Jornalismo brasileiro ignora e desconhece os evangélicos
A jornalista e pesquisadora Raquel Lemos faz análise sobre o quanto o jornalismo no Brasil ignora o movimento das igrejas evangélicas, com suas técnicas, narrativas, líderes e poder político 5 de fevereiro de 2025 Raquel LemosDepois da bagunça que Nikolas Ferreira causou com o vídeo publicado no dia 14 de janeiro de 2025, em que divulgava inúmeras informações imprecisas sobre as mudanças no monitoramento das transações via PIX, vi muitos jornalistas, ativistas e especialistas progressistas comentando sobre as possíveis consequências.
Eu, que não sou economista, não vou entrar no mérito do assunto. Mas não passou batido por mim comentários como: “os evangélicos vão dominar este país com mentiras”, e os inúmeros artigos e textos que não deixaram de fora a religião do deputado.
O que não surpreende, já que Nikolas é um deputado evangélico, que compõem a bancada evangélica no Congresso Nacional, e sobretudo, que se projetou na política, cooptando votos a partir do seu discurso e histórico religioso.
Este mesmo deputado transformou uma palestra – que afirma ter ministrado em diversas igrejas do país -, em um livro chamado “O Cristão e a política – Descubra como vencer a guerra cultural”. Ao longo das 160 páginas, ele discorre sobre o chamado de Deus para que os evangélicos se insiram na política, e foca em dar instruções sobre como combater o que ele chama de “armas de influência política”, tais como o ativismo LGBT, a ideologia de gênero, as universidades, o feminismo e a cultura.
Há dois anos, quando eu li pela primeira vez o livro que o bispo Edir Macedo (IURD) lançou em 2008 “Plano de poder: Deus, cristãos e a política”, eu me perguntei por que vi pouco ou quase nada sobre ele na mídia não religiosa – chamarei assim para dar conta do conjunto de veículos que não pertencem a uma instituição religiosa, ou tem o discurso religioso explícito em sua linha editorial.
O fenômeno dos evangélicos na política não nasceu em 2018, mas tem neste ano um marco que delimita um estágio importante da atuação e influência dos evangélicos na política brasileira.
Em contrapartida, numa busca rápida que se faz pelo Google, você não encontra muitos nomes de jornalistas especializados em cobertura religiosa no Brasil, especialmente de evangélicos (os católicos aparecem um pouco mais). É claro que essas pesquisas deixam de fora jornalistas, como eu, que pesquisam e acompanham o fenômeno dos evangélicos no Brasil e o uso/presença na mídia, mas que não estão projetados na mídia nacional. Ou ainda aqueles que estão nas redações das instituições religiosas, como a IURD e seu conglomerado midiático, ou a Igreja Adventista que investe em profissionais da comunicação com foco em assessoria de imprensa e produção audiovisual (além da Rede Novo Tempo de Comunicação).
A verdade é que a mídia não religiosa por muito tempo não se importou em dar conta do fenômeno evangélico no Brasil. E creio que hoje o fazem mais pela quantidade de pautas que os evangélicos acionam na política nacional. É uma questão ambivalente, já que boa parte dos conglomerados midiáticos estão nas mãos de religiosos, e o discurso religioso, via políticos ou lideranças, também pauta a agenda midiática. Mas, ao mesmo tempo, ainda é pautada de forma equivocada na mídia não religiosa.
Fiéis em momento religioso. Foto: Instituto Humanitas Unisinos
O jornalismo tem raízes religiosas, mas a cobertura de religião na mídia não é plural:
O professor e diretor do Centro de Religião Contemporânea da Universidade de Aarhus, Henrik Reintoft Christensen, ao tratar de religião e jornalismo sob a secularização, menciona que o desenvolvimento do jornalismo e do ethos jornalístico possui raízes religiosas. Mas, com o tempo, a energia religiosa necessária para a prática do jornalismo se tornou menos relevante, permitindo que o jornalismo operasse de forma mais autônoma, impulsionado pelo espírito capitalista e pela busca de lucro.
Christensen argumenta que, embora o jornalismo tenha se afastado de suas raízes religiosas, especialmente com a secularização e a ênfase no individualismo, ele também está passando por um processo de reaproximação com a religião. Isso é evidenciado por movimentos que buscam um “jornalismo consciente”, inspirado em tradições religiosas como o budismo, que visa recuperar a autoridade e a relevância social do jornalismo.
O que me chama mais atenção no seu texto é o paralelo que se faz com o modus operandi da mídia e da religião. “O jornalismo, em algum momento, se apropriou do papel da igreja como a voz moral da sociedade”, diz. Mas na sociedade da mídia digital, essa dinâmica muda: a religião tem reivindicado a autoridade. Ou, nas palavras do professor: “A religião também tem sido usada para reivindicar a autoridade jornalística”, e falar sobre jornalismo religioso requer alguns caracteres a mais.
É claro que a secularização da mídia, como descreve o professor Henrik, não contempla o continente Latino Americano como o faz com a Europa. Afinal, como menciona bem o pesquisador Kelber Pereira Gonçalves – ao discorrer sobre gênero, religião e novas mídias no continente – o ethos religioso nunca deixou a América Latina. No entanto, a presença da mídia e do conteúdo religioso no Brasil não é sinônimo de pluralismo religioso na mídia.
Chegamos ao segundo ponto. A jornalista, doutora e pesquisadora de mídia e religião, Magali Cunha, em 2014, ao analisar a cobertura religiosa feita pela Folha de S. Paulo e pelo Jornal Nacional, constatou que apenas 1,5% de tudo noticiado em um ano pelos veículos era sobre religião. Constatou ainda uma incidência de 77,3% de temas sobre o catolicismo (representado de forma positiva em todas as matérias), 17,5% sobre protestantes (cobertura majoritariamente negativa), e apenas 1,4% sobre religiões afro-brasileiras e espiritismo.
Esses parênteses que abri são para evidenciar uma coisa: o jornalismo brasileiro não sabe cobrir evangélicos. Em 2025, no auge da influência protestante no Brasil, a imprensa ainda não sabe diferenciar neopentecostais de reformados, ainda olha para os evangélicos como massa acéfala incapaz de tomar decisões conscientes.
Semanas atrás, quando eu participava de uma conversa que durou 1h30 sobre tendências do jornalismo, em uma das associações da qual faço parte, representantes de organizações de todo o Brasil discutiram Inteligência Artificial, saúde mental, modelo de negócio, jornalismo de território e muito mais. Mas na hora de discutir a cobertura dos evangélicos, a conversa não durou mais de 10 segundos, exatamente o tempo que a mediadora demorou para ler o texto que estava no slide.
Eu fiquei me perguntando: como alcançar os evangélicos se nós, enquanto imprensa, não estamos nem dispostos a incluí-los nas nossas conversas que visam pensar e repensar nossas práticas jornalísticas e ecossistema?
A imprensa “profissional” “tradicional” ou “não religiosa”, seja lá como queiram se autodenominar, tem muitos desafios em cobrir os evangélicos. Tanto os acadêmicos como os jornalistas de redação encaram a comunicação feita pelas instituições religiosas apenas como comunicação institucional. Quando, na verdade, eles estão cada vez mais se apoderando da retórica jornalística e seu pressuposto de verdade, para serem fontes de informação para uma grande parte da população.
A pesquisa “Narrativas verdes – conversando com mulheres de fé” desenvolvida pelo Instituto Lamparina e Casa Galileia, apresenta dados que deixam esse cenário mais evidente. Com objetivo de entender o que mulheres pentecostais pensam sobre o aborto, o relatório aponta que a comunicação ativista hoje é extremamente distante dessas mulheres. Essas mesmas mulheres que consomem conteúdo, principalmente de produtos culturais produzidos por emissoras/produtoras evangélicas.
Do outro lado, a imprensa não religiosa, quando se propõe a realizar algum tipo de cobertura sobre evangélicos, geralmente vem acompanhada de diversos estigmas e homogeneização de um segmento extremamente plural (neopentecostais, pentecostais, batistas, presbiterianos, luteranos, etc).
Enquanto jornalista e pesquisadora, incomoda-me o fato da maioria dos jornalistas, pesquisadores e produtores de conteúdo especialistas em evangélicos no Brasil, sermos nós próprios, filhos da igreja evangélica. Não me entenda mal, ninguém é obrigado, mas eu preciso ter a mínima noção de economia, questões climáticas, direitos humanos ou política, para ser uma jornalista competente em um 2025 em que essas agendas estão cada vez mais latentes. Os evangélicos estão fazendo do Brasil a cantina do lanche no pós-culto, e a imprensa ainda os encara como mais um segmento.
No dia 20 de janeiro de 2025, na posse do segundo mandato de Donald Trump, Cindy Jacobs, conhecida mundialmente pelos movimentos de oração e profecia, colocou a mão sobre os ombros de Pablo Marçal – em Washington para acompanhar a posse – e disse: “Deus está dizendo que vai te usar para restaurar a economia do Brasil”. Enquanto Marçal recebia uma previsão do propósito que ‘deus’ lhe reservou, o deputado Nikolas Ferreira recebia a profecia de que será presidente do Brasil.
Print de vídeo onde Nikolas Ferreira recebe profecia em que diz que ele será presidente do Brasil. Foto: Reprodução/Internet
Anderson França não errou ao dizer que nunca foi feito um investimento estratégico da esquerda nos núcleos evangélicos progressistas. Pelo contrário, estão irritados demais enquanto Caetano canta “Deus cuida de mim” no show da sua turnê.
Raquel Lemos é formada em Comunicação Social – Jornalismo (Uesb), mestranda em Comunicação e Territorialidades (Ufes). Atua como jornalista independente e é cofundadora do Site Coreto e pesquisa sobre gênero, religião e mídias.