Cidade Verde deixa quase 50% dos funcionários sem salários em meio à pandemia de covid-19
226 trabalhadores tiveram os contratos suspensos e alguns deles relataram coação da empresa por meio de mensagens no Whatsapp 1 de abril de 2020 Karina Costa, Victória Lôbo e Carmen CarvalhoO motorista Leonardo Viana* não sabe como irá pagar o aluguel da casa e sustentar os seus dois filhos nos próximos quatro meses. Ele é apenas um dos 226 funcionários da Cidade Verde, empresa do transporte coletivo urbano de Vitória da Conquista, que foram surpreendidos, na última semana, com as suspensões de seus contratos de trabalho, sem direito à remuneração. Segundo a direção da empresa, a medida foi adotada em decorrência da diminuição das linhas de ônibus na cidade, diante da pandemia do novo coronavírus. A empresa tem cerca de 500 funcionários e essas suspensões representam quase 50% dos recursos humanos.
O contrato de Leonardo na empresa já durava um ano e sete meses. Na quarta-feira, dia 24 de março, ele e seus colegas receberam, em um grupo no WhatsApp, documentos que listavam os nomes do total de funcionários que deveriam comparecer a garagem da Cidade Verde, na quinta-feira (25/03), em diferentes horários: dois grupos durante a manhã, às 8h e às 10h, e outros dois à tarde, às 14h e às 16h.
Os documentos não informavam o motivo da reunião, considerada urgente. “Eles não falaram o que era aquela lista, só ficamos sabendo no dia seguinte. Chegando lá, eles disseram que todos deveriam assinar a lista para afastamento. Disseram que ficaríamos em casa quatro meses sem receber”, contou Leonardo.
A direção da Cidade Verde disse aos funcionários que não seria possível arcar com os custos de pessoal durante a pandemia de covid-19 e que, caso assinassem a suspensão de contrato, eles poderiam receber o auxílio emergencial de R$600,00 que será liberado pelo Governo Federal. “Disseram pra gente que, com o papel do afastamento, poderíamos dar entrada no benefício que o governo vai liberar, os 600 reais. Mas a gente sabe que não fazemos parte dos que irão receber esse valor porque, mesmo com afastamento, nossa carteira de trabalho está assinada”, disse Leonardo.
Maria Cardoso*, cobradora de ônibus há quase dois anos, também estava na lista dos convocados para assinar a suspensão. “É muito revoltante, eu saí daquela reunião muito mal. Eles disseram que você vai poder apresentar esse papel no financiamento da Caixa Econômica. Mas como que a gente vai receber esse valor se está registrado que ainda temos carteira assinada? Esse papel que eles deram pra gente vai servir pra isso?”, questionou.
Os funcionários entrevistados pelo Avoador disseram ainda que foram coagidos pela empresa a aceitar a suspensão de seus contratos. “Eles mandaram mensagens no grupo do WhatsApp dizendo que, quem se recusasse, era pra ir na empresa assinar a demissão. O gerente falou que ia contratar um oficial de Justiça pra levar o documento de demissão por justa causa nas nossas casas”, desabafou Leonardo. “Eles falaram: ou assina ou é demissão. Então, alguns assinaram, outros, não. O pessoal não teve outra saída”, reafirmou a cobradora Maria.
Na terça-feira (31/03), os funcionários da Cidade Verde receberam mais uma mensagem de ameaça de demissão em um grupo no WhatsApp. O texto dizia que o setor de Recursos Humanos (RH) estaria recolhendo as assinaturas para a suspensão de contrato até às 21h daquele dia, e quem não comparecesse na empresa, teria que assinar um aviso prévio de demissão.
Maria Cardoso disse que o RH chegou a mandar mensagens para os números de telefone pessoais de suas colegas. “De forma bem ríspida, disseram que elas tinham que assinar aquele documento, que o nome delas estava na lista de suspensão, junto com nomes de pessoas deficientes, gestantes. Eu acho isso tudo um absurdo, uma falta de respeito muito grande.”
MP 927/2020 e auxílio de 600 reais
A suspensão dos funcionários da Cidade Verde aconteceu três dias depois do presidente Jair Bolsonaro editar, na noite de domingo, 22, a Medida Provisória 927/2020, que altera uma série de regras trabalhistas durante a pandemia do coronavírus. A normativa foi publicada na edição extra do Diário Oficial da União e incluía o artigo 18, que possibilitava a suspensão de contrato de trabalho por até quatro meses sem remuneração. Nesse período, o empregado deveria participar de curso ou programa de qualificação profissional não presencial.
Após diversas críticas, no dia seguinte, segunda-feira, 23, Bolsonaro anunciou pelo Twitter a revogação do trecho da MP. O presidente do Sindicato dos Rodoviários de Vitória da Conquista (SINTRAVC), Álvaro Souza, disse que a Medida Provisória, mesmo que não tivesse sido revogada, não se aplicaria à situação dos funcionários da Cidade Verde. “Essa medida fez a felicidade da maioria das empresas porque os trabalhadores seriam todos prejudicados, e eles não. O que está na CLT é que o contrato só pode ser suspenso, sem direito à remuneração, em casos onde o profissional vai fazer um curso de qualificação, o que não é a realidade dessas pessoas.”
Os 226 funcionários suspensos da empresa de ônibus de Conquista também não entram no grupo de pessoas aptas a receber o auxílio emergencial de R$600,00, aprovado por unanimidade pelo Senado no dia 30 de março. O valor será concedido apenas a trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI) e contribuintes da Previdência Social. Funcionários com carteira assinada não irão receber o benefício, que será distribuído durante três meses, podendo o prazo ser prorrogado.
Após a aprovação no Senado, o auxílio foi sancionado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro, nessa quarta-feira, 1º de abril. De acordo com o chefe do executivo, esse valor deve beneficiar 54 milhões de pessoas, mas o governo ainda não anunciou o calendário de pagamento. O próximo passo do processo é um decreto para regulamentar a lei e a edição de uma MP (Medida Provisória) para liberar os benefícios.
O Sindicato dos Rodoviários de Conquista tem orientado os trabalhadores a não assinarem a suspensão dos contratos e disse que o setor jurídico da entidade já entrou com um processo no Ministério Público do Trabalho. “O auxílio funciona para os funcionários de pequenas e médias empresas e para os autônomos. Esse não é o caso dos trabalhadores do transporte coletivo de Conquista. Por isso, estamos aconselhando os que procuram o sindicato a não assinar esse documento”, explicou o presidente Álvaro Souza.
Leis Trabalhistas
O gerente de operações da Viação Cidade Verde, Geovanino Jorge Nogueira, disse que, além dos 226 suspensos, houve a rescisão de 16 contratos de experiência. “Isso foi decidido porque houve uma queda no número de passageiros no nosso sistema. Nós estamos transportando menos de 10% do que era transportado em dias normais”, justificou sobre a suspensão dos contratos de trabalho.
Quando questionado sobre a legalidade das suspensões, o gerente da empresa argumentou que a decisão se baseia nas leis trabalhistas. “Devido a pandemia, levando em conta o artigo 486 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que fala sobre as situações de crise, nós tomamos essa medida com os funcionários. Estamos tentando, junto ao governo federal, através das medidas provisórias, a liberação do seguro desemprego”. Quanto à suspensão de mulheres grávidas, Nogueira negou que fosse verdade. Já sobre as pessoas com deficiência que tiveram os contratos suspensos, não houve resposta.
Especialista em Direito e Processo do Trabalho, a advogada Priscila Menezes explicou que muitas empresas estão utilizando esse artigo como justificativa para demitir funcionários durante a pandemia de covid-19. “Em uma conversa com a imprensa, o presidente Bolsonaro falou do artigo 486, que diz sobre a responsabilidade do respectivo chefe do executivo (prefeitos e governadores) pagar indenização para comerciantes e empresários obrigados a fechar o seu estabelecimento por decisão desses governantes. Quando os empresários ouviram isso, eles quiseram demitir de acordo com esse artigo”.
Priscila esclareceu ainda que o pagamento de salários, férias, 13º e outras verbas contratuais não estão inclusas no art. 486, pois ele se restringe apenas à indenização da multa do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). “Existe uma guerra entre o presidente e alguns governadores e prefeitos sobre a questão da quarentena, então houve esse ataque na declaração do Bolsonaro. Mas é importante salientar que a maioria da jurisprudência acredita que esse artigo não se aplica à pandemia da covid-19.”
Para a advogada, a norma não deve ser utilizada durante esse período porque a pandemia global se equipara a um motivo de força maior, algo imprevisível, então é justificável que os prefeitos e governadores tenham determinado o fechamento das empresas. “Na minha opinião, esse artigo não cabe aqui, a quarentena tem o objetivo de salvar vidas, que é o princípio maior da Constituição Federal.”
Também está presente na CLT o artigo 501, que entende como força maior “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador”. Priscila disse ainda que muitos advogados acreditam na tese da força maior, mas também existem divergências sobre o assunto. Por isso, caberá aos juízes decidir. “Só vamos saber mesmo sobre a validade do artigo 486 futuramente, quando empresas e muitos trabalhadores entrarem na Justiça e o juiz tiver que decidir sobre esse caso.”
Prefeitura de Conquista
Em nota enviada ao Avoador, a Secretaria de Comunicação da Prefeitura afirmou que, segundo o art. 6º da Constituição Federal, é dever do município organizar e prestar os serviços de interesse público local, o que inclui o transporte coletivo. Portanto, cabe ao executivo municipal apenas fiscalizar as ações da empresa operadora.
A Prefeitura disse ainda que, de acordo com a lei nº 968/99, o governo municipal “não dispõe de meios legais para se interpor às relações entre a empresa e seus funcionários, tampouco em sua capacidade de admitir e demitir pessoal desde que a operadora mantenha número suficiente para a operação regular do serviço.”
A promessa
Apesar das denúncias contra a empresa, alguns funcionários disseram confiar na promessa de que todos os profissionais suspensos voltarão ao trabalho após a regularização das linhas de ônibus na cidade. Walber Oliveira, motorista na Cidade Verde há quatro anos, é um deles. “Eles estão dizendo que à medida que os carros voltarem para a rua, eles vão pegando os funcionários de volta. A situação não é fácil. A empresa não está arrecadando”.
O motorista disse também que a categoria não sabe como lidar com a situação e criticou o sindicato que representa os rodoviários. “Estão todos confusos porque o sindicato não orienta, não acha uma solução para os trabalhadores. Ele espalha o medo, então a gente ficou desorientado no começo, mas, depois de algumas reuniões, a gente entendeu que o melhor caminho foi esse”.
Funcionário do setor de videomonitoramento há três anos e um mês, Israel Alves de Oliveira Santos contou que o salário vai fazer falta, mas ele acredita que a situação vai se resolver. “Se o nosso diretor e gerente deu a verdadeira palavra que seria temporário, mesmo sendo quatro meses, eu assinei. Já fiquei um ano desempregado e, sendo deficiente, foi difícil arrumar trabalho. Graças a Deus a Cidade Verde abriu as portas para mim.”
O presidente do Sindicato dos Rodoviários (SINTRAVC), Álvaro Souza, reforçou que a orientação da entidade é que os funcionários não assinem a suspensão do contrato. “A empresa diz para os trabalhadores que, quando passar a pandemia, tudo volta à normalidade, mas ninguém dá uma garantia, nem a própria empresa pode garantir que isso realmente vai acontecer.”
Nota oficial da Cidade Verde
Na sexta-feira, 3 de abril, a assessoria da Cidade Verde entrou em contato com a equipe do Avoador para se posicionar em relação à reportagem sobre as suspensões dos funcionários da empresa. Por meio de nota, afirmou que “a Viação Cidade Verde, de maneira alguma, cometeu qualquer ilegalidade ou irregularidade.”
A empresa alegou ainda que tem até o dia 7 deste mês para efetuar os pagamentos de salários e que não cometeu, no seu entender, uma ilegalidade ao propor a suspensão de contratos de trabalho. “Nossos esforços são no sentido de evitar demissões em massa e perda de direitos por parte dos trabalhadores”, afirmou. No entanto, a reportagem não trata dos pagamentos a serem recebidos pelo trabalho realizado no mês de março, mas a partir de abril, quando os efeitos da pandemia estarão mais intensos.
A empresa também negou que tenha suspendido contratos de gestantes ou demitido 30 funcionários, informação que já havia sido noticiada em blogs da cidade e não foi enfatizada na reportagem em questão. “A empresa está impactada pela crise econômica mundial e está buscando alternativas para causar o menor prejuízo aos seus mais de quinhentos colaboradores”, diz a nota.
Segue abaixo a nota na íntegra:
*Nome alterado para preservar a identidade da fonte.
Foto de capa: Taís Patez
A Cidade Verde acabou de apagar todas as mensagens que ameaçavam os funcionários. Alguém precisa fazer alguma coisa contra esse povo! Alguém precisa denunciar.