Realidade e sonho em quadrinhos
Por meio de ilustrações e bons roteiros, as HQs Solanin, Nijigahara Holograph e Cortabundas tratam de temas do cotidiano e mostram a potência dessa expressão artística 20 de outubro de 2019 Ricardo SantosO leitor brasileiro de quadrinhos não tem do que reclamar. Há tantos títulos disponíveis que até fica difícil (e oneroso) acompanhar tudo. Mesmo assim, com ofertas em lojas virtuais, livrarias e sebos, lançamentos em bancas, webcomics (HQs feitas para a internet), e-comics (HQs tradicionais no formato digital), financiamentos coletivos e zines é possível ler muita coisa da produção nacional e estrangeira.
Virei fanboy do mangaká Inio Asano ao ler Solanin, publicado em dois volumes no Brasil, em edições de bolso muito bem cuidadas. Solanin é uma slice of life, gênero de mangá que trata do cotidiano. Não tem nada de sobrenatural ou heroico. É a vida que segue. E Asano mostra jovens cheios de sonhos, mas paralisados por uma existência sem sentido. As exigências da vida adulta aprofundam essa crise. É triste pra caramba. E também muito sincero. Os personagens não são melancólicos para fazer pose, ser cool. Há uma angústia os devorando por dentro. Esse embate entre a vontade de realizar algo e o sentimento de vazio é o tema central em Solanin.
Em Nijigahara Holograph, temos uma luta mais feroz, entre manter ou perder a sanidade. Aqui Asano leva o leitor a uma jornada, ao mesmo tempo, bela e desumana, num tom muito mais sombrio. É como se David Lynch tivesse resolvido fazer um mangá. Pega-se o cotidiano, banal e repetitivo, e o viram pela avesso, expondo os demônios que carregamos dentro de nós. Há uma alternância entre imagens e sentimentos harmoniosos com cenas de pura violência e degradação. Parece que a todo momento Asano faz sempre a mesma pergunta: como pode haver tanta beleza e brutalidade no mundo? Os personagens de Nijigahara Holograph ora são vítimas, ora algozes. Às vezes, ambas as coisas. Os jovens angustiados estão lá. Mas agora tudo é bem mais sinistro.
Asano é um artista completo. Roteirista de mão cheia e ilustrador genial. Ele sabe a importância do silêncio na página como poucos. Seus personagens não falam muito. O resto é dito por imagens poderosas, seja pela delicadeza ou pela crueldade. Suas tramas são mínimas. O desenvolvimento de personagens é o grande charme do trabalho de Asano. Em Nijigahara Holograph, ele viaja, delira, numa mistura de conto de fadas e história de terror. Como se apenas fosse possível falar dos horrores, bastante humanos, praticados ao longo da narrativa, fragmentada e não-linear, por meio de metáforas. Por isso, as imagens nunca dizem uma única coisa, nunca têm um só sentido, nunca chegam a uma conclusão de fato. Cabe ao leitor interpretá-las, preencher suas próprias lacunas.
Já Cortabundas – O Maníaco do José Walter é um livro-reportagem em quadrinhos sobre uma lenda urbana cearense da década de 1980. Na época, os moradores do bairro popular Prefeito José Walter, em Fortaleza, ficaram aterrorizados com os ataques do Cortabundas, um maníaco que invadia casas para ferir com objetos cortantes meninas e mulheres.
O roteirista e ilustrador Talles Rodrigues, nascido e criado no bairro, resolveu investigar o caso, já esquecido por muitos. À maneira do quadrinista maltês Joe Sacco, Talles se coloca como personagem-condutor da história. Ao mesmo tempo em que conta os bastidores de sua empreitada, ele mostra os fatos levantados e faz especulações. Originalmente, Cortabundas foi o trabalho de conclusão do curso de jornalismo do autor, financiado de maneira independente antes de ser publicado pela editora Draco.
Talles fez pesquisas em arquivos públicos, leu reportagens antigas e entrevistou vítimas, parentes, moradores, policiais, jornalistas e especialistas, tudo para entender o que de fato aconteceu, tentando separar o mito da realidade.
Apesar de ter sido um caso de pouca repercussão fora dos limites do José Walter, era uma história complexa. O leitor perceberá que o pânico geral serviu de combustível para uma série de absurdos, que atrapalhou ainda mais a solucionar o mistério. Sensacionalismo da imprensa, vontade de fazer justiça e preconceito racial da população, vaidade e truculência policiais, negligência dos políticos locais.
A execução da HQ tem mais qualidades do que problemas. O roteiro tem muitos diálogos e reflexões pertinentes (outros nem tanto) e as soluções para os requadros (a moldura das ilustrações), no geral, são orgânicas e criativas; em algumas páginas, há elementos demais, confundindo o leitor. A arte é bem no estilo jornalístico, sem chamar muita atenção para si.
Cortabundas é uma HQ nacional talentosa que merece uma maior repercussão.
Os quadrinhos, a chamada nona arte, é uma expressão artística que permite contar todo tipo de histórias. Suas particularidades visuais transformam o formato em algo único e muitas vezes de difícil tradução para outras mídias. Certas ideias são pensadas e melhor apreciadas em HQs.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Foto de capa: papodequadrinho.com