Descobertas e equívocos no combate à covid-19 no Brasil
O biólogo e doutor em Genética e Biologia Molecular analisa a situação do gerenciamento da pandemia a partir da perspectiva científica 7 de abril de 2021 Carlos BernardAo ultrapassarmos 15 meses desde os primeiros registros relativos à ocorrência de uma nova síndrome respiratória em Wuhan na China e, pouco mais de um ano, desde o início da transmissão comunitária do novo coranavírus (SARS-CoV-2) em território brasileiro, acumulamos mundialmente avanços científicos em inúmeras áreas do conhecimento.
Para além da tristeza decorrente das mortes e sequelas (físicas e emocionais) decorrentes da disseminação da covid-19, a comunidade mundial dispõem atualmente de maior clareza sobre a dinâmica da transmissão e evolução do vírus, assim como sobre as estratégias necessárias para medidas de: emergência – necessárias para contenção do agravamento ou reversão de colapsos no sistema de saúde; combate – necessárias para garantir no curto e médio prazo a sustentabilidade do sistema de saúde; mitigação – necessárias para possibilitar, tanto quanto possível, um convívio com o mínimo de estresse ao sistema de saúde e, consequente menor taxa de letalidade.
Em todo o mundo, o ano de 2020 foi marcado tanto pelas dificuldades/apreensão decorrentes do convívio com a covid-19, quanto pela esperança do desenvolvimento ou identificação de fármacos e vacinas, em tempo recorde, que fossem capazes de, ao menos, impedir o agravamento da doença e a necessidade de internações em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs). Nessa batalha, a ciência destacou-se, cumprindo fielmente seu papel acadêmico e social, nas mais diversas áreas de atuação.
Resumidamente, o número de fármacos avaliados, testados, como potencialmente uteis na terapêutica da covid-19 chega à casa das centenas, assim como também ultrapassa o número de 200 a quantidade de potenciais imunizantes nas diversas fases de teste (desde testes in vitro, até o acompanhamento das vacinas em uso durante a fase IV das avaliações clínicas). O volume de discussões e trabalhos realizados para a covid-19 já possibilitaram, a título de exemplo, um número aproximado de 250 mil publicações científicas, considerando apenas os registros disponíveis para periódicos revisados por pares e depositados na base de dados de acesso público do Portal de Periódicos da Capes.
Uma visão aproximada da distribuição e dinâmica da covid-19 até aqui, em âmbito mundial, mas sem a intenção de apresentar dados exatos, visto a imprecisão de tais dados em nível mundial, ou mesmo local, considerando a base de dados do portal Worldometer demonstra uma desuniformidade existente na dinâmica e evolução da doença nos diferentes países e regiões. Até o momento da escrita deste artigo, aproximadamente 133 milhões de pessoas haviam sido diagnosticadas com covid-19 e 2,9 milhões de mortes haviam sido contabilizadas, sendo o registro de casos ativos da ordem de 22,9 milhões.
Questões relacionadas aos elevados percentuais de ocorrência, óbitos e casos ativos nas Américas, sobretudo frente aos percentuais da Ásia, chamam a atenção. Também precisa ser considerado o elevado percentual de mortes nas Américas em relação aos demais continentes. Sozinha, essa visão geral e quantitativa da distribuição da covid-19 já suscita hipóteses sobre os diferentes fatores que naturalmente repercutem da disseminação e, sobretudo, nas consequências da doença em diferentes regiões.
Outro recorte que precisa fomentar discussões é sobre o número de casos e óbitos registrados nos países mais populosos do mundo. Uma tendência, por vezes mencionada com intuito de reduzir a gravidade da pandemia em países como o Brasil, é apresentar o tamanho da população como parâmetro para relativizar o problema existente. Entretanto, essa linha de pensamento não encontra correlação com a realidade posta para os dados da pandemia. Entre os 10 países com maior população, Estados Unidos, Brasil, Rússia e México, com respectivamente 4,2%, 2,7%, 1,9 e 1,6% da população mundial, possuem aproximadamente 39% do total de casos diagnosticados e 42% das mortes decorrentes da covid-19. O Brasil representa 5,8% dos casos ativos e 12% das mortes, com média móvel de registro de óbitos (entre 29.03.21 a 04.04.21) correspondendo a 39% das mortes registradas pela doença, considerando os dados do Worldometer.
Tamanha discrepância na busca por correlações puramente descritivas para os dados da covid-19, corroboram a impossibilidade do uso do jargão que anunciava “estarmos todos no mesmo barco” diante desta crise humanitária de saúde pública. Nesta mesma linha de raciocínio, para além dos aspectos biológicos associados ao patógeno (novo coronavírus, SARS-CoV-2), ganham destaque os aspectos sociais, o próprio termo pandemia já foi posto em xeque pelo editor-chefe da revista científica britânica The Lancet, Richard Horton, em setembro de 2020. Em sua argumentação, ele que considera as consequências da covid-19 uma sindemia, um neologismo que combinaria os termos sinergia e pandemia, e coloca em destaque, para além da dinâmica de transmissão do vírus, as doenças crônicas pré-existentes, como hipertensão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, respiratórias e câncer, e as distintas condições sociais, étnicas e econômicas existentes nos diferentes países.
Diante da perspectiva, de que naturalmente a covid-19 precisa ser combatida/controlada de forma organizada, com uma articulação que leve em consideração também os aspectos sociais, fica evidente as fragilidades do combate desta pandemia/sindemia no Brasil. Questões básicas, inclusive já pontuadas da última vez que colaboramos com o Avoador, permanecem infelizmente imperando na gestão da crise brasileira. Continuam: a falta de articulação efetiva entre os diferentes níveis de gestão pública (federal, estadual e municipal); a politização de questões técnicas, relativas a projeções, medicamentos e vacinas; o uso das redes de comunicação para disseminação de notícias falsas, fake News; e ainda a valorização exagerada das opiniões individuais, mesmo que de especialistas, em detrimento das constatações e recomendações técnicas/científicas de consolidadas instituições/associações.
Segue, assim, a falsa possibilidade de polarizar conhecimento científico com discursos negacionistas, em sua maioria, irresponsáveis e até criminosos. O próprio poder público, a partir de alguns gestores/políticos, cuja riqueza de registros públicos torna desnecessário nominar/exemplificar, são claramente responsáveis por estimular participações em eventos sociais, com consequente aglomerações, desestimular o uso de máscaras e, ainda, demonstra uma triste falta de empenho na aquisição/distribuição de vacinas com a devida antecedência/constância.
Para finalizar, resgato um comentário rotineiro que faço aos meus alunos: de que o óbvio precisa sempre ser dito. É imperativo reforçar que, ao desconsiderar nas discussões a realidade dos fatos, bem como as contribuições científicas, potencializamos as chances de equívocos que levam a mais vidas perdidas, que não são necessariamente provocadas pela covid-19, mas pela negligência.
Foto ilustrativa: Amazônia Real
*Professor do curso de Ciências Biológicas Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Itapetinga.