Qual a saída contra o bolsonarismo?
"O Ódio como Política" e "A Desobediência Civil" são dois livros que fazem refletir sobre o cenário político brasileiro 5 de outubro de 2019 Ricardo SantosPara descobrir formas de lutar contra o governo Bolsonaro, é preciso entender quem o colocou no poder. A resposta é complexa e foge a achismos fáceis. Nem todo apoiador de Bolsonaro é um bolsominion de carteirinha, gerador de fake news e divulgador do discurso de ódio. Mas, claro, a conta da tragédia política que vivemos atualmente vai para cada um dos seus eleitores. Estes foram enganados por promessas genéricas de recuperação da economia. Porém, do ponto de vista moral, Bolsonaro não enganou ninguém. Também não podemos esquecer que os patrocinadores de sua campanha continuam puxando as cordinhas de titereiros.
Dois livros se conectam nessa reflexão sobre o Brasil de hoje. O Ódio Como Política faz um diagnóstico das razões de tantos brasileiros elegerem para presidente um candidato tão despreparado e antidemocrático. A Desobediência Civil analisa como é totalmente legítimo não cumprir as leis de um Estado que governa contra os direitos de sua própria população.
Nesses tempos de ameaça à democracia (e mesmo que o sempre afiado Vladimir Safatle diga que vivemos, na verdade, numa república oligárquica), O Ódio como Política é um livro que convida para uma reflexão urgente. Composto de ensaios curtos, introdutórios para obras de maior fôlego, o livro organizado pela pesquisadora Esther Solano serve muito bem como um alerta sobre quem comanda de fato o destino do país.
A esquerda errou, o PT errou, mas o que os neoliberais e protofascistas sempre pretenderam foi criar uma manada de consumidores ávidos e eleitores confusos. Em nome da ordem e do progresso investem numa visão de mundo excludente e rasa, na qual o livre pensamento tem limite e os preconceitos são combustível para a prática de barbaridades institucionais, psicológicas e físicas.
O Ódio como Política não trata os conservadores de maneira simplista. A simplificação apenas joga uma cortina de fumaça que retarda uma melhor compreensão de quem são os apoiadores de Bolsonaro. Há os extremistas que estão fechados com seu líder, dispostos a derramar sangue nas ruas e na internet por uma ideologia nefasta. Há os oportunistas, que buscam ganhar dinheiro, cargos políticos e eleitores. Mas há também muita gente frustrada com os rumos da política tradicional, que perdeu o emprego, o poder de compra, o status social, inclusive ex-petistas, convertidos ao bolsonarismo. O eleitor protofascista de Bolsonaro é coerente em seu discurso de ódio. O eleitor médio dele, não, tornando-se uma contradição ambulante. Há gays, negros e mulheres que o apoiam. Porém, há evangélicos que o desprezam.
Bolsonaro é um avatar de forças econômicas maiores. Institutos neoliberais com um verniz democrático, de livre mercado, como Mises e Ethos, promovem sistematicamente uma doutrina falaciosa, enaltecendo a meritocracia e o esforço individual, contrários à organização coletiva da sociedade. Ao mesmo tempo, políticas governamentais de austeridade fragilizam os serviços públicos, levando a população, acuada, a recorrer às alternativas oferecidas pela iniciativa privada. As estruturas judiciárias mantêm, desde a escravidão, seu ranço histórico de “naturalização da desigualdade e da hierarquização das pessoas”, produzindo decisões midiáticas e populistas, geralmente, contra o direito do cidadão “comum”.
O problema não é só Bolsonaro. Ele é um sintoma de nossas injustiças e mazelas jogadas para debaixo do tapete por décadas e que agora veio cobrar o preço pelo o que não fizemos antes, não corrigimos, sob a forma de uma “ditadura voluntária”.
Devemos nos indignar contra qualquer tipo de opressão. Por isso, vale conhecer o pensamento do norte-americano Henry David Thoreau. Na segunda metade do século 19, ele advogava o espírito livre do homem e a valorização da natureza, da vida selvagem. Era um idealista com os pés no chão. Sabia como o mundo funcionava. E, por isso, queria transformá-lo para melhor. Em vida, o reconhecimento de sua obra foi restrito. Mas, a partir do século 20, sua influência foi enorme na política, literatura e filosofia, na voz dos descontentes.
A edição lançada pela Companhia das Letras contém alguns de seus escritos políticos e filosóficos mais relevantes. Mas o destaque vai mesmo para o ensaio A Desobediência Civil, publicado pela primeira vez em 1849.
Os EUA da época de Thoreau eram um país que utilizava o trabalho escravo e a conquista de territórios em nome do progresso. Thoreau era totalmente contra a escravidão e o pagamento de impostos para financiar um estado bélico que se apropriava de porções do México e massacrava povos indígenas.
Para ele, a desobediência civil é legítima quando o governo não representa mais as prioridades de uma sociedade justa. Um governo só é eficiente quando valoriza a vida, portanto, é dever de cada um fazer algo concreto para tornar as autoridades cientes disso. Ou seja, não corroborar com as normas sociais que fortalecem o Estado e rebaixam o ser humano. Quando uma lei é injusta ou imoral, ela deve ser desacatada. Throreau exaltava o protagonismo do povo perante o Estado: “Penso que devemos ser primeiro homens, e só depois súditos. Não é desejável cultivar tanto respeito pela lei quanto pelo o que é direito”.
Estes dois livros mostram que, quando há desespero e inação, o destino de um país corre o sério risco de ficar nas mãos de quem menos valoriza seu povo.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Foto destacada: Lucas Martins/Jornalistas Livres