Todas as vidas importam, mas as vidas negras importam menos

Para a professora Tânia Torreão, além de ter que sentir, todos os dias, o racismo estrutural na carne, as mulheres e os homens pretos são obrigados a justificar as suas pautas 10 de junho de 2020 Tânia Torreão

Imagine a cena… Um casal de jovens pretos sai de um cursinho em um bairro nobre de Salvador, às 22h, onde tiveram aula de reforço para enfrentar o vestibular. Em Salvador, quem não tem carro, como os jovens pretos não tinham, anda pelo alto. Não, não é de avião ou helicóptero, eu me refiro ao alto das passarelas, que evitam os atropelos, mas não os frequentes assaltos. Uma quantidade enorme de pessoas, não só as pretas, são assaltadas nas passarelas da capital baiana enquanto um outro bom tanto dessas pessoas, aí sim as pessoas pretas, são expostas a violência policial nesses lugares.

Mas voltando a cena, dois jovens pretos saíram de um cursinho. O jovem preto e de bairro periférico decidiu deixar a moça preta, moradora de bairro nobre, em casa. No caminho, eles tiveram de atravessar uma passarela aonde haviam se acoitado seis policiais que resolveram realizar uma blitz, ou na linguagem popular soteropolitana, um “baculejo” nas pessoas. Coisa de preto com autoridade e armado, para preto sem autoridade e desarmado.

O jovem casal conversava alegremente quando ouviram uma voz forte e alta que, ao mesmo tempo em que os incomodava, os paralisou também. A voz firme e forte exigia: “documento!”. E enquanto a jovem mulher preta era mantida a pulsos que lhe agarravam com força o braço, afastada de seu amigo, o jovem homem negro sofria o tal “baculejo” ou vasculha da polícia. O jovem preto foi todo “baculejado” e, ainda por cima, apresentou o documento de identidade exigido pelo policial, que rindo da cena ainda “deu a letra” ao jovem preto, exigindo: “e a carteira de trabalho? Sim, porque pretos na rua andando depois das 22 horas têm que estar com a carteira de trabalho no bolso para provar que não é ladrão”.

Agora, imagine uma outra cena, dessa vez vivida numa cidade do Sul da Bahia, Ilhéus, que tanto se vangloria de seu passado, onde algumas pessoas que viveram o auge da riqueza que o cacau trouxe, dão demonstrações inequívocas do desejo de querer viver nele. Nessa cidade, uma jovem mulher preta saiu de casa para ir ao cabeleireiro. Na rua, a jovem mulher preta foi abordada por sua vizinha, pertencente a uma das famílias brancas e tradicionalíssimas da cidade. Primeiro, a senhora branca achou curiosa as vestes preta e branca da roupa que a jovem mulher preta vestia e quis lhe interrogar sobre o seu estado civil. O diálogo entre as duas começou por aí.

A mulher branca e de família tradicional quis saber se a jovem mulher preta era viúva, pois em sua cabeça a cor preta, em especial, deveria ser destinada ao uso exclusivo de mulheres brancas ou pretas que tivessem esse estado civil. E o diálogo prosseguiu com a jovem mulher preta toda desconcertada e intimamente achando constrangedora e sem sentido aquela conversa.

“Nós, pretos e pretas, morremos por sermos 62% da população carcerária do Brasil, morremos por sermos mais agredidos nas ações policiais”, Tânia Torreão. Foto: Rafael Flores/Revista Gambiarra

Talvez percebendo o constrangimento que a jovem mulher preta sentia, a mulher branca e de família tradicional, a pretexto de olhar a mulher preta no rosto apressou-se, na medida de prostrar-se justamente à frente da jovem mulher preta e francamente querendo lhe impedir que se libertasse daquela conversa incômoda, segurou-a pela mandíbula, moveu-a de um lado ao outro e disparou, francamente pensando que a elogiava: “Tão bonita! Traços tão finos, quase brancos”.

E como arremate final, ao sorriso tímido e desconcertado que a jovem mulher preta lhe deu, a senhora branca e de família tradicional se sentiu à vontade para lhe fazer um pedido. Ainda segurando a mandíbula da jovem mulher preta, a senhora branca e de família tradicional pediu que a jovem mulher preta simplesmente lhes mostrasse os dentes, como são mostrados os dentes de uma égua, cavalo ou mula na escolha de quem a deseja possuir. Mostrar os dentes como eram mostrados os dentes de mulheres e homens pretos e pretas subordinados pela escravização.

Mas o que isso tem a ver com o racismo atual e como esses relatos comunicam com a campanha “Vidas negras importam” (“Black lives matter”)? Posso dizer que tudo, pois são experiências como essas, vividas por negros e negras quase que cotidianamente, que nos impedem de respirar, como George Floyd nos EUA, que não respirou sob os joelhos torturadores do policial que o assassinou.

E ainda que não bastasse não poder respirar, como respiram os grupos étnicos hegemônicos, nós, mulheres e homens pretos, que vivemos o racismo estrutural na carne todos os dias, somos obrigados a justificar as nossas pautas, como o apelo da frase “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) que remete ao desejo de reparação e leva ao entendimento por sua vez que a afirmação diz respeito somente, e exclusivamente, que as vidas negras importam. Não é isto que queremos dizer, pois, até como garantia de sobrevivência, como estratégia de resistência, nós, homens e mulheres negros e negras, fomos compelidos as mediações no Brasil, isso vem acontecendo desde o século XVI, primórdios da colonização.

Nós sabemos tudo de mediações e, por isso mesmo, entendemos que os homens e mulheres brancos e brancas, amarelos ou amarelas, não são nossos inimigos. O nosso inimigo é o racismo estrutural que está acomodado na sociedade de classes. E se ele encarna em pessoas brancas ou pretas – sim, há pretos racistas! – o nosso combate não é contra essas pessoas, mas contra a ideologia que elas pregam.

Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu ao cair do 9º andar de um prédio, em Pernambuco, depois que a patroa de sua mãe o deixou sozinho no elevador. Foto: Reprodução/Internet

E se gritamos “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) é por Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que morreu ao cair do 9º andar de um prédio de alto padrão, em Pernambuco, porque a patroa de sua mãe o deixou sozinho no elevador, enquanto fazia a unha. Miguel era preto e sua mãe também! Gritamos “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) por Cláudia da Silva Ferreira, 38 anos, que foi arrastada 50 metros por um carro da polícia no Rio de Janeiro. Cláudia era preta. Gritamos “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) por Bianca Regina de Oliveira, 22 anos, baleada na cabeça enquanto dormia em sua casa, numa ação realizada pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, na cidade de Deus. Bianca era preta!

Gritamos “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) por Marielle Franco, 38 anos, vereadora chacinada em via pública na cidade do Rio de Janeiro. Marielle era preta! Gritamos “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) por Pedro Gonzaga, 28 anos, asfixiado até a morte dentro de um supermercado. Pedro era preto! Gritamos “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) por Anna Carolina de Souza Neves, 8 anos, morta por uma bala perdida na cabeça em Belford Roxo, no Rio de Janeiro.

Gritamos “Vidas negras importam” (“Black lives matter”) pelos mortos na Chacina do Cabula: Adriano Souza Guimarães, de 21 anos. Ele era preto; Caíque Bastos dos Santos, de 16 anos; Everson Pereira dos Santos, de 26 anos; Bruno Pires do Nascimento, de 19 anos; Ricardo Vilas Boas Sila, de 27 anos; Natanael de Jesus Costa, de 17 anos; e João Luiz Pereira Rodrigues, de 21 anos. Todos eles eram pretos. Eu sou preta, meu filho é preto. Nós, pretos e pretas, morremos por sermos 62% da população carcerária do Brasil, morremos por sermos mais agredidos nas ações policiais. Quando somos convidados a mostrar os dentes como equinos, isso não é uma coincidência.

Gritemos então:“Vidas negras importam” (“Black lives matter”) SIM! Vidas negras precisam importar!

* Tânia Torreão é professora do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Jequié.

Foto de capa: Pixabay

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