Jill Lepore conta a história secreta da Mulher-Maravilha
O livro da historiadora americana mostra como a figura da heroína, criada pelo controverso William Marston, está diretamente ligada a história do feminismo nos Estados Unidos 29 de dezembro de 2019 Ricardo SantosO surgimento da Mulher-Maravilha nos quadrinhos é uma mistura de contexto social e vida pessoal. Seu criador, William Moulton Marston, era um entusiasta sincero do movimento feminista, nas primeiras décadas do século 20, nos Estados Unidos. Era também alguém polêmico e contraditório. A figura de sua heroína, corpo e mente, foi inspirada em três importantes mulheres de sua vida. O livro de Jill Lepore mostra que a Mulher-Maravilha é fruto direto da longa e difícil luta de uma era marcante do feminismo.
Marston nasceu em 1893. Atlético, carismático e multitalentoso, desde garoto, muita gente e, mais do que ninguém, o próprio Marston acreditavam que ele estava destinado a realizar grandes feitos. Aluno de destaque em Harvard, foi líder em várias atividades universitárias. Escritor prodígio de roteiros de cinema, venceu um importante concurso da época. O filme Jack Kennard, Coward foi produzido em 1915, mas teve uma exibição limitada. Anos depois, Marston se tornou consultor do estúdio Universal durante a transição do cinema mudo para o sonoro.
Em Harvard, estudou Direito e Psicologia. Sua ambição era se dedicar a uma vida acadêmica de prestígio, mas, ao se formar, as coisas não saíram como planejado. Marston exerceu várias profissões e tocou alguns negócios, fracassando na maioria dos seus projetos. Advogado, pesquisador, professor, romancista, escritor de livros teóricos, publicitário, dentre outras atividades. Também foi processado por credores e investigado pelo FBI por um caso de fraude.
Por onde Marston passava, ele gerava controvérsias por suas ideias nada convencionais sobre a natureza humana (ele não via a homossexualidade e a travestilidade como desvios) e a relação entre homens e mulheres (para ele, os homens teriam muito mais a ganhar num mundo dominado pelas mulheres). Seus estudos eram considerados pouco científicos. Ele se tornou persona non grata no mundo acadêmico.
Marston advogava a superioridade das mulheres. Ele acreditava que elas tinham uma moral mais elevada por serem mais atentas e honestas. Ele também afirmava que elas possuíam uma docilidade natural, uma tendência para o amor e a submissão, principalmente, no sexo, em práticas como o bondage, em que pessoas são amarradas e imobilizadas.
A visão que Marston tinha das mulheres estava relacionada com sua criação, cercada por várias tias. E também pelo interesse intelectual despertado pelo aguerrido feminismo, nos Estados Unidos e Europa, do início do século 20. Mulheres iam às ruas, levantavam cartazes, enfrentavam a polícia, proferiam discursos, acorrentavam-se em lugares públicos, faziam greve de fome contra as opressões do patriarcado.
Era um movimento fortemente influenciado pela mitologia grega, por mitos, como a Ilha de Lesbos, e poemas de Safo, nos quais as mulheres viviam com paz e progresso apenas entre elas. O que influenciou, na literatura, a criação de obras feministas importantes, como o romance Angel Island, de Inez Haynes Gillmore. O universitário Marston acompanhava toda essa revolução social de perto. Tão de perto que ele acabou se envolvendo amorosamente com duas mulheres à frente do seu tempo.
Os três acabaram formando uma família fora dos padrões. Uma casa com um marido, duas esposas e vários filhos. Um arranjo mantido em segredo a todo custo. Elizabeth Holloway, amiga de infância de Marston, trabalhou por muitos anos como editora de periódicos científicos e da Enciclopédia Britânica. Olive Byrne era uma estudante universitária quando conheceu o professor Marston. Ela abandonou os estudos para cuidar da casa. Holloway era conhecida por sua sabedoria e firmeza. Byrne por sua inteligência e vivacidade, além de sempre usar braceletes.
Byrne era sobrinha de Margaret Sanger, uma pioneira do controle da natalidade. Para Sanger, a mulher devia ter todos os direitos sobre seu corpo, tornando-se mãe quando desejasse, e não encarando a maternidade como uma prisão inevitável. Sanger era uma personalidade reconhecida internacionalmente, com trânsito entre políticos e a elite. Ela não gostava de Marston, por considerá-lo uma fraude e alguém prejudicial à sua sobrinha. Mesmo assim, Marston tomou Sanger como uma das referências para criar a personalidade da Mulher-Maravilha.
A primeira tentativa de Marston de marcar seu nome na história foi com a invenção do detector de mentiras. Na verdade, com o teste de detecção de mentiras, no qual se media a pressão sanguínea para avaliar alterações de humor. O teste nunca foi levado a sério por autoridades do judiciário e pela polícia, parte por preconceito pela novidade, parte pelas dúvidas de sua eficácia.
Em 1921, um concorrente, John Augustus Larson, teve mais sorte. Seu polígrafo utilizava um conjunto de fatores (pressão sanguínea, pulsação, respiração e condutividade da pele) para saber se alguém estava mentindo. Em pouco tempo, Marston viu o polígrafo de Larson ser adotado por vários departamentos de polícia pelos Estados Unidos, enquanto seu teste era desacreditado. Anos depois, ao criar a Mulher-Maravilha, ele usuraria o Laço da Verdade como uma metáfora ao seu teste. Marston nunca desistiu de promover a eficácia do teste, o que gerou grande repercussão na mídia, mas quase nenhum reconhecimento de fato e pouco retorno financeiro.
Em 1940, já na meia-idade, frustrado profissionalmente, havia anos com a família sendo sustentada pelos empregos mais estáveis de Elizabeth Holloway, Marston deu uma entrevista para a revista Family Circle. O título era Don’t Laugh at the Comics (Não riam dos quadrinhos). Marston enaltecia o potencial educador dos quadrinhos, um fenômeno recente na cultura de massa, que conquistou as crianças (e adultos) e se tornou a maior preocupação de professores e pais.
Para muitos, os quadrinhos eram violentos, estimulavam a delinquência juvenil e estavam repletos de mensagens subliminares pervertidas. Havia quem considerasse a figura do Superman uma ode ao fascismo. O publisher da All-American Publications (que depois se fundiria com outras editoras para formar a DC Comics) Max Gaines ficou tão impressionado com as palavras de Marston que o contratou como consultor.
Não demorou muito, Marston sugeriu a Gaines a criação de uma super-heroína. A partir de conversas em casa, Marston surgiu com a ideia de um contraponto aos heróis masculinos, um exemplo para as mulheres de todo o mundo. Alguém que pudesse vencer a guerra com o amor. Seria uma maneira de calar os críticos que achavam os quadrinhos violentos. Mesmo relutante, Gaines aprovou a ideia. Marston convidou Harry G. Peter, veterano ilustrador de revistas feministas, para dar vida a Suprema, The Wonder Woman (o editor da revista do Superman, Sheldon Mayer, achou melhor chamar a nova super-heroína apenas de Wonder Woman).
Depois de alguns testes, Marston ficou satisfeito com o visual da Mulher-Maravilha, inspirado no Capitão América, lançado um ano antes, e em protagonistas femininas de outros quadrinhos. A princesa amazona estreou em All Star Comics nº8, em 1941, e logo se tornou um enorme sucesso. Finalmente, Marston conseguiu a fama e o dinheiro que tanto tinha perseguido ao longo da vida.
A Mulher-Maravilha se tornou tão querida pelos fãs quanto Superman e Batman. Apesar do sucesso da heroína, Gaines estava preocupado. Provavelmente, a revista da Mulher-Maravilha foi a mais atacada na era de ouro dos quadrinhos. Autoridades e especialistas, em nome da moral e dos bons costumes, travaram uma guerra contra Marston e sua controversa criação. Para esses críticos, a Mulher-Maravilha era um símbolo contra o casamento (a heroína era independente e nunca aceitava os pedidos do galã Steve Trevor) e uma apologia ao lesbianismo e a perversões sexuais.
Gaines ficou realmente preocupado quando um homem, leitor entusiasmado da Mulher-Maravilha, enviou uma carta elogiando o trabalho de Marston. O leitor era adepto de fetichismos. Marston rebateu todas as críticas, com argumentos pertinentes ou não, e com ajuda de especialistas simpáticos aos quadrinhos. Gaines tentava contornar o problema. Afinal, não podia perder um sucesso de vendas como a Mulher-Maravilha. Sucesso resultante de uma mistura da figura determinada e altruísta da Mulher-Maravilha com sua imagem, ao mesmo tempo, doce e sensual, inspirada nas pin-ups.
Assim como outros super-heróis, a Mulher-Maravilha participou dos esforços da 2ª Guerra Mundial contra o Eixo, composto por Alemanha, Itália e Japão. Qualquer um que leia hoje os quadrinhos escritos por Marston vai notar como a Mulher-Maravilha era uma personagem à frente do seu tempo. Infelizmente, ao redor dela, não havia muito do que Marston se orgulhar. As histórias da Mulher-Maravilha promoviam um feminismo muito particular, no qual apenas a heroína era uma mulher independente, bela, forte e de bom coração. Nenhuma outra personagem feminina chegava aos seus pés, nem Etta Candy, a melhor amiga, gorda e devoradora de doces, muito menos as vilãs sensuais. Nem mesmo seu alter ego, Diana Prince, uma versão edulcorada da princesa amazona.
Para piorar, os roteiros de Marston traziam o mesmo racismo e xenofobia de outros quadrinhos da época. Pessoas negras eram retratadas como bonecos de piche, de fala caipira. Assim como mexicanos eram quase selvagens. Na grande maioria, os vilões eram estrangeiros, principalmente alemães, representando o nazismo, e chineses e japoneses, o perigo amarelo.
Apesar dos ataques e críticas, Marston ficou à frente de sua criação até a morte, em 1947. Depois disso, a princesa amazona deixou a controvérsia de lado. O editor Robert Kanigher, que não gostava da personagem, ficou responsável pela revista. A Mulher-Maravilha se tornou uma garota comportada. Nas décadas de 50 e 60, o conceito original de Marston foi bastante descaracterizado. O que só foi recuperado, de certa maneira, nos anos 1970, quando a Mulher-Maravilha estampou a primeira capa da revista feminista Ms., as histórias de Marston foram reeditadas e lançaram a série de TV com Linda Carter.
Nos quadrinhos, a volta triunfal da Mulher-Maravilha se deu pelas mãos do desenhista e roteirista George Perez, em meados dos anos 1980. Em 78 anos de existência, entre altos e baixos, o brilho da princesa amazona nunca realmente se apagou. Presente em várias mídias e no imaginário popular por décadas, a Mulher-Maravilha se tornou um dos símbolos mais relevantes da cultura pop.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Imagem de capa: Reprodução/BestSeller