Escreva contos como uma mulher
Quatro autoras de diferentes partes do mundo colocam as mulheres no centro de suas obras e o conto em destaque na cena literária 15 de setembro de 2019 Ricardo SantosEstes quatro livros de contos dão voz às mulheres da maneira mais completa possível. Ou seja, mostram que elas podem ser o que bem entender. O que muitos consideram ser loucura, vulgaridade, petulância e desvio, as mulheres chamam de liberdade. Nem todas as mulheres desses contos têm plena consciência do seu feminismo, mas todas são personagens tridimensionais. Sabem o que querem e não querem para si.
Em O que Acontece Quando um Homem Cai do Céu, de Lesley Nneka Arimah, acompanhamos o livro com as histórias mais variadas em seus temas. A autora é britânica, criada na Nigéria e hoje mora nos EUA. É uma nerd declarada. E suas histórias refletem isso. Há de tudo um pouco, o fantástico, ficção científica, fábula, terror. Há também contos realistas. O que chamou tanto a atenção para esse livro largamente premiado é a sensibilidade de Arimah em conectar invenção e realidade de maneira tão intensa, profunda e sábia em poucas páginas. A visão geral é de desencanto. As personagens são mulheres ora sofridas, ora opressoras. Por isso, aqui não há lugar para ingenuidade. Outro aspecto interessante é ver como essas meninas e mulheres negras têm uma vida interior vibrante, provocando nelas todo tipo de sentimentos. A edição da editora Kapulana é bem cuidada. Não há muitos erros de revisão. Mas, às vezes, o espaçamento entre as palavras atrapalha a leitura. E a capa podia ser mais bonita. O que Acontece Quando um Homem Cai do Céu traz uma vigorosa perspectiva de pessoas que dificilmente são vistas em sua plenitude.
Já a autora argentina Mariana Enriquez apresenta ao leitor brasileiro um dos livros de ficção mais impactantes da última década. O seu As Coisas que Perdemos no Fogo investe no terror de forma visceral. É assustador porque a autora transforma os horrores do cotidiano da classe média e da periferia de Buenos Aires e da história recente da Argentina numa literatura claustrofóbica, ampliando significados e efeitos do comportamento humano e de mazelas sociais e políticas. Aqui também o foco são meninas e mulheres. Desta vez, as protagonistas estão mais à vontade na posição de gente branca com algum dinheiro, mesmo que meio decadente. Mas Enriquez nunca é leviana. Aliás, é por meio de sua extrema consciência que ela aperta os botões certos para nos apavorar. Estas protagonistas geralmente se colocam em situações perturbadoras, testemunhas do que há de pior na sociedade. Em ritmo de suspense, cada conto nos envolve e desestabiliza, à medida que avançamos em atmosferas pesadas, em lugares sujos, escuros e abandonados, habitados por personagens trágicos. A edição impecável da editora Intrínseca não nos distrai, não nos deixa sair desse mundo. Leitura para estômagos fortes.
O Corpo Dela e Outras Farras, da cubano-americana Carmen Maria Machado, conseguiu a proeza de ser finalista do National Book Award, o segundo prêmio literário mais importante dos EUA, depois do Pulitzer. É uma enorme conquista para um livro tão influenciado pelo fantástico e pelo terror. Não podia deixar de ser, mulheres são as protagonistas, geralmente lésbicas. Seus contos são alegorias poderosas a respeito de vários aspectos da vida da mulher contemporânea, principalmente, sobre agressões físicas, psicológicas e simbólicas, como a violência doméstica, o estupro, os papéis femininos na sociedade, a frustração sexual, a ditadura da beleza, a aceitação do corpo. Infelizmente, no geral, foi o livro de que menos gostei dos quatro, por sua irregularidade. Pela variação entre contos excelentes e cansativos, longos além da conta. Mas isso não significa que você deva ignorar a obra. Ela vale muito a pena por seus melhores momentos. E para completar, a edição da editora Planeta do Brasil é a mais bonita de todas, com uma lindíssima capa dura e um projeto gráfico ao mesmo tempo elegante e sombrio.
No caso da gaúcha Natália Borges Polesso, acompanhamos algo muito interessante. Amora é um livro de contos com tema único, relações lésbicas, mas com várias abordagens. O mais bacana é que os contos trazem uma consciência feminista muito presente, mas não há nada de panfletário. As personagens se comportam de maneira complexa, não se limitando a ser uma coisa só, uma metáfora, uma condição. O desenvolvimento realista de cada narradora ou personagem central convence o leitor de que se trata de gente de carne e osso, com todas as suas potencialidades e contradições. Tem conto que você dá altas gargalhadas pelo humor ácido e tem conto que é emocionante pela força do afeto. Natália é a autora que mais experimenta em conteúdo e forma, sendo que algumas histórias são verdadeiros poemas em prosa. A edição da Não Editora é caprichada, em capa dura, muito gostosa de ter em mãos e com uma diagramação que facilita a leitura. O livro ganhou o prêmio Jabuti com todos os méritos. É um marco da literatura nacional.
Temos aqui quatro exemplos do que há de melhor na literatura contemporânea. São visões de mundo que não pedem licença para existir. Trazem autoras que aliam o apuro narrativo com ideias arrojadas, colocando o tão relegado conto no centro da cena literária.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
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