Minha Deusa e os temperos de uma vida
Desde a década de 1980, o sabor da comida caseira de Dona Deusa encanta a clientela do Mercado Municipal, no bairro Brasil, em Vitória da Conquista 31 de agosto de 2019 Ana Carolina LagoCheiro de alho e cebola refogando. Cheiro de coentro irradiando. Cheiro que anuncia: é hora do almoço! É assim que fui recebida por Isabel Rocha Santos, Deusa para os que já se sentaram no box 17, conhecido como “Restaurante Minha Deusa”, para almoçar. O restaurante simples, localizado no primeiro andar do Mercado Municipal de Vitória da Conquista, no bairro Brasil, oferece muito mais do que um cardápio variado, quando o assunto é comida caseira.
Dona Deusa, um senhora de 77 anos, de olhar brilhante, cabelos negros feito índia, carisma de menina, afeto e sabedoria de quem muito viveu, é a responsável pelo restaurante que faz a diferença no mercado. As mãos, com unhas compridas e bem feitas, são há 30 anos o seu instrumento de trabalho.
Ela é do povoado de São Felipe, em Tremedal dos Ferraz, a 83 km de Conquista. Saiu de lá ainda criança, aos 10 anos, após um período de seca na cidade. Percorreu cerca de 220 quilômetros a pé, com a família, até chegar na cidade de Macarani. “A gente botou as traias no jeguinho e foi andando. Dormíamos nas rancharias”. Trabalhou em fazendas, morou em Maiquinique, Nova Esperança, voltou a Tremedal, casou-se e foi morar em Salvador. Filha de terras mais frias, não se adaptou ao tempo quente e abafado da capital baiana e mudou-se para o município de Barra do Choça, a 30 quilômetros da capital do Sudoeste.
No entanto, foi Conquista que a receberia definitivamente, e dona Deusa nem imaginava. “ gente morou na Barra do Choça um bocado de tempo. Mas aí ele (o esposo) comprou uma casinha aqui (em Conquista). Ele trabalhava em empreiteira de estrada”. Morando há pouco tempo na terra de Glauber Rocha, dona Deusa precisou ser criativa quando o marido faleceu e a deixou com os sete filhos pequenos. A arte de cozinhar deixou de ser apenas para os familiares e passou a ser um trabalho para gerar renda. “Botei uma barraquinha ali embaixo (ela aponta para a feira livre que acontece na calçada do Mercado Municipal), vendia café e tudo. Aí, depois o povo falou que eu tinha que botar comida, que eu tinha cara de quem fazia comida boa”. Os bolos, café e biscoitos deram lugar a rabada, buchada, farofa de feijão. Saiu de cena então o café da manhã e entrou em cartaz o almoço. “Era pequenininho, mas as vizinhas que tinham barraca de verdura me davam espaço. Eu forrei com aquelas toalhas, paninho, e o povo sentava e almoçava por ali”.
No final da década de 1980, o Mercado Municipal de Vitória da Conquista foi inaugurado por José Pedral Sampaio, então prefeito da cidade. A construção ficava na calçada que dona Deusa tinha a sua barraca. “Pedral fez esse mercado aqui, e aí o povo dizia: ‘ah, vocês não vão lá pra cima”. Eu disse: eu vou porque Deus é bom! ”. Mulher de garra e cheia de fé, dona Deusa procurou pelo prefeito da cidade, contou sobre a viuvez e os sete filhos. “No dia da inauguração todo mundo veio. Ele falou de lá: ‘Isabel Rocha Santos, seu box é o 17. Amanhã, pode ir trabalhar.’ Eu vim, e tô trabalhando até hoje.”
Rabada, buchada, sarapatel, feijoada, ensopado de língua, carne cozida, carne de porco frita, lombo, e o que mais o cliente aguentar consumir. No restaurante “Minha Deusa”, o amor pelos fregueses é a razão do bom tempero. “A comida representa o amor. Meu, do meu povo, dos meus clientes”. Clientes que são atraídos de todos os lugares, Salvador, Brasília, Goiânia, Mato Grosso, Paraná, Guanambi, Paramirim, Bom Jesus da Lapa, Correntina, e também de todas as classes sociais, do feirante, no térreo do Mercado Municipal, a artistas conhecidos nacionalmente. “Zé Geraldo, Zé Ribeiro, Falcão, Buiú, Xangai. O povo da Globo veio fazer entrevista aqui e botou o nome: ‘Minha Deusa’. Fui aprovada pelos artistas da Globo. Foi uma festa linda.” Como alcançou tamanho reconhecimento, ela explica: “Eu não tenho segredo. É de Deus! Faço a minha comida com fé, amor e paz”.
O “Minha Deusa” não possui estrelas Michelin (uma das classificações mais importantes no mundo gastronômico), não está na lista de restaurantes mais importantes para conhecer na Bahia, mas tem a culinária passada de geração em geração como técnica principal. “Eu nunca entrei em curso nenhum. Quando eu era pequena, via a minha avó fazer as coisas. Se ela estava tratando uma galinha, eu estava em cima. Se temperava uma carne, eu estava lá. Dizia pra ela: ‘quem sabe um dia, eu aprendo fazer o que a senhora faz’”. Ela não só aprendeu como passou o saber para as filhas, que hoje ajudam a cuidar do restaurante no Box 17.
O trabalho de dona Deusa começa às 7h, e ao meio dia tudo precisa estar pronto. Tem gente que chega de longe, de perto, pela primeira vez, ou já é milésima vez, mas o sabor que encontra é sempre o mesmo: bom tempero, uma comida simples e saborosa e o amor, a paz e a fé da cozinheira.
Foto destacada: Ana Carolina Lago/Avoador