“A 12 km”: indígenas Yanomami isolados nunca viram o garimpo tão próximo
Documentos e imagens inéditas obtidos pela Pública confirmam que os Moxihatëtëma da terra Yanomami estão em risco por contato forçado do garimpo ilegal 14 de setembro de 2021 Thiago DomeniciA expressão “isolados” vem perdendo significado prático para os indígenas Moxihatëtëma thëpë da região da serra da Estrutura, dentro do território Yanomami, em Roraima.
Documentos e imagens inéditas obtidos pela Agência Pública mostram a presença do garimpo a apenas 12 km dos únicos indígenas em isolamento voluntário confirmados no território Yanomami pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Também há um segundo ramal garimpeiro, maior, há 42 km dos isolados. As informações foram checadas a pedido da reportagem pelo analista Heron Martins do Center for Climate Crime Analysis (CCCA).
Martins explica que as coordenadas de longitude e latitude das imagens de satélite (Sentinel 1 e Sentinel 2) confirmam os ramais de garimpo, ambos com pista de pouso clandestina na região próxima onde habitam os Moxihatëtëma. Uma das pistas clandestinas está no meio do caminho entre o garimpo mais distante e o mais próximo, a cerca de 23 km dos isolados.
As imagens mostram ainda as cicatrizes na floresta, fruto da exploração ilegal de ouro na região, com rejeitos da mineração.
Lucca*, uma fonte próxima à Funai, afirma que o órgão indigenista teria conhecimento da proximidade desse ramal garimpeiro pelo menos desde março do ano passado, quando um relatório de monitoramento comunicou à Funai em Brasília. Lucca conta ainda que outros sobrevoos posteriores a março de 2020 foram realizados pela Funai para monitoramento dos isolados – um deles em 2021.
Segundo seu relato, os relatórios com os alertas da presença garimpeira, no entanto, não teriam implicado nenhuma ação para desmantelar o garimpo próximo aos Moxihatëtëma. “Vão matar uma comunidade inteira que não foi contatada e Brasília [Funai] está fazendo de conta que não vê”, afirma.
Luciano Pohl, gerente de povos isolados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), diz que a situação requer uma ação imediata do governo para a proteção dos indígenas. “É grave”, avalia.
O antropólogo e analista legal da CCCA, Bruno Morais, diz que 12 km de distância de floresta, para indígenas, “é a distância de um quintal, ou menos”. Segundo ele, “indígenas, quanto mais isolados, percorreriam 12 km em pouco tempo, o que nos leva a imaginar que, se de fato estiverem aí [garimpo], esse grupo já pode não estar mais ‘isolado’. Como você deve imaginar, essa seria uma situação crítica e demandaria a intervenção imediata”.
Acossados pelo garimpo
Um dos documentos enviados à Funai em março do ano passado alertando sobre a situação foi obtido pela reportagem e registra que “o garimpo tem sido a principal ameaça à reprodução física e cultural dos Moxihatëtëma, cujo território se encontra cercado pela invasão garimpeira”.
O documento cita, por exemplo, a existência de recipientes de material não identificado nas fotografias do monitoramento aéreo. “Em relação aos recipientes, é provável que se trate de carotes de combustível de 50 litros, encontrados facilmente em pontos de garimpo. Este fato nos remete aos relatos de que os indígenas estão andando em locais abandonados ou de ocupação recente por garimpeiros.”
A fotografia acima é inédita, foi registrada durante o sobrevoo da Funai no ano passado e está anexada ao relatório enviado a Brasília. Sobre a imagem, o relatório registra: “Embora a criança no centro da foto acima tenha empunhado seu arco contra nós, a maioria dos indivíduos pareceu não se incomodar com a presença da aeronave – muitos apenas observaram, enquanto outros continuaram com seus afazeres normalmente, quebrando lenha, consertando as telhas. Tal reação confirma informações que obtivemos sobre o costume do grupo com o frequente tráfego de aviões do garimpo”.
O documento corrobora o diagnóstico de outro relatório, este público, lançado em março de 2021 pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
Os dados de “Cicatrizes na floresta – evolução do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) em 2020” revelam o aumento da pressão sobre os Moxihatëtëma, “acossados pelo aumento da circulação de garimpeiros na região da serra da Estrutura, a poucos quilômetros de sua casa coletiva. Um eventual contato forçado, nesse estágio, arrisca desencadear num trágico episódio de genocídio”, alerta o documento.
Luciano da Coiab explica que, no caso dos indígenas isolados, os riscos com a proximidade do garimpo se agravam pela vulnerabilidade a que ficam expostos, podendo ser contaminados com doenças levadas pelos invasores – “ainda mais no momento de pandemia de Covid-19”. “Em situações assim, uma simples gripe seria capaz de dizimar vários integrantes do grupo”, afirma.
No livro “Cercos e resistências – povos indígenas isolados na Amazônia brasileira” (Instituto Socioambiental, 2019), a liderança indígena Yanomami Davi Kopenawa fala sobre a relação com os Moxihatëtëma. “Eu estou muito preocupado com eles. Eles nos protegem, assim como nós os protegemos […] Eu não queria que os garimpeiros matassem mais eles. Eles estão protegidos por eles mesmos. Eu queria que o governo protegesse eles, então a gente quer denunciar, espalhar a mensagem no Brasil e fora.”
Em março do ano passado, o líder e xamã Yanomami fez um apelo em favor dos isolados durante sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. “Meu povo tem o direito de viver em paz e em boa saúde, porque ele vive em sua própria casa. Na floresta estamos em casa! Os Brancos não podem destruir nossa casa, senão tudo isso não vai terminar bem para o mundo. Cuidamos da floresta para todos, não só para os Yanomami e os povos isolados. Trabalhamos com os nossos xamãs, que conhecem bem essas coisas, que possuem uma sabedoria que vem do contato com a terra. A ONU precisa falar com as autoridades do Brasil para retirar – imediatamente – os garimpeiros que cercam os isolados e todos os outros em nossa floresta.”
Questionada sobre a situação de urgência e se teria conhecimento do garimpo próximo dos isolados, a Funai respondeu à reportagem que tem realizado o monitoramento ininterrupto do grupo por meio da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami Yekuana. “As medidas de monitoramento vem sendo acompanhadas pela ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF)/RR no âmbito da reativação das Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) da Funai. A fundação esclarece ainda que foram verificados garimpos próximos à Serra da Estrutura, os quais foram desativados na operação para a reativação da base da Funai na região (Bape Serra da Estrutura). Além disso, a Funai realiza continuamente ações de monitoramento da ocupação territorial desses indígenas isolados, bem como iniciativas de combate ao garimpo na região”. O órgão indigenista disse ainda que “foram realizadas 12 operações na região do Mucajaí e Couto Magalhães, por meio da Bape Walo Pali, e três operações na região da Serra da Estrutura, por meio da Bape de mesmo nome” — leia a resposta completa.
“Registro 76”
O território Yanomami é a maior Terra Indígena (TI) do país, onde vivem mais de 26 mil indígenas dos povos Yanomami e Ye’kwana, distribuídos em 371 aldeias. O território foi reconhecido como de ocupação tradicional, demarcado e homologado em 1992.
Os Moxihatëtëma thëpë pertencem ao subgrupo Yanomami de denominação Yawaripë, que, segundo os registros históricos, chegaram a ser contatados nas décadas de 1950 e 1960.
“Os Moxihatëtëma são um grupo isolado cuja sociabilidade é marcada por uma recusa radical de estabelecer quaisquer relações de afinidade e aliança, mesmo com outros indígenas”, registra o documento da Funai obtido pela reportagem.
A designação do nome remete ao fato de que esses indígenas manteriam o prepúcio do pênis (moxi) preso entre dois barbantes (hatëtë) amarrados na cintura.
Ainda segundo o livro Cercos e resistências, nos anos 1990 especulou-se sobre o desaparecimento do grupo devido a confrontos entre os Moxihatëtëma, garimpeiros e outras comunidades Yanomami nas regiões dos rios Catrimani, Mucajaí e Apiaú.
Em 1995, um relato divulgado pela Funai reportou que dois garimpeiros teriam sido flechados por eles na região do Alto Apiaú. Mas somente em julho de 2011, durante uma missão de reconhecimento aéreo, o grupo foi localizado novamente – no órgão indigenista, o grupo é referenciado como “Registro 76 – Serra da Estrutura”. No total, diz o documento da Funai, “os isolados realizaram cerca de 7 a 11 migrações em 26 anos”, sendo que o último deslocamento teria ocorrido em 2015, devido à presença garimpeira no entorno do território.
O grupo atual dos Moxihatëtëmaseria composto por até cem indivíduos que habitam um xapono (na imagem acima) – espécie de “casa comunal elíptica composta por uma quinzena de secções de tetos inclinados e com abertura para um pátio comunitário e com ampla área de roças adjacentes, além de roçados mais distantes”, explica o documento.
A equipe da Funai que monitorou os Moxihatëtëma no ano passado se deparou ainda com a ausência de três famílias que não estavam mais habitando o xapono principal. A situação de declínio demográfico, relata o documento, pode se tratar de uma migração ou fragmentação social: “contudo, é inevitável constatar que um dos principais motores das migrações é a enorme pressão decorrente da invasão garimpeira: são abundantes os relatos e vestígios de conflitos entre os moxihatëtëma, alguns com vítimas fatais. Não podemos descartar que as três famílias faltantes na contagem da casa comunitária podem ter sido vítimas de agressões por parte dos garimpeiros”.
Kopenawa conta em Cercos e resistência que, quando ouviu os parentes conversando sobre os Moxihatëtëma tinha mais ou menos 10 anos. “Eles são difíceis de encontrar. Eles não gostam de presentes. Já levaram terçado pra eles, deixaram no caminho, machado, faca… eles não aceitam. Preferem usar machado de pedra, já estão acostumados. Eles têm ferramenta para derrubar árvores grande e para fazer casa […] Eles são um pouco alto. Fortes. Lá não come feijão, gordura, só come caça, mel, peixe. Eles falam a língua yaroamë. Eu não entendo, queria entender, mas não quero mexer com eles, não. Eu não vou mexer com eles e eles não vão mexer comigo. Deixa eles em paz, deixa viver como escolheram o resto da vida”, diz.
Segundo a tabela oficial de povos indígenas isolados no Brasil elaborada pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, existem oito registros de presença de povos indígenas isolados na TI Yanomami, mas “apenas o Registro 76 – Serra da Estrutura” é uma referência confirmada.
Mercúrio, malária, desnutrição e violência
Além de ser um problema social, o garimpo ilegal em terras indígenas Yanomami afeta o meio ambiente e a saúde de quem vive no território – estimam-se até 20 mil garimpeiros no território. O mercúrio, utilizado na extração do ouro, contamina as águas locais. Com o garimpo, indígenas ficam mais expostos a doenças como a malária, que explodiu na região. Há também o problema da desnutrição infantil, com um dos maiores índices do país, como revelou reportagem recente da Pública.
Não é de hoje que a TI Yanomami vem sofrendo com a invasão de garimpeiros, mas a situação se agravou desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2019, que incentiva abertamente o garimpo.
No relatório “Cicatrizes da floresta” registra-se que, ao final de 2020, somavam-se 2.400 hectares de área degradada na TI Yanomami – o equivalente a 2.400 campos de futebol. Desse total, 500 hectares de garimpo foram registrados entre janeiro e dezembro de 2020, um aumento de 30%.
Segundo reportagem da InfoAmazônia, a mineração e o garimpo disputam hoje uma área maior do que a Bélgica dentro da TI Yanomami. A situação tem escalado a violência na região, com ataques de garimpeiros e indígenas em que há a suspeita de participação de facções criminosas como o PCC – situação abordada no especial jornalístico Ouro do sangue Yanomami, da Repórter Brasil e Amazônia Real.
A série também cita o relatório “Cicatrizes da floresta”, que conclui que o garimpo ilegal vem aumentando em intensidade e complexidade na TI Yanomami, “afastando-se cada vez mais da noção de atividade residual, espontânea, individual e artesanal, e consolidando-se como uma atividade empresarial, ainda que clandestina, de alto potencial de impacto social e ambiental”.
“Isolados ou dizimados”
Luciano da Coiab afirma que outros povos isolados também estão em risco neste momento no país. É o caso dos povos Piripkura (MT), Jacareúba/Katawixi (AM), Pirititi (RR) e Ituna/Itatá (PA), cujos territórios podem ficar desprotegidos caso quatro portarias da Funai que vencem em janeiro de 2022 não sejam renovadas pelo órgão. Essas portarias de restrição de uso do território por não indígenas garantem, ao menos no papel, proteção às quatro TIs onde há registros e confirmações desses grupos isolados.
A campanha “Isolados ou dizimados”, encabeçada pela própria Coiab e pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), está com uma petição on-line para pressionar o presidente da Funai, Marcelo Xavier, sobre a renovação das portarias. De acordo com a própria Funai, “a importância de se interditar áreas com presença de grupos de índios isolados é para garantir o direito desses povos ao seu território, sem a necessidade de contatá-los, respeitando assim, a vontade do grupo de se manter isolado”.
Reportagem publicada originalmente na Agência Publica, parceira do avoador.