A trajetória da pandemia da covid-19 no Brasil e no mundo

O enfrentamento ao novo coronavírus só será possível se os países puderem confiar uns nos outros e os poderes públicos investirem na saúde e nas políticas sociais para reerguer a economia 21 de abril de 2020 Ricardo Santos

Completamos o primeiro mês de quarentena no Brasil. Testemunho e vivencio a pandemia do coronavírus, dividindo o espanto e o medo com o mundo. Acompanho a crise sanitária com a perplexidade do cidadão, a prudência do jornalista e a familiaridade do leitor e autor de ficção científica. Mas nenhum livro e nenhum filme nos prepara para experimentar na carne a incerteza da vida ou da morte apenas pelo ato de sair de casa.

No calor da hora, é difícil pensar direito. São tantas informações disponíveis. O cenário é tão dinâmico, mudando diariamente. De certa maneira, este texto estará velho amanhã. Mas é preciso manter a calma, mesmo num momento de angústia. Talvez isso seja exigir demais. Só que precisamos colocar a cabeça no lugar. Há tanto para entender e pôr em prática.

Precisamos também nos distanciar do cotidiano e tentar perceber as implicações mais amplas da crise. Para poder enxergar melhor o que realmente está acontecendo, temos de investigar o passado e compreender as causas estruturais do presente. Tento aqui propor uma reflexão além do noticiário. Procuro mostrar uma visão geral de um evento que atormenta a todos nós há quatro meses, mas que só recentemente notamos sua importância histórica. Não é exagero dizer que a COVID-19 é mais consequência do capitalismo do que da natureza.

O que estamos enfrentando?

O coronavírus não é algo novo para a humanidade. Na década de 1930, ele foi isolado por cientistas pela primeira vez. E na década de 1960, foi descoberto o primeiro coronavírus humano, ganhando esse nome por causa de sua microscopia, que lembra uma coroa.

Mas, afinal, o que é o coronavírus? Trata-se de uma família de vírus que causa diversos sintomas, alguns semelhantes à gripe até crises respiratórias. O atual foi descoberto em 2020. Por isso, foi chamado de novo coronavírus, coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (Sars-CoV-2), em referência ao Sars-CoV-1, que provoca a SARS, doença mais grave do que a gripe que, entre os anos de 2002 e 2003, provocou a morte de aproximadamente 800 pessoas no mundo.

A doença provocada pelo novo coronavírus se chama COVID-19. CO para corona, VI para vírus, e D para doença. O número 19 indica o ano de sua aparição. Em inglês Coronavirus Disease 2019.

“O coronavírus não é algo novo para a humanidade. Na década de 1930, ele foi isolado por cientistas pela primeira vez”, Ricardo Santos. Foto: Pixabay

Ou seja, outros coronavírus sempre estiveram entre nós. E por que agora é diferente?

No início, o que preocupou os especialistas em relação ao novo coronavírus foi sua facilidade de contágio, e não um maior grau de letalidade. Contudo, a cada reavaliação, são levantados possíveis efeitos graves da COVID-19 no corpo humano, como comprometimento parcial dos pulmões (fibrose pulmonar), sequelas cardíacas e AVC. Na Coreia do Sul, o que também tem alarmado os cientistas é a reincidência do novo coronavírus em pacientes curados, por reativação do vírus e não por uma nova contaminação. Isso compromete a expectativa de imunização dos infectados. Os estudos sobre as causas dessa recaída ainda estão em andamento.

Pacientes com a COVID-19, principalmente idosos, podem ter crises respiratórias severas. É como se a pessoa estivesse se afogando. Os pulmões se enchem de água, levando à morte por sufocamento. Por isso, os respiradores mecânicos são tão importantes. Eles permitem que uma maior quantidade de oxigênio seja introduzida nos pulmões inflamados, fazendo com que o doente consiga respirar e seja tratado.

Os primeiros casos do novo coronavírus foram registrados em dezembro de 2019, na cidade industrial de Wuhan, na China. A Organização Mundial de Saúde (OMS) vinha acompanhando a progressão do contágio, com maior preocupação a partir do final de janeiro. Quando o surto se tornou crítico, atingindo rapidamente outros países, foi declarada situação de pandemia, em 11 de março.

“Pacientes com a COVID-19, principalmente idosos, podem ter crises respiratórias severas. É como se a pessoa estivesse se afogando”, Ricardo Santos. Foto: Pixabay

Oficialmente, o paciente zero brasileiro foi anunciado como um homem de 61 anos, que retornou de viagem da Itália, em 25 de fevereiro. A primeira morte no país foi confirmada em 17 de março: outro homem de 62 anos, internado em um hospital em São Paulo. Uma investigação retroativa do Ministério da Saúde apontou que uma mulher de 75 anos faleceu de COVID-19, em 23 de janeiro, em Minas Gerais. Mas a informação foi logo corrigida pela pasta, tratando-se de um erro de dados.

Em 7 de fevereiro, o presidente da república assinou a medida provisória 921 para transferência de dinheiro do Orçamento ao Ministério da Defesa para o combate ao novo coronavírus. Mesmo assim, ações efetivas de isolamento apenas se deram após a declaração de pandemia pela OMS, e mais por iniciativa de prefeitos e governadores, antecipando-se ao próprio governo federal.

Só a ciência salva

As informações confiáveis relacionadas ao novo coronavírus são fundamentais para orientar as autoridades e a população sobre a melhor forma de enfrentar a pandemia e salvar vidas.

Nesse cenário de crise, os cientistas e os profissionais de saúde são os protagonistas, aqueles a quem devemos ouvir. Mas são as autoridades do legislativo, do executivo e do judiciário que têm o poder para colocar em prática o que a ciência está alertando, tendo como referência maior a OMS.

O problema é que nem sempre as autoridades estão dispostas a ouvir as conclusões, propostas e projeções de especialistas sérios.

Ainda não existe uma cura específica para a COVID-19. Pessoas internadas recebem alta, após tratamento dos sintomas, como febre e crise respiratória. Pacientes se submeteram a tratamentos experimentais, buscando o controle de infecções e o reforço do sistema imunológico.

pandemia da covid-19

“O que atualmente pode salvar vidas é cumprir, ao máximo, as determinações de isolamento e higienização pessoal, dos alimentos, dos ambientes”, Ricardo Santos. Foto: Unsplash

O melhor seria que já existisse uma vacina. Cientistas de todo o mundo correm contra o tempo para desenvolver uma vacina segura, inclusive brasileiros. Segundo o virologista Átila Iamarino, a vacina contra o ebola foi feita em tempo recorde, cinco anos.

Portanto, o que atualmente pode salvar vidas é cumprir, ao máximo, as determinações de isolamento e higienização pessoal, dos alimentos, dos ambientes etc. Assim podemos diminuir bastante o contágio em massa. Vale ressaltar que a COVID-19 também está matando pessoas mais jovens, fora dos grupos de risco, como diabéticos, asmáticos e cardíacos.

Ainda em teste, a cloroquina, utilizada para o tratamento da malária, e outros medicamentos não têm eficácia comprovada na cura da COVID-19. O uso indiscriminado dessas substâncias pode gerar efeitos colaterais graves, levando à morte.

(Ir)responsabilidades

A população precisa ser esclarecida e orientada sobre os perigos da COVID-19 e, principalmente, quais as formas de prevenção. Mais do que isso. As autoridades precisam dar as condições necessárias para que a população possa se proteger. Quarentena não é um privilégio. É um direito. Por isso, o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso é tão importante.

As pessoas já estão perdendo seu sustento por causa da pandemia. Uma cidade como Salvador, com 56,7% de trabalhadores na informalidade, já vem sofrendo com o impacto do não cumprimento a rigor da quarentena, com o aumento de casos confirmados da COVID-19 em bairros populares, como Brotas e Engenho Velho de Brotas. Para muitos, o isolamento significa passar fome. Além disso, o exemplo descabido do presidente da república, ao continuar circulando pelas ruas, estimula comportamentos inconsequentes.

A irresponsabilidade do governo federal, de não reconhecer de imediato a gravidade da pandemia, retardou uma resposta rápida também na questão social da renda. Após o período de incubação do novo coronavírus, de no máximo 14 dias, a chance de contaminação em massa é maior. Por isso, estamos em meio a um período de reforço do isolamento, o que será fundamental para que o sistema de saúde, ou seja, a rede pública e privada de hospitais em todo o país, não sofra um colapso, impossibilitando o atendimento até de quem paga um plano de saúde caro.

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“No Ceará, não há mais leitos nas UTI´s da rede pública para tratamento da COVID-19, gerando fila de espera”, Ricardo Santos. Foto: Pixabay

No Ceará, não há mais leitos nas UTI´s da rede pública para tratamento da COVID-19, gerando fila de espera. O governo do Amazonas está disponibilizando contêineres frigoríficos para armazenar a crescente quantidade de corpos das vítimas para que não dividam espaço com pacientes, nas unidades hospitalares do estado.

Justamente nesse período crítico, as pessoas que se cadastraram para receber o auxílio emergencial, mais de 30 de milhões em todo o Brasil, estão em filas de banco e lotéricas em vez de já estarem em casa com comida na mesa. Fora os que ainda vão receber o benefício, conforme calendário de pagamento.

A falácia do Estado mínimo

A pandemia aprofundará uma desaceleração na economia que já estava batendo na porta do mundo em 2019. Em plena crise sanitária, pessoas estão perdendo seus empregos. E neste ponto igualmente crucial as autoridades pouco fizeram até agora para proteger esses trabalhadores de fato. Na prática, muitas pessoas estão decidindo entre a demissão ou o fechamento de acordos capciosos para redução de salários e suspensão de contratos, conforme a recente medida provisória 936. Para piorar a situação, uma votação do STF considerou a medida constitucional para indignação das centrais sindicais.

Dizer quando poderemos recuperar a economia ainda é incerto. A crise sanitária impede que prazos de retomada das atividades sejam estipulados. Para isso é preciso que gestores, trabalhadores e consumidores estejam saudáveis.

Mas uma coisa é certa: o investimento do Estado será fundamental para reerguer a economia. É o Estado que terá recursos para fazer investimentos por meio de empréstimos a empresas, execução de obras e pagamento de benefícios.

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“O nosso Sistema Único de Saúde (SUS) atende a 80% dos brasileiros, em sua maioria com renda menor que um salário mínimo, e está sendo muito exigido na luta contra a COVID-19”, Ricardo Santos. Foto: Pixabay

Outro ponto importante é o papel do Estado na saúde da população. Exemplos ao redor do mundo mostram que países com um sistema de saúde público, por mais precário que seja, como na América Latina, têm mais chances de enfrentar a pandemia. Países desenvolvidos, como Itália e Inglaterra, apresentaram quadros catastróficos mais devido a decisões políticas desastrosas do que pela falta de uma rede pública com recursos.

O nosso Sistema Único de Saúde (SUS) atende a 80% dos brasileiros, em sua maioria com renda menor que um salário mínimo, e está sendo muito exigido na luta contra a COVID-19. Ao SUS, sempre faltou maior investimento das autoridades e sobrou o lobby do setor privado para o seu sucateamento.

Por outro lado, os EUA, atual epicentro mundial do novo coronavírus, não têm um sistema de saúde público universal. Vinte e sete milhões de americanos não possuem planos de saúde privados. Nessa pandemia, pessoas estão morrendo em casa por falta de atendimento. Para piorar, os planos de saúde não cobrem todos os custos das internações. Seus usuários podem parar no hospital para se tratar da COVID-19 e sair de lá com uma conta de milhares de dólares.

A rede pública americana é limitada aos muito pobres e idosos, mesmo assim para procedimentos simples e de emergência. Semelhante à situação no Brasil, por causa da resposta tardia do governo americano, governadores dos EUA também se anteciparam para adotar medidas de prevenção e isolamento.

A culpa é da China?

A origem do novo coronavírus ainda não está comprovada, não existem evidências científicas. Mas o que se sabe, com certeza, é que sua causa é natural. A COVID-19 não foi criada em laboratório, como alardeiam as teorias da conspiração. Investigações em andamento apontam para uma transmissão zoonótica, ou seja, por meio do contato de seres humanos com possivelmente dois animais: o pangolim (que lembra um tatu) ou o morcego, com posterior mutação do vírus. Doenças como HIV, ebola, a gripe aviária e a gripe suína surgiram de maneira parecida. Mutações têm mais a ver com a capacidade de sobrevivência do vírus do que com seu grau de letalidade.

Pandemias são declaradas não exatamente pela gravidade da doença, mas pelo seu alcance geográfico. A OMS considera que uma pandemia acontece quando surge uma nova doença que infecta seres humanos com facilidade e em escala continental ou planetária.

Pandemias assolam a humanidade desde o século 16, com cóleras, gripes e tifos. A chegada de exploradores europeus em locais antes desconhecidos afetaram profundamente a fauna, a flora e populações locais, causando devastação ambiental, transmissão de doenças e mortes.

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“A COVID-19 não foi criada em laboratório, como alardeiam as teorias da conspiração”, Ricardo Santos. Foto: Pixabay

O que mudou a partir da revolução industrial na Inglaterra, entre os séculos 18 e 19, foi que pandemias se transformaram numa consequência do capitalismo. A acelerada devastação da natureza nos países fornecedores de insumos, a disputa cada vez mais acirrada por rotas comerciais e novos mercados, a insalubridade das condições de trabalho nas fábricas e grandes fazendas e o baixo investimento em saúde pública se tornaram uma combinação propícia para o surgimento de novas doenças com um alcance nunca antes visto.

No livro Contágio Social – coronavírus e a luta de classes microbiológica na China, o coletivo Chuang faz duras críticas ao governo chinês pela falta de investimento em saúde pública no país e também acusa governos e outras vozes do ocidente de alimentar um discurso xenófobo contra a China com fake news e alegações infundadas e equivocadas.

A mais severa crítica do coletivo comunista ao governo chinês se deu pela política de fortalecer o desenvolvimento da infraestrutura produtiva, em detrimento ao investimento no sistema de saúde público. Os canteiros de obras na cidade de Wuhan equivalem a toda a área de uma ilha como Hong Kong. Enquanto que o tradicional sistema de medicina preventiva vem sendo degradado, ano após ano, em todo o país. Além da urbanização crescente, aumentando o número de pessoas desassistidas nas cidades.

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“O que mudou a partir da revolução industrial na Inglaterra, entre os séculos 18 e 19, foi que pandemias se transformaram numa consequência do capitalismo”, Ricardo Santos. Foto: Reprodução/Internet

O coletivo Chuang aponta que, basicamente, existem duas categorias de epidemias: as originadas no núcleo de produção agroeconômica e as originadas nas fronteiras agrícolas.

No modelo da agroindústria global, as grandes produções são propícias ao surgimento de pragas. No caso da gripe aviária, o vírus não se desenvolveu em aves selvagens, mas em aves domésticas em fazendas industriais. A monocultura genética compromete o sistema imunológico desses animais domésticos. Eles são mantidos em cativeiro em grande quantidade, em uma densidade populacional que os deixa vulneráveis a novas infecções.

Soma-se a isso a expansão agrícola predatória em ecossistemas inexplorados, que obriga o ser humano a ter um contato desarmônico com uma natureza selvagem que carrega fatores desconhecidos, e as condições precárias de moradia, de trabalho e de saúde nos centros urbanos. “Isso fornece o meio ideial através do qual pragas cada vez mais devastadoras nascem, transformam-se, são induzidas a saltos zoonóticos e, em seguida, agressivamente vetorizadas através da população humana.”

Cooperação internacional

Nenhum país irá vencer o novo coronavírus sozinho. O historiador israelense Yuval Harari, autor do livro Sapiens – uma breve história da humanidade, em artigo publicado na revista Times, afirma que o instrumento mais eficaz que nós temos para enfrentar essa crise sanitária é a cooperação sincera.

Devido ao pânico geral, aos hospitais lotados e às inúmeras valas abertas, muitos procuram se resguardar com medo. Governantes apelam para o nacionalismo e para o fechamento das fronteiras para conter a doença. Tentam “arrumar a casa” em meio ao caos.

O que muitos não percebem é que, enquanto houver uma única pessoa no mundo com o novo coronavírus, ninguém estará seguro.

Harari afirma que, primeiro, não adianta fechar as fronteiras. O vírus sempre encontrará uma maneira de romper bloqueios. E segundo, apenas com a união dos vários esforços, experiências e conhecimentos no combate à COVID-19 é que poderemos vencê-la. Quando Cuba envia seus médicos para a Itália, além de um ato humanitário, o governo cubano está pensando também na saúde de seu próprio povo.

O mesmo acontece quando a China disponibiliza para a comunidade científica internacional dados claros sobre a ocorrência do novo coronavírus no país. Devemos voltar nossa atenção também onde há menos recursos para enfrentar a pandemia, como nos países africanos, na América Latina e nos campos de refugiados na Palestina.

No sentido oposto, o governo dos EUA usa o poder do dinheiro e da força para comprar o maior número de respiradores, causando revolta em outras nações igualmente em crise. O presidente Donald Trump se comporta como alguém que chega no supermercado e enche o carrinho de compras sem pensar no próximo, tornando-se uma vergonha como exemplo de líder mundial.

O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, aproveitou a instabilidade provocada pela pandemia para fortalecer seu governo de extrema-direita, com poderes extraordinários por tempo indeterminado, infringindo direitos civis e censurando à imprensa.

Para o historiador isralense, em um momento como esse em que vivemos, o papel do líder é inspirar a confiança da população na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. E não o contrário.

O enfrentamento ao novo coronavírus só será possível se as pessoas, os poderes públicos e os países puderem confiar uns nos outros.

*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).

Foto de capa: Pixabay

Uma resposta para “A trajetória da pandemia da covid-19 no Brasil e no mundo”

  1. Carla disse:

    Excelente texto! Bem explicativos os tópicos, críticas pontuais, muito bom trazer o histórico do coronavírus nos séculos anteriores, parabéns!

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