“Olhos que Condenam”e o mito do negro estuprador nos EUA
Na história dos EUA, a acusação fraudulenta de estupro é um dos mecanismos impiedosos criados pelo racismo. O mito do homem negro estuprador era invocado para justificar ondas de terror e violência contra a comunidade negra 26 de junho de 2019 Henrique OliveiraA minisérie “Olhos que condenam” (When They See Us), dirigida por Ava Duvernay, a mesma diretora do filme “Selma: uma luta pela igualdade” e do documentário “13ª Emenda”, se tornou, segundo a própria Netflix, a minissérie mais assistida da plataforma nos EUA desde a sua estreia no dia 31 de maio.
A minissérie reconstrói a história que ficou conhecida como “Central Park Five”, quando 5 jovens negros, sendo um deles de origem latina, foram presos e condenados por agredir e estuprar uma mulher branca no Central Park, em Nova York, no ano de 1989. A série, dividida em 4 episódios, conta como, sem prova alguma, a polícia e a promotoria de Nova York fizeram Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymon Santana, Antron McCray e Korey Wise acusarem uns aos outros e confessarem o crime após 30 horas de tortura psicológica e física, sem a presença dos pais e advogados, mesmo com a única prova material que era o DNA os inocentando.
Na época, o atual presidente dos EUA, Donald Trump, era um magnata do mercado imobiliário e, apenas duas semanas após o fato, Trump pagou 85 mil dólares para publicar nos principais jornais da cidade, incluindo o New York Times, que os 5 jovens deveriam ser condenados a pena de morte: “Eu quero odiar esses assaltantes e assassinos. Eles devem ser forçados a sofrer e, quando matam, devem ser executados por seus crimes. Eles devem servir como exemplos para que os outros pensem muito antes de cometer um crime ou um ato de violência ”.
Em uma entrevista recente, Yusef Salaam disse que Donald Trump foi responsável por atiçar a ira pública contra eles, o número do telefone e os endereços de todos os 5 jovens foram publicados nos jornais, criando um clima de terror coletivo. No último dia 18, durante uma coletiva de imprensa, quando perguntado sobre o caso trazido de volta pela minissérie, Donald Trump duvidou da inocência dos 5 ex condenados e falou que não pediria desculpas pelos artigos na imprensa pedindo pena de morte.
Apesar da Netflix não divulgar os números da sua audiência, é bastante crível que a minissérie teve um grande alcance pois gerou repercussão política real. Uma das promotoras do caso, Elizabeth Lederer, foi acusada de racismo pelos alunos da Associação dos Estudantes Negros de Direito, na Universidade de Columbia, e acabou renunciando ao seu cargo no dia 12. A promotora Linda Fairstein abandonou um cargo que ocupava na ONG Safe Horizon, que ajuda vítimas de abusos e crimes violentos em Nova York. Segundo o site TMZ, os funcionários ficaram indignados com o fato da promotora ter permanecido no conselho de uma organização para minorias por todo esse tempo. Em sua defesa, Linda Fairstein escreveu um artigo no The Wall Street Journal dizendo que a minissérie contava uma “história falsa”, que mesmo concordando com a inocência da acusação de estupro, ela ainda duvidava da inocência dos 5 homens em outros delitos e no próprio ataque a Trisha Meili.
Em 2002, o verdadeiro estuprador, Matías Reyes, confessou o crime que foi comprovado por meio do exame de DNA e os 5 foram inocentados. Em 2014, o estado de Nova York pagou uma indenização de 41 milhões de dólares (cerca de 160 milhões de reais), mas existem coisas que o dinheiro não paga e não recompensa. Os condenados tinham na época entre 14 e 16 anos de idade, entraram na cadeia adolescentes e saíram de lá homens, alguns deles, como mostra o seriado, sofreram violência física e psicológica dentro do sistema prisional.
Em entrevista a apresentadora Oprah Winfrey, eles disseram que a minissérie trouxe alívio e dor também. É o caso de Antron McCray, que falou como a condenação destruiu a sua relação com o pai. Para quem já assistiu, o pai de Antron fez com que seu filho confessasse o crime, acreditando que a polícia o liberaria. Quando perguntado se havia perdoado o pai, Antron respondeu: “Eu o odeio. Minha vida está arruinada”.
O mito do homem negro estuprador nos EUA
O caso do Central Park faz parte de um processo histórico nos EUA que envolve o racismo e o sexismo numa construção racista sobre o que seria a masculinidade negra. Angela Davis, no livro “Mulheres, raça e classe”, dedica um dos capítulos a questão do racismo e o mito do homem negro estuprador.
Segundo Angela Davis, nos EUA, as leis contra o estupro foram elaboradas para proteger homens das classes mais altas cujas filhas e esposas corriam riscos de serem agredidas. O que acontecia com uma mulher da classe trabalhadora em geral tinha uma preocupação menor por parte dos tribunais e eram poucos os homens brancos processados por violência sexual. A acusação de estupro tem sido usada de forma indiscriminada e dirigida aos homens negros, sejam eles culpados ou inocentes. Entre 1930 e 1967, dos 455 homens condenados por estupro que foram executados, 405 eram negros.
Na história dos EUA, a acusação fraudulenta de estupro é um dos mecanismos impiedosos criados pelo racismo. O mito do homem negro estuprador era invocado para justificar ondas de terror e violência contra a comunidade negra. A imagem fictícia do homem negro estuprador servia ao mesmo tempo para fortalecer a imagem da mulher negra promíscua, uma vez que a noção que os homens negros trazem consigo a compulsões sexuais incontroláveis e animalescas, toda a raça é investida de bestialidade. Se os homens negros voltam os olhos para as mulheres brancas como objeto sexual, então as mulheres negras deveriam aceitar o assédio sexual dos homens brancos.
Durante a escravidão, o açoitamento e o estupro eram os principais métodos para manter tanto os homens e as mulheres negras escravizados sob controle. Enquanto houve escravidão nos EUA, não existia no imaginário branco racista a figura do homem negro estuprador, com o fim da escravidão esse mito veio a tona, e mesmo sendo descrito como mito, não podemos tratá-lo dentro de uma leitura estritamente irracional, mas sim como uma invenção política.
Os linchamentos até então eram promovidos para fins “preventivos”, pois pairava entre a população branca do Sul dos EUA teorias conspiratórias sobre uma suposta supremacia negra e confabulações de rebeliões e revoltas. Com o passar do tempo, no pós abolição, os linchamentos ganharam uma nova forma, agora, linchar negros até a morte era um mecanismo para proteger as mulheres brancas. Embora a maioria dos linchamentos não envolvessem acusações de estupros, a queixa racista de estupro se tornou uma explicação comum e eficaz.
Daniel dos Santos, no livro “Como fabricar um gangsta”, aborda como a produção imagética de homens negros hiperssexuais, potentes e com pênis grande geravam um sentimento aterrorizante e ameaçador, que funcionava como dispositivo para impedir a miscigenação e a suposta degeneração racial temida pela população branca. A proibição de casamentos inter raciais foram uma das primeiras medidas também aprovadas na instauração do regime apartheid na África do Sul, por exemplo. Porém, Daniel nos diz que a supermasculinidade utilizada para animalizar os homens negros era instrumento de inveja e fascínio do homem branco. A violência contra homens negros servia também como válvula de escape do sentimento de inferioridade sexual que os homens brancos não aceitavam que poderia existir.
Ainda segundo Angela Davis, em um estudo publicado pela Comissão Sulista para os Estudos sobre Linchamentos, em 1931, relevou-se que, entre 1889 e 1929, apenas um sexto das vítimas de linchamento haviam sido realmente acusadas de estupro, 37% foram acusadas de assassinatos, 16% por estupro e 6,7% por tentativa de estupro. O papel do linchamento também era impedir a igualdade racial. Qualquer pessoa negra que desafiasse a hierarquia racial estabelecida era vista como potencial alvo das gangues de linchadores.
Um dos casos mais famosos de linchamento de pessoas negras nos EUA, por causa de uma acusação falsa de assédio a uma mulher branca é o de Emmett Till, que foi sequestrado e linchado em 1955, no Mississippi. Emmett Till, 14 anos, morava num bairro da classe trabalhadora em Chicago, viajou para o Mississippi, estado com segregação racial baseada na lei, para visitar familiares. No dia 24 de agosto, Till estava do lado de fora de uma loja com seus primos e amigos, ao dizer que tinha uma noiva branca onde morava, Till foi desafiado a falar com Carolyn Donham, uma balconista branca. Ao ver a mulher sair da loja, Emmett Till deu uma assobiada para ela.
Ao saber do fato, Roy Bryant, o marido da balconista juntamente com seu irmão J.W. Milam, depois de quatro dias, sequestraram Emmett Till, bateram tanto nele que o olho pulou para fora do rosto, depois deram um tiro na sua cabeça e jogaram o corpo no rio. Roy e o irmão foram levados a julgamento, mas foram absolvidos do crime de homicídio por um corpo de jurados formados por brancos. No ano passado, após 63 anos, o caso Emmett Tiil foi reaberto, devido ao surgimento de uma nova informação, que pode está relacionada com a falsa acusação de assédio descrita por Carolyn Donham no tribunal.
Se quiserem assistir um filme, que também trabalha com o mito do homem negro estuprador, indico que assistam Marshall: Igualdade e Justiça, em que Chadwick Boseman (pantera negra), interpreta Thurgood Marshall, o primeiro homem negro a se tornar juiz na Corte Suprema Americana, mas que antes atuou como advogado para defender Josepho Spell, na acusação de ter atacado uma socialite branca em seu quarto.
Na visão de Angela Davis, o estupro é um dos sintomas mais evidentes de desintegração social. A estratégia do movimento contra o estupro deve ser também a luta contra o racismo. Em sua análise, a violência sexual é uma das facetas de uma profunda crise do capitalismo. Como lado violento do sexismo, a ameaça do estupro persistirá enquanto a opressão generalizada contra as mulheres continuar a ser uma muleta essencial para o capitalismo.
* Henrique Oliveira é historiador
Foto de capa: Divulgação/Netflix