A normalização do racismo
Em romance publicado em 1979, a escritora norte-americana, Octavia E. Butler, expõe a brutalidade da escravidão nos Estados Unidos por meio dos relatos de uma mulher negra 12 de outubro de 2019 Ricardo SantosO romance Kindred – Laços de Sangue, da autora norte-americana Octavia E. Butler, é um triunfo, tanto como peça de ficção quanto de reflexão. Butler flerta com a polêmica ao tratar da escravidão nos EUA de maneira complexa, sem ceder a maniqueísmos. Ganha a autora, por elaborar uma narrativa tão madura. Ganha o leitor, ao se deparar com um texto cheio de nuances e ideias desafiadoras.
Acompanhamos a história de Dana, uma jovem escritora negra, na Los Angeles de 1976 (o romance foi publicado em 1979). Recém-casada, ao se mudar para a nova casa com o marido, Kevin, um escritor branco, inexplicavelmente, Dana é transportada no tempo e no espaço para a zona rural de Maryland, em 1815, antes da Guerra Civil Americana.
Logo ela entende que ali moram seus ancestrais. Dana é descendente de uma mulher negra, liberta, Hagar, fruto da relação entre um fazendeiro branco, Rufus, e uma escrava negra, Alice. Mas Hagar ainda não nasceu. E Rufus e Alice são apenas crianças.
Em sua primeira viagem no tempo, Dana salva Rufus de morrer afogado num rio. Depois de salvá-lo, Dana é quase morta pelo pai do garoto. O medo de morrer faz com que Dana volte para 1976, para a companhia do marido. Passaram-se alguns minutos desde sua partida.
Então, ao longo do romance, Dana sempre retornará ao passado quando a vida de Rufus for ameaçada. Assim como ela retornará ao seu presente quando acontecer o mesmo com a sua. Enquanto Dana quase não muda fisicamente em suas viagens, a cada salto no tempo, ela vê Rufus crescer, tornar-se homem, alguém mais e mais violento e manipulador.
Dana não sabe como, mas ela finalmente entende por que está ali. Ela precisa manter Rufus vivo até que ele e Alice tenham Hagar, sua ancestral direta, em nome de sua própria existência; algo no estilo do filme De Volta para o Futuro. Enquanto isso, Dana vivencia toda a brutalidade da escravidão.
Sua narração em primeira pessoa emula os relatos de ex-escravos que se tornaram marcantes na literatura americana pós-Abolição. O recurso da viagem no tempo permite um contraste poderoso. A voz de uma mulher negra contemporânea contando sua experiência como escrava. É um discurso articulado, cheio de insights sobre uma variedade de temas (racismo, poder, sexualidade, dominação, escolha), sempre fazendo conexão com o que acontece com a mulher negra no passado e no presente.
O texto é fluido, direto e imersivo. Butler soube muito bem equilibrar pesquisa e invenção. A voz de Dana nos passa toda a verossimilhança daqueles EUA do século 19, de como aquela sociedade funcionava, com seus cheiros, gostos e costumes. Principalmente, tomamos conhecimento da mentalidade de posse sobre a população negra.
O elenco de personagens mostra pessoas negras e brancas de maneira complexa, no contexto brutal da escravidão. A relação entre mestres e escravos não é feita entre monstros e pessoas subservientes. É feita entre gente branca comum, que detém o poder sobre os corpos de suas “propriedades”, apoiada por toda uma sociedade escravocrata, e gente negra aviltada, que detém apenas o poder de cometer suicídio ou tentar uma difícil fuga para a liberdade, sem nenhuma estrutura com que possa contar caso tenha sucesso.
Kindred é um romance importante por expor, de maneira nada convencional, a desumanidade da escravidão e por reafirmar como esse mal tem tudo a ver com o racismo e as tensões sociais dos últimos 200 anos nos EUA (e não só por lá).
Foto de capa: Pexels
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).