“Encruzilhada” é um romance necessário na literatura brasileira
Em uma mistura de ficção científica e horror, a obra de Lúcio Manfredi provoca reflexões filosóficas por meio da história de Max, um matador profissional em busca de respostas dentro de uma casa abandonada 16 de fevereiro de 2020 Ricardo SantosMais do que um soco no estômago, o livro Encruzilhada, de Lúcio Manfredi, é um soco no cérebro. O romance tira o leitor de sua zona de conforto para jogá-lo num vórtice de imagens e ideias que, a todo momento, nos questiona sobre as certezas de nossa realidade, sobre as certezas de quem nós somos.
Uma noite, Max, um matador profissional, está fugindo de antigos parceiros por não ter aceito um último serviço. Ele vê uma casa com as luzes apagadas e resolve refugiar-se nela. E então começa uma jornada que vai testar os limites de sua sanidade.
À medida que o tempo passa dentro da casa, Max entra em contato com situações e objetos que o fazem questionar inclusive sua própria identidade. Presente, passado e futuro se intercalam numa intensidade que é difícil de avaliar o que é real, sonho ou delírio. De repente, ele se vê transformado em outra pessoa, localizada em outro espaço, em outro tempo.
Agora não é apenas com o presente, passado e futuro do Max matador que ele tem de lidar, mas dele como outra pessoa, como outras pessoas. E também com o deslocamento no espaço-tempo de outros personagens ao seu redor. Para piorar as coisas, o clima de terror aumenta, chegando a um nível insuportável.
Enquanto eu avançava na leitura, seis nomes me vieram à cabeça: Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares, Kurt Vonnegut, William Burroughs, Thomas Pynchon e Philip K. Dick.
Um contato prévio com a obra desses autores enriquece a leitura do romance de Manfredi. Claro que outros leitores, a partir da bagagem e do entendimento de cada um, poderiam escolher outros nomes, como Borges, Kafka, Virginia Woolf, Edgar Allan Poe, James Joyce, Swift, isso sem falar em nomes de outras áreas do conhecimento, como Jung, Baudrillard, Platão, Heráclito e por aí vai. A riqueza de interpretações que o romance oferece permite uma leitura bastante particular, não se esgotando em si, deixando muitas portas abertas.
Em relação aos seis autores que mencionei, cada um tem um determinado grau de influência na construção de Encruzilhada. Em menor grau estão Cortázar, Bioy Casares e Vonnegut. Os dois primeiros são mestres argentinos do fantástico, mas um fantástico que nunca diz seu nome, invadindo o cotidiano de maneira sutil. Já Vonnegut entra com sua ironia triste e os elementos de ficção científica. Em maior grau, constata-se a influência de Burroughs, Pynchon e K. Dick, questionadores viscerais do real, denunciantes de conspirações surreais e cronistas devastadores da sociedade de consumo.
Encruzilhada não é uma colcha de retalhos. Não é apenas uma homenagem a esses autores, não são referências sem filtro. Manfredi pega tais referências para criar algo seu, e ele deixa sua marca principalmente em três aspectos. Primeiro, no uso de elementos da umbanda e de xamanismo indígena. Não para tornar a narrativa exótica ou estereotipada. Não para dar uma cor local. Tais elementos estão bem integrados a tudo aquilo que no texto questiona as bases de nossa realidade.
Segundo, o humor, curiosamente, esculhambado. Ainda mais inserido numa narrativa tão tensa. Não é alívio cômico. Os personagens se tratam de forma coloquial, com palavrões e obscenidades, com a malícia do dia a dia. Novamente, é algo brasileiro, sem apelar para o estereótipo. Esse contraste entre a linguagem cotidiana e a linguagem reflexiva acaba gerando o terceiro aspecto de originalidade do romance.
O final de Encruzilhada não me agradou muito. Considero-o aquém de toda a excelência da jornada. Não que eu estivesse em busca de respostas. Eu não esperava que tudo fosse explicado. O que eu esperava mesmo era uma pergunta ainda mais desafiadora. E ela não veio. Terminado o romance, fiquei com essa história na cabeça, pensando na jornada, não em sua resolução.
Encruzilhada é um romance necessário na literatura brasileira contemporânea, que merece ser apreciado pela ousadia em unir apuro literário, ficção científica, terror e o fantástico.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Imagem de capa: Divulgação/ Editora Draco