Conserta-se brinquedo quebrado
Catadores de material reciclável em Conquista, os irmãos Cosme e Damião, de 13 e 12 anos, com tamanho de criança e um olhar ingênuo, tiram do lixo pedaços de madeira e transformam em cavalos e vibram com os carrinhos quebrados que encontram 18 de junho de 2019 Jhou CardosoOs olhos acostumados dos passantes não os veem. Ou de tantos os verem, acabaram inseridos na paisagem da cidade. Como um prédio, uma fachada de uma loja fechada. Afinal, são só meninos como tantos outros remexendo o lixo. Mas eu os vi. E eles também me viram.
“Você é escritor?” Um deles me pergunta. O outro, de olhar tímido, observa a cena de cima da carroça. Pensei em falar a verdade, em dizer que sou somente um estudante de Jornalismo que gosta de ouvir histórias e recontá-las. Mas, não! Eu menti: “Sim, sou!”. Um sorriso brotou nos lábios dos meninos. “Então, coloca a gente no seu livro! Deixa a gente famoso!”. O outro, que observava a cena em silêncio, como uma forma de incentivo e com uma inocência na voz, fala: “Não precisa nem procurar mais pessoas, deixa só a gente”. Enquanto eu buscava argumentos para responder, o menino que estava ao meu lado, com ar de sabedoria, explica: “Você já viu quantas páginas têm um livro? Ele precisa de mais gente!” E assim nasceu esse texto, de olhares. Olhares que se viram.
No outro dia, do outro lado da cidade. A bola rola solta em um campo improvisado. As latas de óleo são transformadas em traves, o chão de terra batida, na imaginação das crianças, é o grande Maracanã com as torcidas vibrando a cada gol. É difícil com o olhar seguir o percurso da bola. As caneladas são frequentes e, de vez em quando, tem que parar o jogo. Algum menino, desajeitado, acabou de chutar o chão e arrebentou a cabeça do dedão do pé. Com o grito de uma das mães, finaliza-se o jogo. Cosme e Damião, dois irmãos, caminham em sentidos opostos: um mora com a avó, o outro, com a tia. Mas antes, vendo que o sol ainda estava quente, um convite é feito: “Ainda temos tempo! Vamos soltar pipa?!”. E assim, com uma linha, um pouco de vento, as pipas vão subindo pelos ares, quebrando as barreiras de uma cidade dividida entre ricos, pobres e miseráveis.
Moradores de uma das regiões periféricas de Vitória da Conquista, Cosme, 13 anos recém-completados, aparenta ter oito anos, meio choroso, me conta: “Meu aniversário foi 22 de fevereiro, ninguém lembrou”. Damião, 12 anos e o mais conversador, entra na conversa dizendo: “O meu é 21 de março! Ihhh!! Já estou vendo que vou ganhar ovo na cabeça dos amigos da escola”.
Logo a pipa perde o encanto e outra brincadeira é inventada.
“Faz de conta que esses cabos e vassouras são os cavalos e você vai dar água para eles!”. “Não! Você vai levar os cavalos! Vou ficar arrumando as malas e vamos sair pelo mundo em busca de fama e fortuna!”. “Mas antes, vamos comer! Isso aqui, ó! É o bolo!”. Parece que os meninos vão crescendo, enquanto brincam de crescer.
Longe o sol vai se pondo, o faz de conta se transforma em realidade. Em um passe de mágica, o pedaço de madeira vira uma égua branca batizada de Amora ou Estrela, depende qual dos meninos a chama e as malas, em uma carroça. E lá partem os dois meninos que se transformaram em homens, na busca da fama e do dinheiro que os grandes contêineres que as pessoas despejam os lixos têm a oferecer.
A história de Cosme e Damião é igual a tantas outras histórias de meninos pelo Brasil afora. Filhos de pais diferentes, mas da mesma mãe, não falam muito dos familiares. Abandonados pela mãe e sem ter como morar com o pai, um foi morar com a tia, o outro, com a avó. “A minha tia comprou a charrete e Estrela, e me deu para coletar material. Chamei meu irmão e vem (sic) nós dois.” Me conta Damião, enquanto vai remexendo os contêineres em busca de papel, papelão, latinha ou plástico.
Em meio aos restos, Cosme encontra um recipiente de calda de sorvete. O menino abre, coloca na boca e começa a sugar as últimas gotas. São só crianças que amam doces. Oferece para o irmão que logo dispensa, pois está mais interessado na caixa cheia de ovos encontradas no mesmo local. “Hoje vamos comer ovos!” grita, passando a mão na barriga. A caixa exala odores, mostrando que aqueles ovos não prestam mais para o consumo. “Não, tio! Quando a gente chegar em casa, vamos ver se presta. Se não prestar, a gente joga fora e se prestar, a gente come, né?”. Fiquei em silêncio, não sabia o que responder e nem tinha o que falar, pois estava tentando esconder meus olhos que se encheram d’água.
Eu que nunca me calo, fiquei em silêncio. Deixei que eles fossem me contando partes de suas pequenas vidas. Cosme e Damião sorriam com os lábios e com os olhos quando me narravam as coisas mais valiosas que encontraram no lixo: brinquedos. “A gente sempre acha carrinhos quebrados. Levamos pra casa, consertamos e brincamos com eles. Ah, teve uma vez que encontramos dinheiro, 7 reais”. O que são sete reais perto da mágica de um carrinho quebrado? Pergunto-me. Afinal, os sete reais iriam para a mão da tia ou da avó e serviriam para comprar os alimentos da casa. Não para comprar brinquedos.
Com os pés descalços, Damião corre a rua, sentindo o vento da liberdade soprando as suas costas. Cosme leva a carroça. Param em alguns pontos, remexem as latas de lixo e buscam por material que pode ser reciclado. “O dinheiro que eu ganho passo metade para minha tia e ele passa para a avó”, apontando para o irmão. “O resto compro a ração para a égua” me conta Damião. Quando a sandália quebrou, a tia deu uma bota que em outra época fora branca, com o tempo, a terra a tingiu de marrom. O menino não a usa, pois o impede de correr. “Estava correndo com a bota, tropecei. Uma saiu do meu pé e ficou pra trás, quase caí, mas não caí. Desse dia pra cá, parei de usar as botas, fica escondida dentro da carroça!”.
“Médico!”, responde Damião. Sem nem esperar que eu termine a pergunta: “o que você quer ser quando crescer?”. “Quero ser médico para ajudar as pessoas. É isso que médico faz, não é?”, completa. O sonho nasceu quando o menino ficou doente e foi parar em um hospital e lá acabou sendo bem cuidado. Além das medicações que fizeram com que seu corpo enfermo ganhasse saúde, recebeu afetos. Toques de carinhos que até hoje nunca esquece.
Na madrugada, quando as estrelas começam a desaparecer no céu, Cosme vira inventor. Acorda às cinco horas da manhã, pois prefere criar seus inventos no silêncio, e começa a inventar coisas, de preferência, brinquedos. Nas suas invenções não patenteadas, criou um carrinho de nome baratinha. “É igual um carrinho de rolimã, só que mais rápido. A gente sobe com ele a ladeira próxima de casa e depois desce, montado”. A cada descida, o menino sonha. “Jogo mais ou menos bola. Aí, quando eu crescer, quero ser jogador de futebol”. Em meio ao seu sonho, ele se perde e começa a narrar o grande lance para o gol. “E chutou para Cosme, que driblou um, driblou dois. Chutou e é Gooooooooooool! Gol de Cosme! Camisa 10 da seleção brasileira”.
O papo segue. Cosme olha pra mim com certa curiosidade e pergunta: “Você é humilde, né?”. A sua pergunta me deixa surpreso e digo: “O que é uma pessoa humilde?”. Sorrindo, ele responde: “É alguém rico que conversa com pobre!”. “Você também é humilde!”, respondo. Com a minha resposta, nasce uma pausa que para o tempo. O menino, com um rosto inexpressivo, lança as palavras, finalizando o assunto: “Não! sou só pobre!”. Com sua resposta, o silêncio habitou entre nós.
O barulho dos cascos da égua batendo nas ruas da cidade vai esmagando os sonhos dos meninos. Cosme e Damião sabem que o mundo não se importa nem com eles, nem com os seus. Que o mundo sequer os vê. Seus olhos de crianças velhas me perseguem, pedindo para que os veja sempre. Eles são apenas crianças que se transformaram em adultos cedo demais. Sempre tinham sido como homens nas suas vidas, nas suas misérias. Porque o que faz criança é o ambiente das casas, pai, mãe, e nenhuma responsabilidade, a não ser os deveres da escola. E responsabilidade, eles já têm até demais.
Foto destacada: Jhou Cardoso/Avoador
* Os nomes foram alterados para preservar a identidade das crianças.
Texto profundo e de uma sensibilidade incrível. Parabéns, meu amigo-irmão! Você tem a capacidade de enxergar a beleza das coisas mesmo em situações difíceis como esta.
De modo poético você captou a essência de vidas que, na maior parte das vezes, passam desapercebidas aos olhos pouco sensíveis.
Como eu já sabia, voce vê com o coração.❤️
Sucesso em sua carreira.
Quanta sensibilidade, moço! Parabéns!
Reco maravilhoso, Jhô. Emocionante e carregado de sensibilidade que só poderia ter nascido de alguém como vc, capaz de ler a alma das pessoas. Parabéns.
Parabéns meu amigo, seu texto é incrível e humano!