Livro “Torto Arado” mostra que a escravidão no Brasil não acabou
A obra do escritor baiano, Itamar Vieira Junior, conta a história de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, mulheres negras da zona rural, ao longo do século 20 5 de janeiro de 2020 Ricardo SantosItamar Vieira Junior é o mais importante autor baiano da atualidade. Vencedor da última edição do Prêmio Leya, seu romance Torto Arado teve extensa cobertura da mídia portuguesa. Lançado no Brasil pela editora Todavia, a carreira de sucesso do livro continua. Com certeza, em 2020, será um forte concorrente aos principais prêmios literários do país.
Seguindo a tradição de grandes autores baianos, Itamar alia inquietação política e filosófica com apuro literário. Em Torto Arado, o foco é a gente sofrida, os desassistidos, as minorias, os invisíveis sociais, mas o autor descarta naturalismos fáceis.
Numa prosa fluida e ritmada, cheia de uma poesia dura e contundente, acompanhamos a história de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, mulheres negras, da zona rural, ao longo do século 20.
A fazenda Água Negra, na Chapada Diamantina, é uma espécie de Macondo às avessas. A fazenda é um lugar de desencanto pelo histórico de explorações e humilhações de trabalhadores negros, mesmo com o fim da escravidão. Contudo, assim como a vida, Água Negra não significa apenas sofrimento, também é palco de poucas alegrias e resistência cultural, por meio de festas, práticas e ritos de matrizes africanas.
O triunfo literário do romance é a construção da visão de mundo das protagonistas. Ambas são pessoas de carne e osso, conscientes de suas limitações e possibilidades. Essa atmosfera lembra muito o cinema e a literatura italiana dos anos 1960 e 1970, que representava a tomada de consciência política do proletariado.
Torto Arado é dividido em três partes. Na primeira, acompanhamos a narrativa pelo ponto de vista de Bibiana, a irmã mais inquieta, a que não se conforma com as injustiças de Água Negra e que sonha com uma vida além dos limites da fazenda. Na segunda parte, é Belonísia quem assume a narração, a irmã mais ligada à terra e aos costumes do lugar, mas nem por isso mais conformada com a violência física e simbólica dos patrões e dos homens. Finalmente, na terceira parte, acompanhamos o desfecho do romance pela voz de uma entidade, Santa Rita Pescadeira.
Em termos formais, de elaboração literária, o leitor não encontrará em Torto Arado uma imitação de fala da roça, numa perspectiva naturalista. Geralmente, a prosa é poética e o português é corretíssimo, o que pode causar um estranhamento. É gente simples falando com um amplo repertório, mas, sem dúvida, esse contraste é uma decisão política do autor. Uma maneira de afirmar que a trajetória daquelas pessoas vai além de suas palavras. Há a tradição de um povo e a vida interior de cada personagem que superam o contato superficial de quem olha de fora.
A ressalva ao romance fica para a condução do discurso de Santa Rita Pescadeira. Justamente ela por ser uma entidade sem corpo era quem deveria ter uma linguagem mais livre e desafiadora, conhecedora da natureza e da história maior. Mas, infelizmente, algumas passagens perdem o caráter ficcional e ganham ares de panfleto sobre vários temas levantados ao longo do livro. O que obriga o leitor a sair e a retornar àquele universo repetidamente, quando voltamos a acompanhar os momentos finais dos personagens.
Em Torto Arado, vemos uma perspectiva de dentro, o protagonismo do povo negro rural. Fruto de primorosa pesquisa, e mais do que isso, fruto da sensibilidade do autor, que faz um resgate de parte das origens do Brasil, ligando passado e presente.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Imagem de capa: Reprodução/Editora Todavia