Dia da Consciência Negra: desafios e avanços no combate à desigualdade racial, econômica e educacional

Pela a primeira vez na história do Brasil, a data comemorativa da Consciência Negra é feriado nacional 20 de novembro de 2024 Denilson Soares

Nesta quarta-feira, dia 20 de novembro, pela primeira vez na história do Brasil, a data comemorativa da Consciência Negra é comemorada em feriado nacional. Na Bahia, de acordo com a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), de 2023, 79,5% da população do país se declara negra ou parda. Apesar dos avanços conquistados pela comunidade negra, os desafios para desconstruir 300 anos de exclusão são muitos, como a superação do racismo e da desigualdade social e econômica, na comparação com os brasileiros brancos.

A análise da SEI revela ainda que as desigualdades vivenciadas pela população negra baiana. Na educação, apenas 9,7% dos negros com 25 anos ou mais têm 16 anos de estudo, comparado a 17,7% dos brancos. No mercado de trabalho, a taxa de desocupação entre negros foi de 13,8%, contra 10,1% de brancos, sendo as mulheres negras quem enfrenta a maior taxa, de 18,6%. A informalidade afeta 54,3% dos negros, superando os 51,1% dos brancos.

O rendimento médio mensal de negros ocupados foi de R$ 1.662 em 2023, enquanto os brancos receberam, em média, R$ 2.365. Essa diferença de 42,3% se amplia quando se analisa o recorte de gênero. Mulheres negras ganharam, em média, R$1.550, enquanto as mulheres brancas receberam R$2.326, o que significa que mulheres negras  tiveram um rendimento 50,1% menor.

No Brasil, de acordo a pesquisa da Global Kantar Insights, divulgadas pela Agência Brasil, em 2023, seis em cada 10 negros sofreram discriminação por conta da cor da pele. Nos dados do Atlas da Violência, de 2022, 76,5% das vítimas de homicídios são de pessoas negras.   

Segundo a pedagoga e mestre em Relações Étnicas e Contemporaneidade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), Estela Santos, o racismo estrutural é a causa de todas as outras formas de racismo sofridas pela população negra no Brasil, como o racismo intelectual. “O racismo estrutural configurou e mantém uma estrutura social que sustenta a violação física, psíquica, material e cultural da população negra.”   

Pedagoga e mestre em Relações Étnicas e Contemporaneidade pela Uesb, Estela Santos

Essas mazelas vivenciadas pela população negra, de acordo com  professor de Filosofia e Sociologia, Flávio Passos,  tem sido visibilizadas graças a luta do Movimento Negro Unificado (MNU), que tem se organizado e atuado desde 1978.  É o movimento que tem desconstruído mitos como a democracia racial e a suposta cordialidade nas relações sociais e raciais, principalmente no período pós-abolição. “O movimento negro cumpre o papel de pensar o conceito de racismo, especialmente o estrutural, e compreender como ele se manifesta nas relações interpessoais, que são um problema a ser resolvido”, disse o professor.  

O racismo é uma realidade que muitos precisam enfrentar desde pequenos. É o caso do professor do curso de Matemática da Uesb, Lucas Venâncio, um homem negro, que já na infância e na adolescência na escola particular onde estudava percebeu que era tratado diferente. “Quando eu ia procurar estágio, percebia que meus amigos brancos sempre tinham mais facilidade em conseguir. Eu enfrentava mais dificuldades e, por consequência, precisava me preparar muito mais para as vagas.” 

Essa mesma experiência de racismo tem sido compartilhada pela estudante de Ciências Sociais, Ivanete Oliveira. Segundo ela, frequentemente é abordada na rua por pessoas que fazem comentários negativos sobre o seu cabelo. “Eu não fico calada. Sei que racismo é crime e denunciar todas as vezes que alguém pratica esse preconceito contra mim.”

Professor do curso de Matemática da Uesb, Lucas Venâncio

Políticas públicas

Por meio das lutas do movimento negro, políticas têm sido implementadas no Brasil para modificar a realidade de exclusão e desigualdade da população negra. Entre elas, destaca-se a Lei de Cotas, estabelecida pela Lei nº 12.711/2012, que reserva 50% das vagas em universidades públicas e institutos federais para estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. As vagas são subdivididas por critérios socioeconômicos e raciais, promovendo a inclusão social e reduzindo desigualdades no acesso ao ensino superior.  

Estudante de Ciencias Sociais da Uesb, Ivanete Oliveira

Na Uesb, as políticas de cotas existem desde 2008, quando a universidade implantou o sistema de reservas de vagas em seu Vestibular para pessoas negras e pardas, além de estudantes de escola pública. A estudante Ivanete Oliveira, que ingressou na instituição em 2019 por meio desse sistema, resolveu estudar a trajetórias de estudantes negras no curso de Ciências Sociais para mostrar o quanto isso tem mudado a vida das pessoas negras.  “As cotas foram um marco para a sociedade brasileira. Elas possibilitaram que milhares de estudantes negros acessassem o ensino superior, sendo uma ferramenta para reduzir desigualdades na educação e também uma forma de reparação histórica.” 

O professor Flávio Passos destacou ainda o quanto as cotas raciais desafiam o mito da meritocracia. “Todos somos capazes de ocupar os mesmos lugares. As cotas dão aos estudantes negros a possibilidade de ingressar no ensino superior, algo que antes da implementação dessa política era quase impossível em cursos seletivos, como medicina.”  

Professor de Filosofia e Sociologia, Flávio Passos

Outro marco importante é a Lei nº 12.990/2014, que estabelece cotas raciais no serviço público federal, reservando 20% das vagas em concursos públicos para candidatos negros.  

A Lei 10.639/2003 também representa um avanço, ao tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio. Para a professora Estela Santos, antes da lei, havia poucas iniciativas nas escolas voltadas à valorização da cultura africana e afro-brasileira. “A Lei 10.639 foi, sem dúvida, a maior conquista do Movimento Negro Unificado (MNU). Após sua implementação, houve um aumento expressivo de negros nas universidades e em cargos públicos, além de um impacto positivo na formação de professores e gestores escolares.”  

O professor Flávio Passos defende ainda a existência de uma educação antirracista para complementar as políticas afirmativas, como as cotas. “É essencial que as cotas sejam acompanhadas por uma educação descolonizada, étnico-referenciada, que consiga romper com uma lógica eurocêntrica e socialmente branca”, disse.  

No campo jurídico, a inclusão da injúria racial como crime no Código Penal, em 2003, tem um marco importante, com penas de reclusão de um a três anos, além de multa. O Estatuto da Igualdade Racial, aprovado em 2010, consolidou uma base legal mais ampla para assegurar direitos e combater a discriminação racial em diversas áreas, como saúde, educação e trabalho.  

20 de Novembro: Feriado Nacional pela Primeira Vez

O Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, foi declarado feriado nacional pela primeira vez em 2023. A medida foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 21 de dezembro de 2023, por meio de uma atualização da Lei nº 12.519/2011.  

A escolha da data homenageia Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, morto em 1695. Proposta na década de 1970 por movimentos negros, a data representa a resistência e o protagonismo negro na construção da sociedade brasileira, contrastando com o 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura, que é visto pelo movimento negro como uma celebração incompleta e insuficiente.  

Para o professor Lucas Venâncio, o feriado é uma oportunidade de reflexão. “Sempre penso no que meu pai, também negro, fez por mim. Ele sempre se esforçou muito para me proporcionar a melhor educação possível e garantir oportunidades que ele mesmo não teve.”  A luta pela igualdade racial é desigual que a data comemorativa tem por trás deveria ser de todos os brasileiros, mas são os mais afetados que, em grande parte, impulsionam as mudanças. “O antirracismo é, muitas vezes, produzido por pessoas negras e indígenas. Assim como a luta contra a LGBTfobia parte da comunidade LGBTQIAPN+, e a luta de gênero é conduzida por mulheres cis e trans. Ou seja, lutamos para derrubar estruturas como se fôssemos nós os responsáveis por produzi-las” , enfatizou a professora Estela.

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