Capoerista de Conquista realiza projeto que transforma a vida de jovens do bairro Patagônia

O projeto atende cerca de 50 alunos, crianças, adolescentes e adultos entre 6 a 50 anos, que aprendem o esporte, disciplina e responsabilidade que levam para a vida 8 de setembro de 2021 Ariane Longa e Renata Batista

“Quando o berimbau tocava, não tinha jeito, eu ia nas escondidas”, relembra o professor de capoeira, Thiago Xavier da Silva Brasil, 36 anos, ao contar o seu início na prática do esporte, que já é reconhecido como modalidade esportiva pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Esse mesmo entusiasmo pela capoeira ele compartilha com cerca de 50 alunos, crianças, adolescentes e adultos entre 6 a 50 anos, do bairro Patagônia, com o projeto social Periferia, em Vitória da Conquista.  

Apesar de ser conhecido como “Mestre Brasil”, o morador do bairro Patagônia ainda não alcançou o nível Mestre, mas treina capoeira desde os 11 anos de idade e é professor desde os 14. Começou a se especializar quando teve a oportunidade de frequentar a academia do Mestre Amazonas, do grupo de Capoeira Pelourinho da Bahia. Como não tinha condições financeiras de arcar com a mensalidade, aceitou a proposta de receber uma bolsa em troca de cuidar do espaço da academia. “Eu abracei porque como uma oportunidade única, devido à minha idade, a não trabalhar na época, ser dependente de mãe solteira. Tudo foi difícil pra mim, e até eu chegar professor, o Mestre veio me ajudando.”

Na adolescência, Brasil decidiu montar um projeto de capoeira na comunidade em que morava, o bairro Patagônia. Em um espaço cedido pelo vizinho, ele iniciou as aulas para dar uma oportunidade a jovens que, como ele, não tinham condições financeiras para frequentar uma academia. Desde então, ele não parou de ensinar e disseminar o conhecimento sobre a capoeira. Depois de passar por diversos locais, há sete anos, realiza a prática do esporte no espaço comunitário da Associação de Moradores do Bairro Patagônia, onde mantém, sem fins lucrativos, o Projeto Periferia juntamente com a Associação de Treinamento e União, Arte e Raiz (Atuar).

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A capoeira é uma representação da cultura brasileira, mas vai além disso ao misturar a cultura popular ao esporte, a luta, a dança, a música e a brincadeiras. O Projeto Periferia, como explica Brasil, ensina o esporte ao mesmo tempo em que cuida das crianças e jovens periféricos, para que possam sair  das ruas e sejam motivados a permanecerem na escola, a se interessem pelo estudo. “Não me importo se eles vão continuar na capoeira, eu quero saber se foram para escola. Eu estou aqui para ajudar eles a estudarem.”

Para Analyce Ribeiro, 25 anos, aluna do projeto Periferia desde os 12 anos de idade, a capoeira não é apenas um exercício para o corpo, é um esporte bem mais complexo. “Você abre sua mente, se diverte e aprende. Não só ali no envolvimento do esporte, mas você aprende muita coisa até com o dia a dia. Aqui dentro da capoeira, o meu mestre me ensina muito para vida lá fora”.

Na roda de capoeira, os jovens aprendem a desenvolver o jogo, aplicar os movimentos corretamente, a tocar o berimbau e aperfeiçoar o gingado. Depois da prática, o aprendizado é diferente. Disciplina, responsabilidade, comprometimento e respeito são valores passados por alguém que sabe a importância e a diferença que o esporte e a cultura faz na vida de jovens periféricos. “Eu sei que tem muitos que precisam, muitos eu salvei e muitos ainda eu preciso salvar dessa comunidade, dessa falta de oportunidade. O esporte é muito pouco valorizado na nossa comunidade como um todo, não só no Bairro Patagônia, mas também no nosso país”, diz Brasil. 

A importância que projetos sociais como o Periferia tem para essas pessoas ultrapassa a prática de esportes, é um meio de transformação e identificação que elas buscam para sair das estatísticas de bairros com altos índices de violência e cercados pela criminalidade, como o bairro Patagônia. “Quando você chega numa comunidade que tem um índice de pobreza, de ensino baixo, não é fácil estudar aqui. A gente tem esse índice alto de violência, porém vários deles já passaram pela capoeira e mudaram a vida”, conta Brasil. 

O professor de capoeira relembra dos muitos alunos que já ligaram para avisar sobre os colegas que iam às aulas, mas acabaram mortos. Por isso, ele reforça a importância de projetos como o Periferia e o muito a ser feito ainda. “A gente não venceu quando um vence, pois muitos ficam para trás. Não é diferente daquela das Olimpíadas (a medalhista Rebeca Andrade), uma das poucas que saiu da periferia. Quando um dos nossos chega lá, o povo diz que a periferia venceu, venceu como? Só ela foi, e os colegas que ficaram para trás por falta de oportunidade? A universidade não chegou na periferia, um ou outro saí para ir lá na universidade. Então a favela não venceu”. 

Falta investimento público

Além de ser considerada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, a capoeira também é reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como Patrimônio Cultural do Brasil. Isso significa que cabe ao governo brasileiro elaborar projetos e políticas públicas de preservação e continuidade das rodas de capoeiras e valorização dos mestres.

No entanto, um dos únicos reconhecimentos recebidos pelo projeto Periferia do poder público foi entre 2009 e 2012, quando a Prefeitura de Conquista cedeu a pedido do Comando da Polícia Rodoviária Estadual um espaço para serem realizadas as aulas de capoeira. “Foi  uma satisfação pra gente adentrar num recinto militar, poder ministrar aulas, que inclusive militares participavam, e todo mundo respeitar a capoeira”, relembra.

No entanto, a capoeira ainda é pouco valorizada pela Prefeitura de Conquista e pelo Governo Estadual. Faltam políticas públicas para viabilizar mais acesso ao esporte para os moradores da periferia da cidade e também mecanismos que facilitem que o cidadão comum possa desenvolver projetos sociais em  comunidades carentes. Em 5 de agosto deste ano,  a Câmara de Vereadores realizou uma audiência pública em homenagem ao Dia do Capoeirista, dos 19 vereadores, somente dois estiveram presentes. Uma das reivindicações dos mestres de capoeira que estavam presentes, foi a  realização de concursos públicos para capoeiristas que atuarem na rede municipal de ensino e a criação de seleções e editais com foco na realidade de vida dos praticantes da luta.

Sem apoio do Governo Municipal, Estadual e Federal, o Projeto Periferia conta apenas com a ajuda dos alunos e de alguns comerciantes locais para se manter. “Estou esperando uma segunda oportunidade com a Prefeitura, com a  mudança do prefeito. Mas, na verdade, esse projeto é feito mesmo em parceria com esses alunos que chegam à idade adulta e começam a trabalhar, são eles que pagam o material daquele de quem não tem, e a gente vai vivendo desse jeito”, explica o professor de capoeira.

Preconceito

A capoeira enquanto esporte ainda enfrenta o preconceito e o racismo pela associação. A sua história se iniciou no século XVI e há três linhas de pesquisa sobre sua origem: nasceu na África e foi trazida ao Brasil por africanos escravizados; é uma criação de escravos africanos em terras brasileiras; é uma criação indígena. A hipótese mais recorrente entre os historiadores é a de que foi criada no Brasil por escravos africanos. “Sofremos essa discriminação devido à desvalorização”, destaca Brasil. “A capoeira é linda, é boa de participar, mas realmente é a resistência”. 

Como defende a aluna de capoeira Analyce Ribeiro, é preciso superar o preconceito. “O povo tem muito a mente fechada, e pensa que a capoeira é só pancadaria, e não é, a capoeira é uma vivência. Se você abrir a mente, vir aqui assistir, interagir e se aprofundar na história, você vai ter aquela vontade de praticar”.

Já para Douglas Viana, 25 anos, que treina capoeira desde os 5 anos de idade, o esporte serviu como um amadurecimento pessoal para a vida dele, por isso  acredita que as pessoas deveriam ter outra visão da capoeira. “Não tem nada a ver com marginalidade, é um monte de parcerias e amigos. A pessoa tem que abraçar essa ideia de estudar sobre a capoeira, ir nos bairros, nas várias academias, que não existem apenas aqui no Patagônia”.

Série de reportagens sobre os bairros de Vitória da Conquista, desenvolvida com o apoio da Agência Mural

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