Sysyphus: documentário conquistense é lançado em festival internacional em Salvador

Longa-metragem do diretor George Neri, é um documentário baseado no ensaio filosófico "O Mito de Sísifo" escrito por Albert Camus, um filósofo francês. 6 de março de 2024 Morgana Poiesis

O documentário Sysyphus, dirigido pelo cineasta conquistense George Neri, será lançado no XIX Panorama Internacional Coisa de Cinema, com exibição no dia 19 de março, às 17h10min, e reprise no dia 20 de março, às 16h30min, no Cine Glauber Rocha, em Salvador, Bahia. George Neri é graduado em Comunicação Social, com habilitação em Hipermídia, pela Faculdade de Tecnologia e Ciência, campus de Salvador, e especialista em Cinema Expressão e Análise, pela Universidade Católica de Salvador. O cineasta possui, em sua trajetória artística, uma série de vídeos e filmes premiados em mostras e festivais nacionais, tendo sido selecionado para o Short Film Corner, no Festival de Cannes, com o filme Tragédia do Tamanduá, em 2011.

Seguindo o traço experimental como investigação crítica da linguagem presente nas obras do diretor, Sysyphus apresenta elementos ficcionais paralelos à sua característica documental predominante. “Meu objetivo não é contar a história, meu objetivo é criar a sensação. É criar um tipo de sensação através das imagens, unindo o som das situações, dos enquadramentos, da forma de ver e, principalmente, quebrar com a quarta parede, tenho um desejo imensurável de acabar com o espetáculo… a história, na realidade, fica a cargo do público”, afirma o cineasta.

Sendo o segundo longa-metragem do diretor, o documentário possui 63 minutos, e foi baseado no ensaio filosófico O Mito de Sísifo, de Alberto Camus (França, 1942). Inspirado nesse personagem da mitologia grega, George Neri, que já havia realizado o curta-metragem Sísifo do Vale (menção honrosa em experimentação da linguagem, no Festival de Cinema Baiano, 2016), segue em seus questionamentos estéticos acerca da relação existencial entre o ser humano e o trabalho. “O trabalho é o grande norteador da vida das pessoas. É o trabalho que leva você para outra cidade, que resolve suas questões econômicas, que traz comida para casa, o trabalho é o centro de tudo. É onde gera as produções. E eu, como artista, sempre me questionei com relação a isso… onde fica o ócio criativo, matéria-prima da arte? Dificilmente você consegue realizar um produto artístico se você não tiver tempo livre, tempo para pensar, tempo para executar e tempo para experimentar, como diz Nietzsche “quem não tiver para si dois terços do seu dia é um escravo”. Camus coloca essa questão da rotina, do cotidiano como fundamento do livro. Desencadeia daí reflexões sobre a angústia que é ter consciência sobre a vida, sobre o tempo despendido, sobre os afazeres sem sentido e, por fim, coloca em evidência o suicídio como questão fundamental da filosofia.  A filosofia lhe devolve o direito de decisão, de ser mais responsável pelo seu próprio destino, apesar de sabermos que o destino dos homens de poder é conduzir as pessoas para uma vida miserável, lhe tirando o pão, ou, como diz Brecht, uma outra referência para mim, que conheci através do meu saudoso amigo cineasta e diretor de teatro, Gildásio Leite, ‘há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra, etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado’. Acho que o livro do Camus vem trazer uma complexidade sobre esse tema, que parece um beco sem saída. Tipo assim, você precisa trabalhar, não tem para onde ir, mas Camus desenvolve dentro do livro umas metáforas e umas sugestões de possibilidades interessantíssimas. Quando ele fala da pedra que Sísifo carrega, não precisa ser um movimento mecânico e repetitivo, ele pode desviar o caminho. Ele pode sentar em cima da pedra, ele pode parar, deixar a pedra em um canto, observar a paisagem, dançar em cima da pedra, quebrar a pedra? Não é à toa que a última frase do livro O mito de Sísifo, um ensaio sobre o absurdo diz ‘é preciso imaginar Sísifo feliz’. Ele termina o livro com essa frase porque acredita que esse peso e essa condenação que foi dada ao mito não necessariamente está ligada ao humano. O humano é criativo. O ser humano é um artista nato, ele não é uma máquina. Ele tem capacidade de revolta, capacidade de reflexão. Ele tem a capacidade de dizer não, por maiores que sejam as adversidades. Camus é um existencialista, ele pode interromper o destino dele a qualquer momento”, comenta o diretor.

Sysyphus teve cenas gravadas na Gruta da Mangabeira, da cidade de Ituaçu, Chapada Diamantina,  na Base Naval de Aratu e no Elevador Lacerda, da cidade de Salvador. “Escolhi esses três lugares pensando na questão arquitetônica e na posição do ser humano dentro dessa paisagem, a forma como eles se locomovem. A dimensão diminuta do ser humano perante essa paisagem. Tentei ver o filme assim, um pouco de longe. Planos abertos. É lógico que, depois que comecei a pesquisar, tive que entrar. Então, a lente da câmera começou a virar 50 milímetros. Os personagens não ficam tão pequenos dentro da realidade deles, porque eles incorporam essa realidade. Eles criam uma relação com esses ambientes gigantescos e, de alguma forma, eles diminuem essa discrepância. Mas, no início, o pensamento era justamente fazer um filme só com plano aberto, colocando aqueles personagens pequenos diante da dimensão dessas arquiteturas do elevador, da gruta e do mar. Mas a medida em que você vai se aproximando dos personagens, você vê que eles são grandiosos e, às vezes, eles ficam até maiores que a própria paisagem”, discorre Neri sobre o processo criativo do filme.

Realizado pela produtora Conjunto Filmes, sediada em Vitória da Conquista, desde 2014, o documentário foi selecionado pelo edital Arranjos Regionais, da Agência Nacional de Cinema/Fundo Setorial de Audiovisual/Fundação do Estado da Bahia, em 2019, contando, também, com apoio da prefeitura de Ituaçu-BA. “A verba só foi sair em 2021, o filme ficou esse tempo todo no vácuo. Então, o projeto que tinha um determinado valor virou outro valor menor, porque aí o preço já inflacionou. A gente teve que fazer assim mesmo. Deveria ser atualizado o valor de acordo com os juros e a correção monetária, é o justo. Até ter que devolver dinheiro eu devolvi, porque a taxas bancárias o projeto não cobre. O desafio de fazer isso na Bahia, principalmente no interior, é gigantesco, estamos longe dos recursos, somos limados, a maior parte dos recursos ficam na capital. Aí, recentemente, foi liberado o maior recurso da história para o audiovisual do interior, via Lei Paulo Gustavo, e o que acontece? Concentração de recurso! Isso não é interiorização, é mais uma “ilha soteropolitana” em pleno Sertão da Ressaca. Cerca de 90% dos recursos destinados ao Sudoeste baiano (que tem 25 municípios) ficou concentrado em meia dúzia de pessoas que trabalham juntas.  Teve proponente que aprovou 4 projetos em uma Lei Emergencial, isso é um disparate. Estou há 20 anos trabalhando precariamente no audiovisual e não vi nem o cheiro desse recurso. Me inscrevi nesses editais da Lei Paulo Gustavo na Bahia com 8 projetos, nenhum selecionado. O problema não é perder, pois entendo que um edital é um processo seletivo, e perder faz parte, mas a forma como foi atropelado e a deturpação dos critérios fazem desse processo, ao meu ver, ilegítimo. O processo foi um verdadeiro caos, não respeitaram os critérios (principalmente o critério currículo), não emitiram pareceres técnicos, não responderam recursos, falta transparência e responsabilidade com os trabalhadores do audiovisual. Entidades ligadas a este setor emitiram uma carta ao Secretário de Cultura da Estado, expressando insatisfação com os trâmites do Edital, tendo sido registrado, também, uma denúncia no Ministério Público Federal, vamos aguardar para ver os desdobramentos’, relata o diretor sobre a política de financiamento do audiovisual, na Bahia.

Sysyphus contou com uma equipe criativa residente nas cidades de Vitória da Conquista e Jequié, como Alex Oliveira, na fotografia, Ronaldo Ros, na trilha sonora, Morgana Poiesis, na pesquisa e assistência de direção, e Ayume Oliveira, na montagem, além do produtor local Dió Araújo. Também reuniu profissionais da capital baiana, como Edson Bastos, Gisele Sthael, Isaac Souto e Lucas Oliveira. “Já tenho algumas pessoas que trabalham comigo, que sempre considero, porque confio nelas. É muito bom trabalhar com pessoas que propõem, pessoas que interferem, que mudem ou que tragam uma coisa diferente. Mas, também, pessoas que têm um certa sincronicidade… em não ter tanta relutância, que seja mais solto, mais livre. Quando você convida pessoas assim, com mais autonomia, que são muito propositivas, a dificuldade é justamente tentar criar uma timeline, um caminho a se seguir para não perder muito foco. Porque, na realidade, a galera que é muito criativa, acaba indo a galope, então, às vezes, sai do trilho. Acho que o papel do diretor é ficar sempre lembrando que tem um caminho a seguir, segundo o projeto”, afirma o diretor.

Segundo Neri, os atores do filme foram escolhidos a partir de critérios como disponibilidade, afinidade e fotogenia. “Os três atores foram extremamente disponíveis, houve uma grande abertura. Nós pesquisamos alguns. Tivemos muita sorte com o mergulhador Fernando Dortas, é difícil achar um profissional dessa área. O Zé Grande se mostrou extremamente disponível, e depois que a gente viu onde ele trabalhava, a arquitetura, essa relação que desde o início a gente estava querendo fazer entre a paisagem grandiosa e o homem pequenininho, se apresentou assim de uma forma incrível. Existia o interesse de ter uma atriz na filmagem, de ter uma personagem mulher, mas as circunstâncias se impuseram, e não conseguimos ter essa personagem, apesar de termos filmado duas ou três ascensoristas, na hora da montagem não rolou. É uma questão  estrutural esse lance da gente não achar mulheres em algumas funções, ainda em 2023, nós temos o reflexo de uma política de determinadas funções serem exercidas por homens. E nada melhor para representar um Sísifo do que uma mulher… que são pessoas que têm uma jornada de trabalho triplicada, geralmente são as que tomam conta dos filhos, tomam conta do lar. Então, eu acho que Sísifo é uma mulher. Infelizmente nós não conseguimos colocar essa personagem feminina, seria nossa melhor representante”, afirma.

O documentário contou com consultoria prévia do cineasta baiano Geraldo Sarno, que dirigiu uma série de filmes abordando as nuances criativas dos sertões, como o clássico Viramundo (1965), O último romance de Balzac, que recebeu o Prêmio Especial do Juri, no Festival de Gramado, em 2010, Tudo isso parece um sonho, premiado como melhor direção no Festival de Brasília, em 2008,  seu último filme Sertânia (2020), entre outros. Falecido em virtude da COVID-19, durante o processo de filmagem, Geraldo Sarno foi homenageado no documentário, que também faz uma referência ao seu filme A cantoria, de 1969. “Geraldo estava muito presente em Conquista. Após ele ter feito um filme aqui chamado Sertânia, ficamos muito próximos, porque eu trabalhava na Secretaria de Cultura da cidade. Realizamos uma mostra com os filmes dele no Cine Centro, projeto que eu coordenava na Casa Regis Pacheco, e fomos agraciados por ele estar presente nas sessões. Geraldo tinha sido meu professor na faculdade, em Salvador, a gente tinha uma boa relação. Sempre o admirei como cineasta, como professor e como pessoa. Ele não importava muito com a questão da ideia. Ele se importava com a questão da linguagem cinematográfica, em como iria conceber essas ideias, estava muito mais preocupado com a questão da concepção da execução do que propriamente com a ideia. Geraldo contribuiu tentando construir, e também destruindo algumas ideias já concebidas, que eu ia levando. Ele questionava sempre em um tom de querer aprofundar a reflexão. Por exemplo, quando falava para ele que o filme era baseado na arquitetura, ele sempre ficava me cutucando no sentido de que não era apenas isso e dizia: ‘você acha que vai dar conta de fazer um filme só filmando os espaços e as pessoas que estão aí dentro? Essas pessoas não vão ter interação com esse espaço, como seria isso?’ Ele chegava em algumas reflexões que me interessavam, como, por exemplo, ele chegou numa que foi muito boa, que abriu bastante o que a gente estava pensando, por exemplo:  ‘olha só, eu estou vendo aqui que você tem três locações e cada uma representa um elemento;  a gruta representa a terra, o elevador representa o ar por conta da altitude do vento ali… o mergulhador do mar, o soldador, representa a água, e o fogo? Está faltando o fogo’. Lembro que, durante a consultoria, ele falava assim: ‘rapaz, tudo bem, você já tem um espaço, mas falta o tempo’. Para mim, foi a síntese da grande contribuição que Geraldo Sarno deu na construção do filme”, afirma Neri.

Durante o processo de pré e pós-produção de Sysyphus, uma série de diálogos foram estabelecidos com a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, contando com colaborações de pesquisadores, como Eduardo Bernardes e Euclides Mendes. Em 2022, foi realizado o Cineclube para Sysyphus, como parte do projeto de extensão Performances Culturais, da Coordenação de Cultura, em parceria com o Janela Indiscreta e a produtora Segundo Olho. O cineclube contou com uma curadoria de filmes que foram referências para o processo criativo de Sysyphus, como: Viajo porque preciso, volto porque te amo (Marcelo Gomes & Karim Aïnouz, Brasil, 2009), Vira Mundo (Geraldo Sarno, Brasil, 1965),  Menq (Artavazd Pelichian, Armênia, 1969),   Balada de Narayama (Imamura Shohei, Japão 1983), Eu, um negro (Jean Rouch, França, 1958) e Last and First Man (Johann Johannsson, Reino Unido, 2020). “Eu achei esse cineclube sensacional, porque, além de ter formado público através dos filmes que nós escolhemos, serviu também como orientador para nossa estética. Filmes que nos orientam através da linguagem, a questão dos temas e reflexões que a gente busca. São filmes norteadores, filmes que instigam a gente a buscar também uma ideia que alcance essa forma. Sysyphus também contou com colaboração da realizadora e pesquisadora do audiovisual Juliana Marra, mestra em Performances Culturais e doutoranda em História, pela Universidade Federal de Goiás. Ainda como parte do processo criativo do filme, Neri participou de um laboratório de montagem, no XIX Panorama Internacional Coisa de cinema, na capital baiana, em 2023, destacando a consultoria de Marina Meliane, que, segundo o diretor, foi de grande relevância para o amadurecimento estético do documentário.

Em reposta à entrevista, Neri faz uma crítica à singularidade estética dos filmes, na era da indústria cultural. “A televisão, a Rede Globo, a Record e afins, fazem sempre uma semiótica do desprezo ao povo brasileiro. Essas narrativas muito dramáticas, enfadonhas, didáticas, como você citou, tomam conta do imaginário brasileiro. Então eles se assustam com a questão experimental, sendo que, para mim, o brasileiro é o próprio experimentalismo. Nada mais experimental do que ver a realidade do povo brasileiro. Naturalmente, faço filme experimental não é porque é um deleite meu, ou é uma vontade de transgredir, não é! Antigamente pensava que sim, mas percebi que minha transgressão é minha própria impressão sobre a realidade. E a realidade brasileira é uma coisa extremamente experimental. Experimental porque o povo brasileiro, para poder conseguir sobreviver e viver diante de tanta opressão, tanto colonialismo, acabou sendo experimental, ele experimenta a existência do que é possível realizar. Acho muito difícil o experimental ser privilegiado com as questões materiais, está justamente dentro de uma dificuldade de produção da sua gênese. A criatividade é o mote da questão. Então, nada mais experimental do que o brasileiro e, consequentemente, sua estética. Esse lance de você fazer filme via edital, contrato com as televisões, cada uma com seu perfil são donas dos espaços, então elas exibem o que preferem. Elas dão certa liberdade, mas indicam o que desejam  Acho que esse é o terceiro filme que eu faço nesse esquema de vender para televisão, e elas pontuam questões assim como fazem os professores na universidades, na hora da orientação de monografias, indicam caminhos, etc., enfim, existe toda uma macroestrutura de consultorias de roteiros, de montagem, de distribuição. Elas acabam direcionando, a partir de um estudo que elas tẽm de audiência, então, os menos vistos acabam ficando prejudicados pelo discurso da maioria. Isso está impregnado dentro do fazer cinema. Realmente é cada vez mais difícil você propor uma coisa que saia dessas impressões da audiência, do discurso limitante, determinante, e, muitas vezes, fascista. Então eu acho que quem faz cinema tem que ficar muito esperto com relação a isso, e tentar achar outros espaços para conseguir propor filmes que promovam a quebra da hegemonia. Existe uma estrutura de pontuação da ANCINE, com relação à audiência, todo mundo está buscando entrar dentro do jogo, das pontuações, dos likes e isso acaba prejudicando as singularidades, os mundos possíveis, as filmografias, a diferença. Quando você assiste, por exemplo, filmes do Pasolini, do Glauber Rocha, do Godard, será que vamos ter espaço para que surjam cineastas assim, dessa forma? Diante dessa realidade de pontuação, de audiência, é bem complexo tudo isso, as pessoas estão querendo mais entrar no jogo do que discutir e denunciar essas questões todas”, reflete o cineasta.

Além do lançamento no XIX Panorama Internacional Coisa de Cinema, Sysyphus também será exibido no Cine Brasil TV, ainda neste ano, canal com o qual a produtora do filme fez um contrato de pré-licenciamento, como  requisito para inscrição no Edital. “Temos, também, a já consolidada Mostra de Cinema Conquista, que é uma possibilidade de exibição na cidade. Além disso, estamos querendo exibir o filme na Gruta de Ituaçu, levá-lo para os moradores que participaram do processo. Também pretendo inscrevê-lo nas inúmeras mostras nacionais e internacionais, e, depois de extinto o tempo de contrato com o canal Cine Brasil TV, negociá-lo com outros canais e plataformas. Quando você termina o filme, é aí que ele funciona, que ele existe. Quando ele começa a ser exibido, porque, até então, são coisas da nossa cabeça, aí você exibe para um, para outro, vê na tela grande com pessoas, é legal esse termômetro”, afirma o diretor sobre a circulação do filme, após o lançamento.

 

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