Da crise do transporte à “Revolta do Buzu”

Aumento da tarifa de ônibus provoca indignação de usuários do transporte coletivo conquistense e desenha mais um capítulo no cenário caótico do sistema na cidade 24 de outubro de 2018 Afonso Ribas, Bárbara Francine, Victória Lôbo

Segunda-feira, 15 de outubro, quase 14 horas, um dos horários de maior concentração de passageiros no Terminal Lauro de Freitas, Centro da Vitória da Conquista. O aposentado Nicomédice José da Costa, morador do Petrópolis, entra em um ônibus da linha R24 (Centro x Cruzeiro), que até então, estava sem identificação de itinerário.

Com poucos assentos, sobra bastante espaço no veículo para passageiros irem em pé. A poeira toma conta do chão. “Aumentou a passagem e os ônibus continuam pior do que estavam”, critica. A Prefeitura Municipal tinha decretado o aumento no valor da tarifa de R$3,30 para R$3,80 na véspera do feriado do dia 12 de outubro.

Sem receber atenção dos outros passageiros, seu Nicomédice continua a resmungar. “Esses são os ônibus novos que chegaram? Ônibus ‘vei’, caindo aos pedaços”, diz, questionando a promessa feita pela Prefeitura e pela Cidade Verde, atual operadora do sistema de transporte coletivo municipal, de que chegariam carros novos para atender a demanda diária de usuários, que chega a cerca de 73 mil, conforme dados da Coordenação de Transporte.

Metade desses passageiros eram atendidos pela Viação Vitória. A empresa, que operava o lote 1 do sistema, teve 74 de seus 77 ônibus interditados pela Coordenação de Transporte Público em julho. Os veículos não ofereciam nenhuma condição para rodar na cidade.

No final de agosto, a Vitória perdeu o processo de recuperação judicial que buscava uma saída para a crise financeira que enfrentava. Logo após isso, teve seu contrato suspenso e, então, decretou falência, em setembro. Dos 54 credores que tinha, todos foram contrários ao plano de recuperação apresentado em assembleia.

Com a falência da Viação Vitória, a Cidade Verde assumiu os dois lotes do sistema de transporte coletivo conquistense. Algumas linhas, porém, foram desativadas ou tiveram seus itinerários alterados, como a D38, D41, D31 e D37. Foto: Arquivo/Site Avoador.

De acordo com o administrador judicial, Victor Dutra, a dívida da ex-operadora chega a mais de 204,4 milhões de reais. Assim, os seus bens devem ser usados para pagar trabalhadores, fornecedores e órgãos públicos. Geovanino Jorge Nogueira, gerente de operações da Cidade Verde, diz que a empresa “foi pega de surpresa” com a saída da Vitória. O acordo firmado com a administração municipal previa a chegada de 60 ônibus. Dez veículos zero km também foram prometidos para novembro.

A Coordenação de Transporte garante que todos os ônibus prometidos pela Cidade Verde no acordo já estão operando, o que deixa a frota do sistema com um total de 146 veículos, 17 a menos de quando a Vitória operava. Mas a realidade dos usuários aponta em outra direção. Nicomédice afirma: “Os ônibus que vão para os bairros periféricos continuam todos ruins”.

Além disso, o idoso, que é beneficiário da isenção de passagem, aponta: “Como é que aumenta 0,50 centavos na passagem, pelo amor de Deus? Eu não pago, mas tem alguém pagando por mim, o trabalhador. Não acho justo o passageiro pagar o atual valor para fazer rotas com distâncias tão pequenas entre bairros como o Centro e o Alto Maron”. Segundo ele, o prefeito Herzem Gusmão lançou o decreto de aumento da tarifa “na calada da noite”.

60 ônibus foram prometidos pela Cidade Verde para suprir a demanda de usuários anteriormente atendida pela Viação Vitória. Todos os ônibus já estão operando, segundo a Coordenação de Transporte. Porém, problemas como superlotação, atrasos e não cumprimento de horários permanecem, segundo usuários. Foto: Avoador.

Duas semanas antes, a equipe de reportagem do Avoador perguntou ao coordenador de Transporte Público do município, Jackson Yoshiura, se havia a chance real de aumento no valor da tarifa, que até então, era “uma possibilidade”. “O município está atuando para impactar o mínimo possível no bolso do conquistense”, dissera durante a entrevista, na Secretaria de Mobilidade Urbana.

A isenção do ISS (Imposto Sobre Serviços) para a Viação Cidade Verde foi uma das “medidas internas” anunciadas pelo prefeito Herzem Gusmão para reduzir o impacto no valor da tarifa para os usuários do transporte, nos contou o coordenador. Porém, a decisão deve passar pela aprovação da Câmara de Vereadores.

Na ocasião, Jackson também “desmentiu” a informação divulgada por blogs da cidade de que o valor da passagem aumentaria para R$4,15. Esse boato, que gerou manifestações no Terminal Lauto de Freitas em agosto, parecia esquecido pelos conquistenses, que foram surpreendidos quando a virada no custo da passagem foi de fato anunciada.

Desde que o sistema de transporte coletivo passou a funcionar, em 2011, já ocorreram quatro reajustes. De lá para cá, o aumento no valor da passagem foi de aproximadamente 45%. O preço atual em Conquista chega a ser maior do que em diversas capitais, bem como a taxa de aumento da tarifa ocorrida em 2018.

 

O contrato de licitação do transporte coletivo, em Conquista, determina que seja feito, uma vez por ano, uma análise dos estudos tarifários – realizados mensalmente, segundo a Coordenação de Transporte – para verificar se deverá ocorrer ou não o reajuste da tarifa, a fim de garantir o equilíbrio econômico das empresas que prestam o serviço. Essa, inclusive, foi uma das exigências colocadas pela Cidade Verde para que a empresa assumisse o lote que pertencia à Vitória, de acordo com Jackson.

Jackson Yoshiura, coordenador de Transporte Público do município. Foto: Arquivo/Site Avoador

No áudio abaixo, o coordenador de Transporte Público, Jackson Yoshiura, explica como é realizado esse estudo tarifário e os fatores que interferem no reajuste do valor da passagem:

Revolta do Buzu

Na mesma segunda-feira em que a equipe do Avoador entrevistou seu Nicomédice, uma manifestação marcada para as 11 h, no Terminal Lauro de Freitas, não aconteceu. Mas, por volta das 18h30, integrantes de movimentos sociais e estudantes secundaristas se reuniram em plenária na Praça Guadalajara, conhecida como Praça da Normal, para debater o aumento da tarifa e pensar em estratégias para derrubar a decisão da Prefeitura.

Um dos primeiros a chegar no local foi o estudante de Cinema, Mateus Oliveira, morador do Lagoa das Flores, um dos bairros mais distantes da cidade, onde, segundo ele, “o sistema é mais precarizado”. Enquanto aguardava o início da reunião, ele relatou que a população do bairro chegou a ficar quase dois meses sem ônibus depois que a Viação Vitória teve seus veículos lacrados.

Agora, por ordem da Prefeitura, micro-ônibus estão circulando por lá para atender os moradores. Contudo, segundo Mateus, o caos continua o mesmo. “Os micro-ônibus estão rodando lá dentro, pegam o pessoal, já passando atrasado. Chegam no Centro Industrial e a gente tem que descer para pegar um outro ônibus. Às vezes, temos que esperar 15 a 20 minutos até esse outro ônibus chegar pra gente poder embarcar, o que é um grande desgaste. Isso tudo acaba atrapalhando muito o nosso cotidiano”. Para o estudante de Cinema, é injusto que haja um aumento no valor da tarifa do transporte diante da atual situação. “Se eles não mantêm o mínimo de qualidade do transporte, pra que o aumento?”.

Estudantes secundaristas e universitários encabeçam o movimento “Revolta do Buzu”. Foto: Arquivo/Site Avoador.

Essa é a mesma reclamação dos outros usuários do transporte que encabeçam o Movimento “Revolta do Buzu”. “Até hoje a Cidade Verde não colocou a quantidade de ônibus que tinha na cidade”, criticou Eline Luz, integrante da União da Juventude Comunista (UJC), durante a plenária. Já o membro do Diretório Central de Estudantes da Uesb (DCE), Fausto Lima, disse que é preciso trazer os trabalhadores para o lado dos estudantes por meio do diálogo de base, para barrar o aumento da tarifa.

Após deliberação da plenária, o Movimento protocolou, na quarta-feira, 17 de outubro, uma carta denúncia no Ministério Público (MP), contestando a legalidade do aumento no valor da passagem e solicitando a abertura de investigação sobre o caso. Representantes dos movimentos Negritude Socialista Brasileira, Juventude Socialista Brasileira, Coletivo Juventude das Flores, Juventude do Partido dos Trabalhadores, Coletivo LGBT Socialista, além estudantes secundaristas e universitários, participaram da entrega da carta ao MP.

De acordo com o documento, a Prefeitura Municipal cometeu abuso por não ter consultado o Conselho Municipal de Transportes, órgão representativo popular, antes de tomar a decisão de aumentar o valor da tarifa. A denúncia do Movimento se respaldou na Lei n.º 1.291/2005, que regula o papel consultivo do Conselho em questões como o orçamento anual para o transporte público de passageiros e, sobretudo, os estudos tarifários e projetos alternativos de arrecadação.  O Avoador entrou em contato com o MP para obter mais informações sobre o assunto, porém, até o fechamento desta reportagem, não houve resposta.

Para fortalecer a mobilização contra o aumento da tarifa, o Movimento Revolta do Busu organizou um protesto na quinta-feira, 18, no Terminal Lauro de Freitas. A manifestação contou com o apoio Sindicato do Magistério Municipal Público (SIMMP). Estudantes secundaristas e universitários fecharam alguns pontos do Terminal, impedindo a circulação de veículos.

Durante o ato, os manifestantes criticaram as decisões do prefeito Herzem Gusmão em relação à crise do transporte e protestaram contra a superlotação, os atrasos dos veículos e, principalmente, contra o aumento da passagem. Confira no vídeo:

O Movimento Revolta do Buzu também considera que a ocupação dois dos lotes do sistema de transporte pela Cidade Verde se configura como monopólio, por garantir a empresa o privilégio de lucrar, sozinha, pelo serviço prestado ao município. Para os integrantes do Movimento, trata-se de um comércio abusivo, que beneficia a operadora. Eles afirmam que o sistema foi entregue nas mãos da Cidade Verde.

Segundo a Coordenação de Transporte, essa interpretação foi afastada, em um primeiro momento, pela questão emergencial posta pela crise. “O transporte, na verdade, é um monopólio do município, que possui o direito e a obrigação por esse tipo de serviço”, disse o coordenador Jackson Yoshiura. Ainda de acordo com ele, futuramente, será feita uma análise pelo município, Procuradoria e pelas empresas que irão participar do próximo processo licitatório, para saber se a Cidade Verde poderá, ou não, ocupar os dois lotes de maneira definitiva. Na ocasião, Yoshiura não citou o Conselho Municipal de Transportes.

Geovanino Nogueira, gerente de operações da Cidade Verde: “Se a Prefeitura lançar edital para o lote 1, a Cidade Verde vai se candidatar com certeza”. Foto: Arquivo/Site Avoador.

O gerente de operações da operadora, Geovanino Nogueira, deixou claro em entrevista à equipe do Avoador que a empresa tem interesse em permanecer operando os dois lotes. “Se ela já se manifestou em deslocar os veículos para cá para atender de forma emergencial, por que não atender permanentemente? Se a Prefeitura lançar edital para o lote 1, a Cidade Verde vai se candidatar com certeza”, afirmou.

Processo contraditório

Na prática, todos os dois lotes do sistema de transporte conquistense devem novamente ser licitados pela Prefeitura Municipal. Isso porque, antes da interdição dos ônibus da Viação Vitória, tudo indicava que a Cidade Verde era quem estava prestes a deixar de operar o lote 2 do sistema. Em maio, a empresa foi condenada a ressarcir os cofres municipais por conta de fraude no processo de licitação de 2013, denunciada pelo vereador Arlindo Rebouças.

Ao município, o juiz Ricardo Frederico Campos, autor da liminar, deu o prazo de seis meses para que fosse aberta uma nova licitação para o segundo lote, coisa que, inclusive, o prefeito Herzem Gusmão fez a partir de um decreto publicado no dia 29 de junho. Se tudo ocorrer conforme a decisão judicial, a Cidade Verde deixará de operar antes mesmo do fim do contrato emergencial para o lote 1, que se estenderia até fevereiro do próximo ano. Isso só não acontecerá caso a empresa derrube a liminar da 1ª Vara da Fazenda Pública de Vitória da Conquista, já que ainda existe a possibilidade de interpor recurso.

Apesar de ocupar os dois lotes do sistema de transporte em Conquista, a Cidade Verde deixa de operar ainda em novembro por conta de sentença que a condenou por fraude licitatória. Foto: Arquivo/Site Avoador.

De acordo com Jackson Yoshiura, o processo licitatório para o segundo lote continua aberto e a Prefeitura está adotando todas as medidas determinadas pelo juiz. “Decisão judicial não se descumpre. A comissão foi formada, a análise do processo já está sendo feita e está quase concluída. Mas também não é possível concluir em seis meses, e isso será apresentado para o juiz em momento oportuno. É importante que a tenhamos em mente que, antes da possibilidade de ser ou não fraude, existe algo muito maior, que é a questão de interesse público. Temos cerca de 70 mil pessoas que dependem de transporte público para circular em Vitória da Conquista”, afirmou o coordenador.

O gerente de operações da Cidade Verde disse que a empresa vem operando normalmente e que, com a assinatura do contrato emergencial, espera garantias da Prefeitura em relação a essa questão. “A Cidade Verde deve permanecer, até porque estamos fazendo um investimento altíssimo agora no mês de novembro com a aquisição dos 10 carros novos. Isso não é nada barato, e se a nossa matriz em Maringá se deslocou até aqui pra fechar um acordo, trouxe 60 veículos e agora vai adquirir mais 10, algo de bom deve estar acontecendo”, comentou, não nos respondendo, diretamente, como a empresa tem lidado com a liminar.

“Enquanto não transitar em julgado e a Cidade Verde for obrigada a sair do município, para nós ela continua sendo uma prestadora de serviço como outra qualquer. Se o juiz determinar [a saída da empresa], o município vai adotar as medidas legais cabíveis para que a gente a substitua nos dois lotes”, garantiu o coordenador de Transporte.

Quando à licitação do lote 1, Jackson relatou que, além da Cidade Verde, quatro empresas declararam, até então, ter total interesse em participar do processo, que deverá ocorrer após o fim do atual contrato emergencial. Ele comentou também que a participação da Cidade Verde nesse processo licitatório, caso ela derrube a sentença judicial, terá que ser avaliada, considerando às normas do município que regulam o transporte coletivo.

Usuária do transporte coletivo em Conquista aguarda saída do ônibus durante manifestação do Movimento “Revolta do Buzu”. Foto: Arquivo/Site Avoador.

Enquanto a Prefeitura não resolve a situação do transporte, regularizando as rotas anteriores e cobrando a melhoria dos veículos da atual empresa, os usuários do serviço continuam a sofrer diariamente com incômodos e dificuldades para chegar aos seus destinos. Seu Nicomédice, durante o trajeto até o seu bairro Petrópolis, é um representante do desânimo geral da população que não sabe mais a quem recorrer. “Apelar para quem?. Os estudantes fazem manifestações, mas não adianta? Ninguém dá atenção”, conclui.

Foto destacada: Arquivo/Site Avoador

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *