“Alif, O Invisível” é uma fantasia para nossos tempos
Obra de G. Willow Wilson, autora americana convertida ao islamismo, conta a história de um hacker que vive em emirado fictício e usa suas habilidades para proteger internautas considerados subversivos pelo governo 17 de novembro de 2019 Ricardo Santos“Alif, O Invisível” é um triunfo da diversidade. Ficção que dá voz ao entendimento complexo do mundo árabe sem comprometer o fascínio da narrativa. Neste livro, a fantasia corre solta, de maneira criativa e perspicaz.
G. Willow Wilson é uma americana branca convertida ao islamismo. Não se trata aqui de apropriação cultural. Ela mora parte do ano no Egito e é casada com um egípcio. Este contexto poderia dá-la uma visão dogmática do mundo árabe, um respeito excessivo, mas acaba lhe proporcionando conhecimento de causa, um profundo entendimento desse mundo, numa visão crítica cheia de insights.
Alif, a primeira letra da língua árabe, é o codinome do protagonista, um hacker que vive num emirado fictício, apenas chamado de A Cidade. Alif usa suas habilidades cibernéticas para prestar serviços de proteção a todos os internautas considerados subversivos pelo governo local opressor.
Alif tem os mesmos problemas de muitos adolescentes: frustrações amorosas, inadequação social, revoltas familiares. Seu maior medo é ser descoberto pelo Estado, devido à sua notoriedade como hacker, mas um perigo muito maior surge em sua vida quando ele se depara com um antigo livro. O Alf Yeom pode revelar segredos tão sinistros que despertaria um poder além da compreensão humana. Então, o leitor tem contato com a brilhante mistura proposta pela autora do mundo digital com o mundo fantástico das lendas árabes.
O leitor se depara com djins, demônios e outras criaturas sobrenaturais, além de lugares inusitados, como uma versão árabe do Beco Diagonal dos livros de Harry Potter. Aliás, podemos considerar Alif como um mago dos computadores. Inclusive, há uma Hermione, a firme Dina, e um Ron, um príncipe contemporâneo muito divertido. Assim como Harry, Alif é meio tapado, imaturo, mas de bom coração.
O que faz o livro funcionar é a maneira como a autora desenvolve a trama. Por meio das ações e falas dos personagens, ela lança uma visão crítica, complexa e cheia de amor pelo mundo árabe. Ela admira essa cultura, mas não deixa de apontar suas falhas. Tudo é apresentado de maneira orgânica. É uma história sobre poder, liberdade e relações humanas. A autora até faz uma brincadeira consigo mesma. Há uma personagem, uma americana convertida ao islamismo. É uma forma de autocrítica bastante equilibrada.
O livro não é perfeito. O primeiro terço é bombástico, intenso e promissor. Lá pelo meio fica arrastado, os diálogos ganham bem mais espaço do que a ação. O terço final volta a mostrar força, com ótimas reviravoltas e crescimento dos personagens.
A edição física da Rocco está muito bem cuidada. A tradução é fluida. A revisão está impecável. O projeto gráfico faz inspiradas referências ao mundo árabe, mesclando com o mundo digital. A capa, simples e marcante, é a mesma da edição americana.
No geral, o romance é uma delícia de leitura, cheia de sabedoria. Muito oportuno nesses tempos de intolerância.
*Ricardo Santos é escritor, editor e servidor público. Nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Uesb. Ele possui um blog e seus contos foram publicados em sites, coletâneas e revistas, como Somnium e Trasgo. Organizou a coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição 2019), finalista do prêmio Argos. Também é autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) e do livro de viagens Homem com Mochila (2018). Seu mais recente livro é a coletânea Cyberpunk (Draco, 2019).
Imagem de capa: Nerd Pride