Mulheres lésbicas lutam contra o preconceito e a violência sexual
Pesquisa de 2022 identificou que 24,76% das mulheres lésbicas já tinham sofrido violência sexual e 75,13% dos crimes eram cometidos por pessoas conhecidas 29 de agosto de 2024 Ana Carolina BastosNeste dia 29 de agosto, Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, as mulheres lésbicas ainda precisam enfrentar os estereótipos de relacionamentos heterossexuais que geram invisibilidade e invalidadação nos relacionamentos amorosos e/ou sexuais entre as mulheres, violências físicas e um o cotidiano de ofensas lesbofóbicas, além da constante objetificação e fetichização dos seus corpos.
De acordo com os dados de 2022 da Liga Brasileira de Lésbicas e pela Associação Lésbica Feminista de Brasília – Coturno de Vênus, 24,76% das mulheres lésbicas disseram que já sofreram violência sexual e, ainda, afirmaram que pessoas conhecidas cometeram 75,13% desses crimes.
A maioria das entrevistadas disse, na época, já ter sofrido algum tipo de lesbofobia, 78,61% delas, e outra parcela disse também ter conhecidas que já sofreram algum tipo de violência por serem lésbicas, 77,39%. Os tipos de atos lesbofóbicos mais destacados foram assédio moral com 31,36%, assédio sexual, 20,84%, e violência psicológica com 18,39%.
De acordo com a jornalista e autora do livro “Mulheres que amam mulheres – como a heteronormatividade afeta nossas vidas e relações”, resultado do seu Trabalho de Conclusão no Curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Ana Carolina Bastos, em geral, quando se trata de sexualidade, o primeiro termo que aparece é a heterossexualidade, a atração romântica e/ou sexual por pessoas do gênero oposto. “Dentro desse leque da heterossexualidade, existe a heteronormatividade que é um termo usado para descrever situações nas quais orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas”, explanou. “Amar uma mulher é um ideal que escapa do conceito que eleva o homem como centro social na modernidade. Quando se afirma que amar mulheres é um ato político, muitas mulheres lésbicas querem provocar uma reflexão sobre práticas que estão presas no cotidiano.”
Para a jornalista, o revolucionário desse do lesbianismo é lutar contra a heterossexualidade compulsória, que é seguir a orientação sexual padrão definida socialmente, em que a pessoa é obrigada a desenvolver e manter relações heterossexuais, e qualquer tentativa desviante é severamente punida. “Sabemos que a heterossexualidade é compulsória para todos, porém, para nós mulheres, a forma na qual ela se apresenta é muito diferente. Nós somos educadas para submissão em todos os aspectos da nossa vida, somos criadas e ensinadas a acreditar que nosso papel só será completado quando for devidamente penetrada e engravidada por um homem”, disse. “Ao nadar contra a corrente e ‘sair do armário’ e se identificar como lésbica ou como nos chamam as más e boas línguas “sapatão”, somos menosprezadas e seguimos vivendo a margem da sociedade, com a falta de direitos básicos e com os índices de violência a cada dia maiores. Resta a cada uma de nós apenas a invisibilidade.”
Invisibilidade e acolhimento
Para a estudante Larice Ribeiro, de 27 anos, a heteronormatividade e a criação religiosa foram os principais motivos para rejeitar sua sexualidade. “Era uma grande violência psicológica, também pela minha educação religiosa, que também está muito interligada. Então, eu me rejeitei por muitos anos, acreditando que Deus poderia me curar, que eu viria ser ‘normal’. Foi doloroso o não acolhimento, nem mesmo meu, e a impossibilidade de compartilhar as angústias com outros,” desabafou.
A história de Larice é mais comum do que se imagina no ambiente lésbico, especialmente para aquelas que cresceram dentro de berço religioso. A aceitação da orientação sexual torna-se mais difícil por se verem como uma abominação aos olhos de Deus, que é o discurso propagado pelas igrejas, submetendo muitas mulheres à exclusão e à marginalização social.
Para a jornalista, escritora e ilustradora Caroline Sarleto, de 27 anos, a invisibilidade de mulheres lésbicas se deve à conveniência social. “Você tem o gay chaveirinho que está cumprindo uma função, é aquele que está dentro do esteriótipo de ser o amigo fiel da mulher hétero ou amigo engraçado do homem. A mulher lésbica não supre nenhum fetiche social, a não ser que ela seja feminina ou que ela seja, talvez, bissexual que aceite se envolver com homens, e aí suprir um fetiche daquele homem. Nós, mulheres lésbicas, que desafiamos esse formato, não temos conveniência social, não somos atraentes sexualmente, e o apagamento vem muito daí”, explica.
Essa invisibilidade provoca diversas violências que essas mulheres precisam lidar. “É triste! A gente poderia ter muitas inspirações profissionais desde a infância, mas cantoras, atrizes, jornalistas, parlamentares, professoras, médicas precisam esconder sua orientação sexual se quiserem ser levadas a sério. Ainda que figura pública, a sexualidade das mulheres é sempre posta como um assunto particular, que não deve ser mencionado publicamente, tratado como menos importante”, disse. “Depois de adulta, que tenho visto essas manifestações, convivi com muitas as quais admiro muitíssimo e que ocupam com muita dificuldade ainda e enfrentam muitos desrespeitos, os parlamentos, os palcos, as clínicas.”
Identidade da mulher lésbica
Desde o nascimento, as mulheres buscam ser um padrão que as coloca em um determinado enquadramento de feminilidade. Nessa lógica condicionante, as mulheres lésbicas são muitas vezes comparadas com homens e, em vários casos, têm sua identidade desrespeitada.
Larice, que é uma mulher desfeminilizada ou “caminhoneira”, sofre violências diárias. “Sinto que parte da minha identidade é escondida, se perde, a depender do lugar e da situação. E essa performance não é por conveniência social, apenas, mas pelo medo da violência. Isso se reforça a depender do meu corte de cabelo, por exemplo”, contou. “Em muitas situações já fui confundida/afirmada como homem pelos outros, por ter cabelo curto e não usar roupas tão “femininas”, e o incômodo é grande quando isso acontece, aí automaticamente vem a “necessidade ” de performar em algum nível essa feminilidade.”
Caroline também sofre cotidianamente por fugir dessa imposição social, “Eu fico profundamente ofendida na verdade quando eu sou confundida com um homem, quando me chamam de ele, e eu ficava muito na dúvida se corrigia ou não, mas, com o passar do tempo, tomei forças para conversar e corrigir e dizer não, é ela. Eu acho que para mim o que mais ofende, o que mais machuca é ser considerada um homem”.
Representatividade
Assim como as lésbicas conhecidas como “caminhoneiras” sofrem com a imposição social da feminilidade, as lésbicas femininas sofrem com a fetichização dos homens sobre seus corpos e relações. Segunda Ana Carolina, na mente masculina, as relações sexuais entre duas mulheres são invalidadas, pois o machismo os ensina que em todo e qualquer ato sexual o pênis é essencial para a garantia do orgasmo e da satisfação sexual da mulher”, discorrer. “A partir disso, os homens se sentem no direito de ao encontrar um casal lésbico, se oferecer para “participar”, pois uma das maiores fantasias sexuais masculinas, é a relação de duas mulheres e um homem, pois eles acreditam que será o mais importante por oferecer algo que não existe dentro da relação lésbica e reforçar o ego masculino e assim, oferecer um atestado de masculinidade.”
Uma das frases que as entrevistadas relataram já terem escutado, principalmente em festas, é “nossa, mas você é tão bonita, tem certeza que é sapatão? Que desperdício!”. Outra situação vivenciada por Ana Carolina é estar acompanhada, demonstrar afeto pela mulher que a acompanha, e os homens se sentirem no direito de se aproximar e tentar um flerte, pedir para ficar, me puxá-la pela cintura como se tivesse intimidade para tal atitude. “Nesses casos, eu estava afirmando não gostar de homens, ou de mostrar que estou acompanhada, ainda assim insistirem tanto ao ponto de me sentir desconfortável e ir embora do ambiente.”
Ana Carolina disse ainda que a objetificação das relações lésbicas “poda” as mulheres lésbicas de vivenciarem a própria sexualidade. “E isso é reforçado principalmente em vídeos pornográficos, nos quais é sempre retratado mulheres bem femininas, representando um sexo que não existe, que é idealizado pela visão masculina, contribuindo com a lesbofobia sobre os nossos corpos e aumentando a falta de respeito com os nossos afetos”, explanou. “Ser mulher no Brasil já é extremamente difícil, pois andamos diariamente com medo. Mas ser mulher lésbica consegue ser mais difícil ainda, pois vivemos com medo da violência física que pode ocorrer ao demonstrar afeto em público, que afeta diretamente o ego masculino; da violência psicológica que sofremos na maioria das vezes por parte da família e amigos e da violência sexual, sendo comum os estupros corretivos no qual se acredita que a lesbianidade é falta de homem.”
Segundo Larice, que também é presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), e militante das causas sociais, com a comunidade LGBTQIAP+, há mais discurso de representatividade do que ações concretas para mudar a realidade. “As pautas ‘de identidade’ foram aos poucos sendo banalizadas por discussões rasas, pelo capitalismo que, ao colocar uma faixa colorida na porta de um banco, insinua que está sendo inclusivo e contra LGBTfobia, quando na verdade todo o sistema que gira em torno do banco prejudica a vida das LGBTs. Também há o fato que as pautas viraram representação, acham que uma pessoa pode falar por todas, o que acaba apagando as subjetividades”, destacou. “Mas a participação de mulheres lésbicas em todas as instâncias sociais é extremamente importante, justamente por mostrarmos umas às outras que é possível, que é justo que a gente ocupe, que é reparador.”
Já para Caroline, a representatividade se dá ao conseguir expor nas redes sociais e até mesmo monetizar em textos sobre as suas experiências. “ Eu comecei a escrever, e elas se sentem representadas de alguma forma. Procuro escrever sobre vivências de mulheres que gostam de mulheres exatamente porque percebo uma carência muito grande com relação a esse editorial, e nós temos vivências que são muito particulares e precisam ser escritas, precisam ser relatadas.”
Dentro dessas vivências particulares, Carol dá ênfase à saída do armário, que são processos diferentes, mas que têm pontos em comuns umas com as outras. “A simples ida ao cinema, que é feita às escuras pela necessidade de se esconder pelo medo de serem vistas publicamente, são temas importantes para quem está se permitindo a descoberta, a auto aceitação”, disse.