As aventuras literárias de O’Brian
Composta por 20 romances completos e um inacabado, a saga do autor britânico conta as aventuras do capitão da marinha real da Inglaterra, Jack Aubrey, e de seu médico de bordo, Stephen Maturin, durante as Guerras Napoleônicas no século 19 8 de dezembro de 2019 Ricardo SantosA série de livros Aubrey/Maturin é uma das minhas paixões literárias. Eu vi o filme Mestre dos Mares, com Russell Crowe e Paul Bettany, lá em 2003. Lembro de ter sido uma das minhas melhores experiências numa sala de cinema. O filme de Peter Weir tem um ritmo fantástico e personagens cativantes, mas peca por focar na ação, deixando de lado muita coisa das sutilezas dos personagens e do contexto da época. O roteiro foi baseado em alguns volumes da saga escrita pelo britânico Patrick O´Brian. Este é um tipo de material que seria melhor explorado numa série da HBO ou Netflix.
Mestre dos Mares, o livro, é a primeira aventura do capitão da marinha real britânica Jack Aubrey e de seu médico de bordo Stephen Maturin, durante as Guerras Napoleônicas, no século 19. Gosto de livros de aventura, clássicos e contemporâneos, ficção e não-ficção. Mas o que torna a série de O´Brian tão especial é seu caráter híbrido. O autor tem ambição literária sem perder de vista a diversão do leitor.
Muitos identificam uma forte influência de Jane Austen em O´Brian, o que foi confirmado pelo próprio. A influência é realmente bem perceptível no humor cheio de ironia, nos comentários que os personagens fazem uns dos outros, na maneira como as regras sociais são determinantes (no caso, na hierarquia da marinha britânica da época), e no uso de cartas e diários como recursos para o leitor conhecer mais diretamente a personalidade de cada um.
O que logo chama atenção é a obsessiva pesquisa histórica, a marca registrada de O´Brian. Ela está em cada linha desses livros, mas a genialidade do autor permite que a pesquisa não se torne cansativa para o leitor. Ela sempre está ali para funções narrativas. No início, os termos náuticos podem causar um baita estranhamento, mas sua paciência será recompensada.
A criação desse mundo é fascinante. Aos poucos, dá para se familiarizar com alguns termos e condutas. Buscas na internet melhoram a compreensão do que acontece durante as batalhas navais. A autora de fantasia e ficção científica, Jo Walton, é fã dos livros justamente pela prosa imersiva de O´Brian e pela atmosfera da vida no mar e na marinha britânica elaborada de maneira tão convincente. Para ela, o mundo criado na série não é muito diferente dos mundos alienígenas da autora C. J. Cherryh, por exemplo.
Outro elemento de sucesso (para muitos o mais importante, como eu também acho) são os personagens. A começar pelos protagonistas. Jack Aubrey não é um machão típico. Ora ele é viril, capaz e confiante. Ora é patético, depressivo e vulgar. Um marinheiro desde garoto com um talento para o violino. Seu humor é impagável. Já o doutor Stephen Maturin é mais um tipo intelectual, interessado em ciências naturais e política, e parceiro musical menos talentoso de Jack, quando toca seu violoncelo. Seu humor é mais irônico e seus insights sobre vários temas são deliciosos de acompanhar. Há também todo um elenco de personagens secundários riquíssimo e igualmente cativante. Por menor que seja a participação de cada um deles, ela nunca será rasa.
Outro destaque é a prosa de O´Brian. Sua linguagem é vívida, seus diálogos são marcantes, mesmo os mais inverossímeis e longos. Sua habilidade em mudar sutilmente o ponto de vista de um protagonista para outro ou para um coadjuvante, no intervalo de uma página ou mesmo em poucas linhas, é notável. Ele também é geralmente bem sucedido quando demora mais numa cena importante, detalhando-a melhor ou resolve mais rapidamente a cena seguinte, dando saltos no tempo, passando de uma sequência para outra em cortes quase cinematográficos, apesar do clima de literatura do século 19. Por isso, mesmo com a incompreensão dos termos náuticos, o ritmo do texto é preservado e, muitas vezes, é empolgante, pelo suspense ou pela ação.
Mestre dos Mares foi publicado originalmente em 1969. A série é composta por 20 romances completos e um inacabado, este último publicado em 2004, após a morte de O´Brian em 2000. Por causa do filme, foram lançados no Brasil, pela editora Record, os seis primeiros livros e o décimo. Mestre dos Mares (1° livro), O Capitão (2° livro), A Fragata Surprise (3° livro), Expedição à Ilha Maurício (4° livro), A Ilha da Desolação (5° livro), O Butim da Guerra (6° livro) e O Lado Mais Distante do Mundo (10° livro). Em 2015, a editora relançou Mestre dos Mares numa edição de bolso.
Em Mestre dos Mares, quase não existe trama. Praticamente é uma sucessão de aventuras no mar. A partir de O Capitão, tudo se torna mais complexo, com tramas mais elaboradas. Recomenda-se a leitura na ordem de publicação. A série cobre um período de mais ou menos 15 anos na vida dos protagonistas. Para quem lê em inglês, vale muito a pena preencher as lacunas do que não foi publicado por aqui e continuar acompanhando as aventuras de Jack Aubrey e Stephen Maturin. Essa saga naval consegue reunir, de maneira brilhante, apuro literário, resgate histórico e divertimento.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Imagem de capa: Reprodução das capas dos livros de O’Brian
Olha que interessante…. até hoje nunca tinha ouvido falar no Patrick O’Brian. Li a resenha de uma biografia sobre ele no Times Literary Supplement, pesquisei no Google, e este teu artigo é um dos primeiros resultados na busca. Bom artigo, aumentou meu interesse. Parabéns
Seu comentário foi esclarecedor para mim que inicio e me apaixono por essa coleção. Obrigado.