Filme “Destacamento Blood” discute o racismo de forma contundente
O que torna esse filme atual é a conexão entre passado e presente ao trazer a guerra do Vietnã pela perspectiva do soldado negro 16 de junho de 2020 Ricardo SantosDestacamento Blood (2020) é um filme lançado com um timing perfeito, infelizmente. Os protestos após o assassinato do americano George Floyd pelo policial Derek Chauvin geraram uma revolta mundial. Mais uma vez, estamos exigindo que pessoas negras sejam tratadas como seres humanos. O filme de Spike Lee exige o mesmo, de maneira contundente. Não porque o diretor tenha um dom premonitório. E sim porque o Black Lives Matter sempre esteve na sua agenda política, muito antes do surgimento da hashtag. E, como é mostrado no filme, o negro americano luta, literalmente, para ser reconhecido como um pleno cidadão dos EUA desde a fundação do país.
Spike Lee entrega para o espectador um grande filme. Uma produção cinematográfica com a ambição de um mestre do ofício. O diretor mostra claramente sua visão política, contando uma história rica e vívida. Uma história que diverte e faz pensar. O equilíbrio entre humor e drama é uma constante em sua carreira, o que torna personagens e situações muito humanas, com camadas e contradições.
Quatro homens negros, veteranos da guerra do Vietnã, voltam àquele país para encontrar os restos mortais de seu líder de pelotão. E também para desenterrar um tesouro escondido na selva há cinquenta anos: os destroços de um avião que levava barras de ouros do governo americano.
Esse retorno dos Bloods é doloroso. Mistura nostalgia, estresse pós-traumático e, principalmente, a noção de que eles lutaram uma guerra imoral. O filme deixa evidente duas coisas: 1) geralmente, guerras são sobre dinheiro, ganância; e 2) os verdadeiros inimigos estão em casa, as instituições que oprimem a população negra, como a polícia, os tribunais e os partidos políticos.
O que torna esse filme atual é a conexão entre passado e presente. A guerra do Vietnã é vista aqui pela perspectiva do soldado negro, muitas vezes, usado como bucha de canhão para ser morto na linha de frente. Assim como aconteceu em tantas outras guerras. E ainda ocorre o desrespeito no dia a dia, de maneira brutal.
Spike Lee é um diretor da velha guarda, mas muito antenado com o que está rolando, na produção audiovisual contemporânea e nas ruas. Ele é um homem hétero cis negro que sabe muito bem que temos de lutar contra qualquer tipo de preconceito.
Como cinema, Destacamento Blood é de encher os olhos. Um épico de guerra mais intimista, digamos assim. O valor de produção está lá. Spike Lee teve à disposição um grande orçamento. A fotografia muda de enquadramento, cores e espaços de maneira orgânica, fazendo transições entre a década de 1960 e os dias de hoje que enriquecem a narrativa e não confundem o espectador.
A trilha sonora sinfônica e as músicas de Marvin Gaye elevam os momentos mais impactantes do filme. A montagem não-realista segue o estilo provocador de Spike Lee, com o uso inspirado de imagens de arquivo. O didatismo do diretor está longe de ser chato. É elucidativo. E o elenco está ótimo, com grandes atuações, mas quem rouba a cena é Delroy Lindo, interpretando Paul, o veterano mais machucado pela vida, alguém cheio de raiva e eleitor de Trump.
A ressalva fica para a falta de maior coesão do filme. Uma ou duas subtramas podiam ser reduzidas ou cortadas sem prejudicar a força da história dos Bloods. E com isso diminuir uns vinte minutos da duração. Além de haver claramente uma dicotomia entre o drama de guerra inicial e depois a busca pelo ouro em ritmo de uma aventura intensa e violenta, inspirada no clássico O Tesouro de Sierra Madre (1948).
Com Destacamento Blood, Spike Lee procura o que há de bom em nós mesmos. Apesar de toda injustiça e falta de esperança, ele mostra nesse filme que devemos ser pessoas melhores. E que, para isso, devemos enfrentar nossos fantasmas, como indivíduos e sociedade. Devemos encarar as dores e os traumas do passado para combater o que nos assombra no presente.
Ficha técnica: Destacamento Blood (Da 5 Bloods, 2020), de Spike Lee, 156min., Netflix
Foto de capa: Divulgação/Destacamento Blood
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo.