Filme “O Homem Invisível” mostra relacionamento abusivo em um terror real
A trama do diretor Leigh Whannell preserva elementos do romance clássico de H.G. Wells, de 1897, e acerta na fotografia que provoca aflição 9 de março de 2020 Ricardo SantosO que os homens podem aprender com o filme O homem invisível? Porque o problema do machismo, da masculinidade tóxica e da relação abusiva é nosso, dos homens. Sem a gente na jogada, as mulheres deixariam de sofrer a ameaça física e psicológica de namorados, maridos, chefes, colegas de escola, de trabalho ou de qualquer cara que passasse na rua, tendo seus comportamentos nocivos normalizados por um sistema social que inferioriza as mulheres. Pior, que as culpa por serem independentes, por se vestirem do que jeito que bem entender, por escolherem seus parceiros e parceiras, chegando ao ponto de criminalizar e tirar delas as decisões sobre o próprio corpo. Uma mulher sai de casa pela manhã para estudar, trabalhar ou ir na esquina comprar pão e não sabe se retornará sem sofrer um assédio moral, sexual, uma violência física ou se irá voltar com a vida intacta.
A grande sacada da nova versão de O homem invisível foi fazer um suspense de primeira, um entretenimento muito competente, que, ao mesmo tempo, nos faz refletir sobre um tema tão atual.
O filme preserva alguns elementos do romance clássico de H.G. Wells, publicado em 1897, como a arrogância do cientista e suas pesquisas no campo da óptica. Assim como a ideia do terror social provocado pela condição do homem invisível. De resto, a trama do filme é uma criação do diretor e roteirista Leigh Whannell.
A situação do relacionamento abusivo é muito bem trabalhada, na medida em que o tema se insere nos desdobramentos da história de forma orgânica, casando acertadamente a maneira de contar a história e o que ela pretende discutir, seja pela fala dos personagens, seja pela cenas de tensão e violência. Esse é um recurso antigo no cinema, chamado pelo diretor Martin Scorsese de técnica do contrabando, quando um cineasta utiliza um gênero estabelecido, como o terror, ou uma maneira de filmar padrão, como um filme de estúdio, para fazer algo subversivo sem exatamente quebrar as regras.
Foi isso que Leigh Whannell fez com seu O homem invisível, contando com a produção da Blumhouse (que também produziu o filme Corra! que fala de racismo de uma maneira inovadora) e com o talento da atriz Elisabeth Moss (a protagonista da série The handmaid´s tale), que carrega o filme nas costas, mostrando toda a fragilidade de uma mulher traumatizada pela violência doméstica, mas também revelando força e determinação quando necessário.
Destaque também para a montagem precisa, a fotografia que provoca aflição com tomadas abertas e espaços vazios, a direção de arte frequentemente sugestionando a presença do homem invisível, o design de som que mexe com as tensões do espectador e a trilha sonora ora sutil, ora potente, empregada nos momentos certos. Há problemas? Claro, furos de roteiro, atuações medianas e, principalmente, o clímax convencional, em que o eficiente suspense dá lugar a um tipo de ação, de correria, já vista em outras produções.
O fascinante em O homem invisível é utilizarem os recursos do terror psicológico para criar uma alegoria tão contundente, tão incômoda. O homem invisível transforma a vida da mulher que ele “ama” num inferno, no que atualmente chamamos de gaslighting, que é uma maneira do abusador manipular a percepção da realidade da vítima ao ponto dela duvidar da própria sanidade, levando outras pessoas a fazer o mesmo.
O terror do filme é de dar nos nervos por ser tão real.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Foto de capa: Divulgação/ O Homem Invisível (2020)
Excelente texto. Não conheço a obra, mas pelo que escreveu parece uma excelente reflexão, que não é de hoje, mas seguimos ainda nela. Na anotei a recomendação.