A economia capitalista brasileira será capaz de gerar bons empregos?
Para compreender a atual conjuntura do país, principalmente no que diz respeito à geração atual e futura de emprego e renda, é preciso revisitar a trajetória da política econômica capitalista brasileira 15 de fevereiro de 2020 Sofia Manzano“Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país.” (Caio Prado Jr.)
Para os jovens que estão a entrar no mercado de trabalho nesse início de década de 20 não é tão fácil perceber as mudanças estruturais operadas na economia brasileira que impuseram um padrão de contratação da força de trabalho tão precário. As mudanças institucionais efetuadas pelos últimos governos apenas fecham um ciclo de deterioração do padrão de contratação cuja gênese deve ser buscada na orientação da política econômica adotada no início dos anos 1990.
Procuro aqui resgatar a trajetória dessa política econômica de forma a permitir a compreensão das razões mais profundas da conjuntura atual, principalmente no que diz respeito à geração atual e futura de emprego e renda na economia capitalista brasileira.
Na primeira parte, resgatamos os aspectos macroeconômicos que traçaram as linhas gerais dessa trajetória – e que não foram rompidos desde então. Na segunda parte, apresentamos um esboço da estrutura produtiva brasileira resultante das mudanças estruturais efetuadas e seguidas desde o início dos anos 1990.
Por fim, o fechamento do ciclo com a implantação das contrarreformas institucionais que visam adequar as relações de trabalho e de serviços públicos à “nova” estrutura produtiva e ao “novo” papel do país na divisão internacional do trabalho. Três perfis governamentais e uma mesma política econômica.
Modernização liberal: abertura comercial e financeira
Nos governos de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1993-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) foram consolidados os pilares sob os quais está fincada a estrutura produtiva do capitalismo brasileiro atual.
Com o argumento de que era preciso modernizar a estrutura produtiva brasileira, as primeiras medidas econômicas que promoveram modificações profundas foram no sentido de efetuar a mais ampla abertura comercial e financeira do país, ao lado da intensa privatização do setor produtivo estatal e de equipamentos para infraestrutura.
Estas medidas foram tomadas sem que houvesse qualquer planejamento ou objetivos mais amplos e de longo prazo em termos da política industrial ou do que se pensava para a inserção da economia brasileira na divisão internacional do trabalho.
Em seguida, para combater o processo hiperinflacionário herdado das décadas anteriores e, em consonância com as necessidades de consolidação de um mercado financeiro globalizado, que não convive com inflação (como já ressaltei em outro artigo), o Plano Real logra conter os aumentos de preços a partir de medidas macroeconômicas ancoradas numa política cambial supervalorizada, taxas de juros internas elevadas e o fim da política salarial. Os resultados desse período (1990-2002) foram expressos no crescimento médio anual do PIB na ordem de 2,2% e na profunda reestruturação produtiva.
Com a política de abertura comercial e taxas de câmbio sobrevalorizada, a produção industrial interna sofreu um processo de desmonte das cadeias de valor, tanto operada pelo aumento das importações de produtos industrializados finais quanto de setores intermediários, levando ao fechamento de elos importantes da cadeia que antes eram produzidos internamente.
Por outro lado, para manter a política de metas de inflação, as taxas de juros que se mantiveram acima de 20% (chegando a 39,5% em abril de 1999), dificultaram a formação bruta de capital fixo em setores industriais, que sofreram a concorrência com os mesmos setores dinamizados por outros países que adotaram medidas macroeconômicas opostas às verificadas no Brasil.
A China, por exemplo, com sua política de internalizar cadeias produtivas e de valor, operou, no período, com taxas de câmbio desvalorizadas e com uma política industrial agressiva para atrair investimentos externos diretos. Ao mesmo tempo, segundo o acompanhamento do NEIT/UNICAMP, passou a disputar os mesmos mercados antes ocupados pelas exportações de bens industrializados brasileiros, ganhando mercado durante todos esses 30 anos.
A reestruturação produtiva, ao tempo em que promoveu a desindustrialização acentuada da estrutura produtiva no país, proporcionou a elevação da produtividade dos setores de commodities, um dos únicos setores que conseguiram ampliar a participação externa no período subsequente.
Crescimento dirigido pelo consumo
Aproveitando a conjuntura internacional, principalmente puxada pela expansão externa da China e sua área de influência, o período dos governos comandados pelo Partido dos Trabalhadores (até o final do primeiro mandado da presidente Dilma Rousseff, em 2014), apresentou um crescimento médio anual do PIB de 3,5%. No entanto, as premissas da política macroeconômica não foram modificadas: a taxa de câmbio permaneceu sobrevalorizada, assim como as taxas de juros que, apesar de se manterem abaixo dos patamares do período anterior, continuaram como as mais altas do mundo.
Medidas conjunturais foram tomadas e melhoraram as condições de vida de parcela significativa da população mais pobre, como o aumento real do salário mínimo, as políticas assistenciais de transferência de renda, as linhas de crédito um pouco mais barato para aquisição de imóveis e bens de consumo duráveis. Contudo, abaixo dessa superfície de enganadora prosperidade, as crateras das mudanças estruturais continuaram a se aprofundar.
A especialização produtiva tomou impulso nesse período e os únicos setores que conseguiram enfrentar a política macroeconômica (prejudicial para a economia interna) foram aqueles voltados ao mercado externo e à infraestrutura bancada pelo setor público.
Se nos governos anteriores (de Collor a FHC), a desindustrialização interna foi resultado da política macroeconômica e do baixo crescimento do PIB, nos governos petistas, esse processo se intensifica, mesmo com a recuperação da produção interna, mas esta, puxada pelo gasto público e pelo mercado externo.
O aumento da demanda agregada interna verificada no período deve ser avaliado com o devido cuidado para se captar as contradições que resultam nos impasses atuais. Em primeiro lugar, esse crescimento da demanda foi resultado de decisão de gasto público: tanto nos gastos com infraestrutura, quanto de transferência de renda.
Como se pode verificar historicamente e na atual conjuntura, atrelar a dinâmica da demanda agregada ao setor público implica sujeitar a dinâmica econômica ao bloco político no poder, haja vista que a burguesia interna nunca foi afeita a correr riscos sem a proteção do Estado.
Em segundo lugar, os setores privados que lograram enfrentar a expansão externa diante das condições macroeconômicas adversas, intensificaram os investimentos a fim de aumentarem os ganhos de produtividade. Em grande medida, esse processo significou maior integração das cadeias de valor com o mercado externo. Por isso, os resultados de aumentos de demanda (interna ou externa) implicam crescentes vulnerabilidades.
Por fim, essa maior integração dependente da economia brasileira com a economia mundial faz aflorar ainda mais as fragilidades produtivas internas: os setores mais dinâmicos são aqueles com baixo valor agregado (primário e extrativista) e submetidos às oscilações da demanda exógena.
As contrarreformas: adequação institucional
As atuais medidas institucionais e de política econômica tomadas pelos governos após 2014 (o curto segundo mandato de Dilma Rousseff, governo Temer e Jair Bolsonaro), por mais que se afigure como contraditório com as políticas dos governos anteriores, representam a necessária adequação institucional ao “novo” papel produtivo da economia capitalista brasileira.
Se nos últimos 30 anos todas as políticas macroeconômicas foram dirigidas para uma maior integração dependente e subalterna da estrutura produtiva brasileira aos velhos e novos polos dinâmicos da economia mundial, assim, após mais de um século depois, voltamos a nos tornar fornecedores de insumos e produtos primários ao mercado internacional.
Por isso, não há possibilidade de um país capitalista primário exportador conviver com uma estrutura de empregos e direitos trabalhistas desenvolvidos. Não há possibilidade de uma economia dependente e afeita às menores oscilações do mercado externo constituir um setor de serviços públicos e de direitos sociais avançados.
Portanto, diante do “novo” papel que a burguesia interna consorciada ao capitalismo mundial impõe ao país, não resta outra saída à classe trabalhadora que não seja a construção de um processo de ruptura com a lógica do capital.
* Sofia Manzano é professora da UESB; economista (PUC/SP); mestre em economia (UNICAMP); doutoranda em História Econômica (USP); autora do livro Economia política para trabalhadores (ICP, 2ª ed., São Paulo: 2019); pesquisadora nas áreas de trabalho, desigualdade, política econômica, teoria econômica; participa do conselho editorial das revistas Crítica Marxista e Novos Temas.
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