As conquistas da resistência negra brasileira
No dia nacional de Zumbi e da Consciência Negra, é preciso refletir sobre a importância das lutas dos movimentos negros para a transformação das desigualdades sociais que atingem essa população no Brasil 20 de novembro de 2019 José Ricardo Marques dos SantosO que dizer hoje, 20 de novembro, data escolhida para reverenciar Zumbi dos Palmares, considerando o momento crítico que vivemos no qual a violência racista, xenófoba, homofóbica graça no país? Uma reflexão se faz necessária para avaliar o que foi construído de concreto se efetivando como política pública, assim como os resultados destas políticas e seu impacto na sociedade “brasileira”.
Tomarei como ponto de partida o ano que entrei em contato com as pautas ligadas aos Movimentos Negros pela primeira vez, 1999, foi o ano que entrei na universidade. Nestes 20 anos os movimentos negros retomaram a sua característica popular, se tornaram mais plurais (muito com a ajuda da internet), assim como popularizaram pautas como a reivindicação por vagas nas universidades e a denúncia do genocídio da juventude negra, fazendo com que estes temas sejam discutidos na sociedade, o que parecia ser impossível aos olhos de um estudante de 1999 recém-chegado à universidade.
A trajetória histórica dos movimentos negros até os anos 2000 combinava a denúncia da desigualdade social racialmente estruturada com pautas e ações ligadas a sub-representação das populações historicamente discriminadas, nos mais variados campos da sociedade. Estas reivindicações surgem em movimentos populares nas mais diversas regiões do país, sendo a década de 1980 especialmente importante em virtude de diversos estudos trazerem confirmações para problemas apontados pelos movimentos negros ao longo do século XX. Há um paralelismo importante que precisa ser notado: há hoje muitas pesquisas que tem como foco a mortalidade da juventude negra, explicitando o componente racial das políticas de segurança, como demonstra a pesquisa realizada pela UFSCar em 2011 que trata justamente deste tema. A pesquisa em si é mais um exemplo de como os movimentos sociais, ao aliarem militância e pesquisa, neste momento, conseguem trazer de volta esta característica que permeou as ações de gerações de militantes no século XX.
Neste sentido, a Lei 10.639/2003 que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história da África, dos africanos e africanas no Brasil e das culturas afro-brasileiras nos currículos, pode ser considerada como a consolidação de décadas de luta social. Primeiro por ser o reconhecimento por parte do Estado do racismo estrutural – reivindicação histórica dos movimentos negros – assim como a aceitação da multiculturalidade da sociedade no Brasil. A promulgação da lei traz para o ensino a preocupação com a genealogia das populações negras, a qual foi negada uma história.
A lei possibilita tornar a construção das subjetividades um ponto central para o combate ao racismo. Posteriormente, esta discussão foi estendida para a questão indígena (lei 11.645/2008). Os primeiros resultados começam a aparecer timidamente: através do aumento considerável de mulheres negras nas universidades, assim como do aumento das populações negras em geral. Isto pode ser visto como o resultado de 16 anos de políticas públicas.
Contudo, os números chegam bem no contexto político em que a retirada de direitos se tornou uma política de Estado. Em um momento onde há o recrudescimento da violência política que atinge a qualquer tipo de manifestação de diferença, instaurando um clima de intolerância generalizado. Por outro lado, as demais estatísticas mudaram pouco, as populações negras são as que mais sofrem com a pobreza, desemprego e saúde deficitária. A violência da sociedade “brasileira” – como as das balas perdidas que sempre acham os corpos negros no Rio de Janeiro – ameaça hoje estas conquistas tanto quanto o fim das próprias políticas que possibilitaram estas pequenas mudanças.
Entretanto, desde 2003, a Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial incentivou a criação de ações afirmativas em municípios e estados. A discussão sobre a especificidade das populações negras hoje está expressa também no SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Nos três níveis federativos ocorreram formações para professores e professoras sobre a lei 10.639/2003. Tudo isso pode ser relacionado ao aumento de canais no youtube, e em outras redes sociais, formação de coletivos, o surgimento de ativistas, que tem como foco a experiência cultural desta juventude atual, que se reconhece como descendentes de africanas e africanos, e até mesmo se reconhece como parte da diáspora africana. Justamente por isso podemos estar diante de uma mudança do que entendemos por consciência negra, uma vez que há novas pautas, novas experiências culturais, de comunicação ou mesmo de expressão.
Com isso quero dizer que há mudanças orgânicas da sociedade ocorrendo no Brasil, mudanças que serão importantes para a transformação das desigualdades sociais que afligem esta parcela da sociedade, ainda que no atual contexto político haja uma disposição francamente contrária as políticas públicas de ação afirmativa, evidentemente contra a construção de espaços plurais e de tolerância. Neste ponto é preciso dizer que “quebrar placas” não fará com que estas discussões desapareçam da sociedade.
O que os movimentos negros sempre denominaram como “consciência negra” nada mais é que a capacidade de qualquer pessoa de se identificar com estas pautas, empatizar com estas lutas, dispensando a necessidade de uma pessoa “ser uma coisa ou outra”. Empatizar também não significa participar diretamente de um movimento social. Pessoalmente considero que todos estes elementos elencados acima fizeram com que o debate passasse a ter um novo formato. Há novas posições consolidadas, como a lei 10639/2003, para que novas pessoas possam propor sobre estas lutas historicamente construídas, e assim mudar o que se entende por consciência negra.
* José Ricardo Marques dos Santos é professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), estuda a escravidão no século XIX e faz parte de um grupo que discute as ações afirmativas e as políticas de cotas da Uesb.
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