branco e personalidade simples, porém marcante, como um dos seus mais valiosos artefatos: um notável colar branco neve rabo de arraia.
Se fizer sol, ela e seus amigos estão lá. Se fizer chuva, se abriga debaixo das marquises das lojas. Mas logo quando as gotas d’água se vão, ela volta ao destinado chão. Chão que não foi escolhido, foi apenas exposto e oferecido sem lhe perguntar se era de sua vontade ou não.
O nome Beatriz tem origem no latim (Beatrice), e quer dizer “a que traz felicidade”. Alguns autores, como o filósofo e escritor romano Marco Túlio Cícero, porém, acreditam que o nome venha do termo Viatrix, do latim antigo, que significa “viajante, peregrino”. E é assim a vida de Bia: sua raiz é em Conquista, pois nasceu e cresceu aqui, mas suas asas voam por todo o Brasil a fim de vender seus artesanatos. Em Itacaré, Vale do Capão, Chapada Diamantina, Rio de Janeiro, Florianópolis, Cuiabá e tantos outros lugares essa peregrina já passou, sempre acompanhada de seus filhos Ametista e Renan.
E um nome tão bonito como Ametista tem também uma bela explicação, que Bia deu com um sorriso no rosto: “Minha filha é tão valiosa, preciosa e bonita como a pedra que tem esse nome”. É com suas crianças ao lado que Bia ora viaja, ora fica aqui em Conquista. “Eu mesma educo meus filhos, não pude ainda colocá-los em uma escola, então eles estão comigo sempre, o tempo todo, aonde eu for”, conta.
O ex-marido ajuda como pode, mas Bia gosta de ser independente e tem orgulho em falar que é mãe e pai ao mesmo tempo. “Vivo sozinha, só eu e meus filhos. Minha mãe morreu quando eu era muito nova e não tenho contato com meu pai, então aprendi desde cedo a cuidar de mim. Sou separada, então faço de tudo para dar uma vida melhor para os meus filhos”, relata.
Mas o artesanato nem sempre foi seu ganha-pão. Quando era mais jovem, trabalhou como garçonete em bares e restaurantes de Vitória da Conquista e também foi diarista em casas de família, porém, em ambos os casos, percebeu que pedir demissão era o melhor a fazer. Nessa época,quando tinha patrões, Bia era assediada verbalmente com frequência. “Os caras me tratavam como objeto e sempre falavam coisas que me deixavam constrangida. Muitas vezes, ao sair do trabalho, já fui perseguida por estes homens, mas consegui correr e me esconder”,lembra. Essas experiências desagradáveis foram suficientes para fazê-la procurar outra forma de sustento.
Em 2006, ela conheceu o pai dos seus filhos e foi ele quem a ensinou a arte de fazer brincos, colares, pulseiras e anéis usando como matéria-prima a natureza. Hoje, sempre com seus filhos juntos, ela mesma vai atrás das pedras, na maioria das vezes na Chapada Diamantina, onde hospeda-se na casa de amigos, também hippies, que conheceu durante suas viagens.
Além de ir atrás dos materiais e produzir seu artesanato, Bia e seus amigos ainda têm de enfrentar o chão, o sol e o desprezo dos comerciantes da Praça. “O prefeito não olha para a gente. Ele fala que incentiva a cultura, mas nos deixa aqui no chão, debaixo do sol quente. O Centro de Cultura, que era pra ser um local onde nós poderíamos transmitir a nossa cultura para a população, não funciona. Os comerciantes daqui nos olham torto, como se fossemos roubá-los, e nos expulsam das suas portas. Nós estamos aqui trabalhando como eles, tentando conseguir comer, estudar e viver”, comenta.
A repulsa vem também dos pedestres. “As pessoas fingem que não estamos aqui, simplesmente passam. E quando nos olham, é como se tivessem nojo. Talvez seja pelo falso pensamento de que todos os hippies usam drogas, ou algo do tipo. Mas nem todos são assim, muitos, como eu, querem dar comida para os seus filhos e educá-los”, desabafa Bia.
A invisibilidade social é uma questão cotidiana para Bia, mas, sentada ao chão, ela fica a reparar tudo o que acontece no vai e vem das pessoas. “Eu fico observando as mulheres, principalmente as negras, elas parecem não saber da força que têm. Eu sou negra e acho lindo meu cabelo crespo. Mas vejo que a maioria das negras não se veem como negras, não assumem seus cabelos, suas raízes. Falta não só a elas, mas a todas as mulheres, se conhecerem e saberem que são tão fortes quantos os homens e que o mundo gira por elas e para elas”, comenta Beatriz.
Bia segue assim a sua vida. No rosto, marcas que o tempo e as experiências deixaram como lembranças, nas mãos, o alicate e os materiais das suas peças, no coração e na mente, a esperança de vencer na vida e dar aos seus filhos uma boa educação. “Se a pessoa deixa de sonhar, ela simplesmente deixa de viver. Eu quero poder terminar meus estudos e depois fazer faculdade de Direito. Sempre quando uma pessoa para aqui, compra meus produtos e conversa comigo, eu peço que me deem livros, porque eu quero me ver e ver meus filhos com o diploma de uma faculdade nas mãos”, finaliza Beatriz.
Foto destacada: Érika Paula Souza/Site Avoador