Mineradoras ameaçam comunidades tradicionais no Sertão baiano

Moradores dos Fundos de Pasto resistem à exploração de minério que ameaça o Semiárido e a preservação da Caatinga 21 de setembro de 2023 Nathallia Fonseca

“A mineradora não comprou a roça de ninguém, porque aqui não tem roça. Não tem cerca. Os bichos são criados soltos”, diz Josineide Laurindo, liderança da comunidade tradicional de Fundo de Pasto de Caboclo, na zona rural de Juazeiro, no semiárido baiano. Há pelo menos 200 anos, a área é utilizada comunitariamente por famílias de pequenos produtores rurais. A chegada de uma grande mineradora iniciou uma disputa judicial entre a empresa e as 16 famílias que ocupam o território, e que resistem à exploração da região há pelo menos cinco anos.

Os bichos criados soltos e livres, como descreve Josineide, são a principal característica dos chamados Fundos de Pasto – comunidades tradicionais do Sertão, onde famílias dividem uma área comum para criação de animais. Essa liberdade ainda presente no território tem sido ameaçada desde 2017, quando a empresa Pedras do Brasil S/A iniciou tentativas de exploração de minério no Caboclo com uma visita de estudo de campo.

“Chegaram três pessoas, sem crachá nem nada, querendo saber de quem eram as terras. Passaram uns quatro dias por aqui, indo diariamente à serra [Serra Grande, principal formação rochosa dentro do território]. Explicamos que era um lugar de preservação ambiental”, lembra Josineide. Em 2019, a Pedras do Brasil retornou ao local com maquinário para extração de quartzito, uma rocha muito utilizada na construção civil e que é abundante na região. A mineradora alegou ter comprado parte das terras, mas os moradores questionam a venda da área por um único posseiro, acusado de forjar documentação. Eles buscaram o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e conseguiram, junto ao órgão, a abertura de um inquérito.

  • Josineide Laurindo, liderança da comunidade tradicional de Fundo de Pasto de Caboclo Foto: Júlia Vasconcelos/Agência Pública

  • Na comunidade os animais são criados soltos, relata Josineide. Foto: Júlia Vasconcelos/Agência Pública

As atividades da mineradora foram suspensas pelo MP-BA, diante da exigência do direito à consulta prévia da comunidade atingida, prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No lugar onde a mineradora se instalou, ainda existe uma placa que indica “entrada e saída de veículos pesados”. A trilha aberta pelas máquinas, com o objetivo de facilitar o trajeto pelo pasto até o cume da serra, onde ocorreria a lavra de recursos minerais, ainda é vista.

Em julho deste ano, a Pedras do Brasil fez uma nova investida para ingressar no Caboclo. Eles abriram um processo no Tribunal de Justiça do estado da Bahia (TJBA) contra Associação Comunitária Tradicional de Fundo de Pasto de Caboclo (ACTFPC) e contra o município de Juazeiro, que suspendeu a licença anterior a partir da provocação do MP. No processo, a empresa pede o “suprimento judicial do consentimento”. Ou seja, que as atividades iniciem sem que os moradores sejam consultados, o que vai de encontro à exigência da OIT. O processo do TJBA ainda está em andamento, sem previsão para conclusão.

“Eles diziam que não iam causar desmatamento nem explosões, mas só o barulho das máquinas já assustou muito os animais, que não estão acostumados com esse tipo de estresse. Alguns fugiram. Os bichos de caça [animais menores que não fazem parte da criação] foram para a pista”, explica Ivonete Laurindo, membro da associação de defesa da comunidade e irmã de Josineide. “A pista que abriram também passou exatamente pelo local que as ovelhas faziam de dormitório. Elas precisaram encontrar outro”, acrescenta.

Um umbuzeiro, árvore típica do bioma Caatinga, é descrito por ela como um sobrevivente: “esse aqui, graças a Deus, ficou. Quando é tempo de umbu, a gente vem colher e depois vende na cidade”, diz. O eventual lucro das frutas é dividido entre as famílias que participaram do processo, seguindo a premissa de que o território é coletivo. “Muitas pessoas desrespeitam a Caatinga como se a vegetação fosse só seca, como se não estivesse viva”, diz Ivonete.

Foto: Júlia Vasconcelos/Agência Pública

Ivonete mostra umbu que sobreviveu à ação da mineradora. Foto: Júlia Vasconcelos/Agência Pública

 

Ivonete caminha de costas para a câmera em direção à sua casa

Foto: Júlia Vasconcelos/Agência Pública

Ivonete mostra umbu que sobreviveu à ação da mineração no território

Ivonete mostra umbu que sobreviveu à ação da mineradora. Foto: Júlia Vasconcelos/Agência Pública

“A comunidade de Caboclo trabalha em sua legítima defesa. Muitas pessoas falam sobre o documento que garante a terra, o território, mas o respeito ao direito de posse só é possível com a resistência ativa desses povos. Nós sabemos que comunidades tradicionais precisam lutar para continuar existindo e não desaparecer”, comenta Zacarias Rocha, presidente da União das Associações de Fundo de Pasto e morador do território de Areia Grande. “Muitas outras comunidades tradicionais acreditaram em promessas de mineradoras e hoje se arrependem. Os moradores de Caboclo estão tentando evitar esse destino”, diz.

Ivonete Laurindo conta que a organização política da comunidade, predominantemente liderada por mulheres, surgiu apenas a partir da chegada da mineradora. “Antes disso não precisava. Eram questões internas e isso se resolvia ouvindo os mais velhos”, diz.

Em nota enviada à Agência Pública, por meio da assessoria jurídica, a mineradora Pedras do Brasil S/A informou que realizou estudos na comunidade de Caboclo e que “as pesquisas ocorreram após acordo particular firmado com pessoa que se identificou como posseira do imóvel, apresentando documentação comprobatória”. Já o início dos trabalhos de mineração em 2019, interrompido dois dias depois, ocorreu, segundo a empresa, com uma licença concedida pelo município de Juazeiro.

A mineradora também aponta que o requerimento para pesquisa mineral na área foi obtido em 2015, antes do reconhecimento da comunidade como Fundo de Pasto, que ocorreu em 2018. A respeito do processo que pede “suprimento judicial do consentimento da comunidade”, a empresa argumenta que “a licença municipal anteriormente concedida foi cancelada sem o amadurecimento do contraditório pelo Município”.

Mineradoras deixam rastro de violência e desmatamento na Caatinga

De acordo com um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Sertão baiano – onde está concentrada a grande maioria das comunidades de Fundo de Pasto – chega a ter 90% da sua área mapeada para exploração mineral. No povoado de Angico dos Dias, no município de Campo Alegre de Lourdes. a 443 km da área rural de Juazeiro, uma outra comunidade de Fundo de Pasto está ameaçada pela mineração.

Desde 2005, cerca de 400 famílias convivem com a Galvani Fertilizantes, uma empresa que explora o fosfato mineral na região. O desmatamento é a principal preocupação. De acordo com o MapBiomas Brasil, que observa o desmatamento em diferentes áreas, entre 2020 e 2021 houve um salto de 87% nas ações de desmatamento da Caatinga. O levantamento utiliza, entre outras ferramentas, um alerta a partir de imagens de satélite. A Caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro. Apesar disso, não é reconhecido como patrimônio nacional.

Mineração em Santo Sé

Ação das mineradoras em Angico dos Dias tem gerado conflitos no território. Foto: Thomas Bauer/CPT

Os moradores de Angicos denunciam explosões para extração do minério. Em 2019 as ações da mineradora Galvani chegaram a causar rachaduras em casas e cisternas que armazenam água na região, conhecida como “polígono das secas”. Edinei Soares, presidente da associação comunitária de Fundo de Pasto das comunidades de Angico dos Dias e Açú, diz que os danos sociais da chegada das mineradoras à comunidade são graves. “Isso traz coisas que não existiam no nosso modo de viver. A violência. Não existiam essas tentativas de invasão e grilagem de terra”, diz.

No último dia 2, dois moradores da comunidade e um membro da Comissão Pastoral da Terra de Juazeiro foram baleados em Angicos. A Polícia Civil afirma que a ocorrência é investigada como tentativa de homicídio motivado por um conflito agrário. Na semana anterior ao crime, o Fórum de Entidades Populares de Campo Alegre de Lourdes publicou uma carta aberta com o objetivo de “denunciar a tentativa de grilagem de terras” no território tradicional de fundo de pasto Angico dos Dias, formado pelas comunidades Angico dos Dias, Açu, Baixão Novo, Baixão Grande e Baixãozinho. “Há seis dias, os/as trabalhadores/as rurais estão convivendo com pessoas estranhas em seu território, seguranças particulares armados e ameaças constantes”, diz o documento.

A ocorrência em Angico aconteceu apenas três dias depois que o pedido da análise prévia sobre a mineradora em Caboclo foi pauta em uma reunião do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Juazeiro. na ocasião, quando a grande maioria dos órgãos conselheiros criticaram as ações de grandes empresas já consolidadas em territórios tradicionais. Durante o encontro, a agricultora Ivonete Laurindo, representante dos moradores de Caboclo, disse estar “com medo de sofrer ameaças”.

“Com a vinda dos empreendimentos de grande porte para explorar nossas riquezas naturais, outras coisas chegam também: a ganância, a consequente grilagem, os conflitos por terra. Nós temos medo disso também, além da degradação da caatinga. Vivemos com medo de até onde essa pressão pode ir, porque sabemos que territórios aqui perto passam por violência armada neste momento. São pessoas que vêm de fora e muitas vezes não respeitam o modo de vida da comunidade”, diz Alane Naiara, membro da Associação de moradores.

Após  publicação da reportagem,  a Galvani enviou a seguinte nota:

“A Galvani esclarece que não pratica desmatamento. Todas as supressões de vegetação realizadas em Angico dos Dias (BA) seguem rigorosamente os parâmetros legais e sempre foram precedidas de autorizações concedidas pelo Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), órgão competente. Importante ressaltar que a Galvani mantém uma área relevante de Caatinga preservada como Reserva Legal e que todas as áreas suprimidas são recuperadas, conforme previsto no Programa de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD) da unidade.

Em relação à operação em Angico dos Dias, a Galvani informa que todos os desmontes de rochas realizados para extração de concentrado fosfático na unidade utilizam técnicas modernas, cujos níveis de vibração e ruído se mantém abaixo do previsto pela Lei. Vale salientar também que todas as operações cumprem a legislação e são realizadas com prestadores de serviços que possuem expertise em desmonte de rochas, com as devidas autorizações junto aos órgãos competentes.

A Galvani ressalta ainda que não tem qualquer relação com processos de grilagem ou invasão de terra na região. A empresa condena as ações e assegura que a unidade de mineração de rocha fosfática de Angico dos Dias não tem qualquer relação com as áreas em disputa.

Importante mencionar que a Galvani atua em Angico dos Dias desde 2005, produzindo concentrado fosfático, utilizado como matéria-prima para a fabricação de adubos amplamente aplicados na agricultura nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Ao longo de quase 20 anos de atuação na região, a empresa tem contribuído com a comunidade, não apenas pela geração de renda, com seus mais de 200 empregos diretos, mas também pelo investimento no desenvolvimento comunitário. São inúmeros projetos apoiados, com iniciativas de empreendedorismo, valorização da cultura local e outras temáticas, impulsionadas pela empresa e pelo Instituto Lina Galvani, e que ajudam a conectar diferentes pessoas com diferentes formações e experiências de vida para trabalharem juntas em prol do desenvolvimento das comunidades.”

Alane, membro da associação de moradores relata medo dos impactos da mineração

“Vivemos com medo”, diz Alane, membro da associação de moradores Foto :Júlia Vasconcelos/Agência Pública.

Primeiro as barragens, agora as mineradoras

No dia 1 de setembro, o Grito dos Excluídos tradicionalmente organizado pela Comissão Pastoral da Terra na cidade de Juazeiro, na Bahia, ocorreu em outro município baiano, Sento-Sé. O objetivo era oferecer suporte às comunidades tradicionais atingidas pela mineração na região. Em cartazes que circundaram a praça da cidade, o mesmo assunto se repetiu: primeiro as barragens, agora as mineradoras. “Muitas das nossas famílias foram expulsas para a construção da barragem de Sobradinho. Nunca recebemos nada por isso. Agora, nos sentimos mais uma vez retirados de um território”, conta o agricultor Antônio dos Santos, da comunidade tradicional de Areia Branca.

Moradores das comunidades tradicionais da região durante o Grito dos Excluídos, evento tradicionalmente organizado pela Comissão Pastoral da Terra

Moradores das comunidades tradicionais da região participaram do Grito dos Excluídos, evento tradicionalmente organizado pela Comissão Pastoral da Terra. Foto: Nathallia Fonseca/Agência Pública.

A barragem de Sobradinho foi construída há 40 anos pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). Com cerca de 320km de extensão, o reservatório inundou quatro cidades: Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento-Sé, uma das mais atingidas, que precisou ser inteiramente reconstruída numa nova área. Estima-se que 72 mil pessoas foram deslocadas compulsoriamente entre os anos de 1972 e 1978. Em março deste ano, uma determinação do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) entendeu que 164 pessoas, responsáveis por uma das inúmeras ações contra a Chesf, devem ser indenizadas por danos morais. O valor ainda está sob análise.

Antônio dos Santos era uma criança quando Sobradinho mudou sua família de lugar. Hoje ele diz “perder o sono” diante da quantidade de poeira de minério, que conforme contam agricultores locais, chega a prejudicar plantações. Ele também se diz assustado com o aumento de conflitos na região, registrados a partir da chegada da mineradora Tombador Iron em Sento-Sé. Desde 2019, quando obteve uma licença de cinco anos do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) durante a pandemia da Covid-19, a empresa australiana de capital aberto explora o minério de ferro na região próxima a 12 comunidades ribeirinhas, na borda do lago de Sobradinho e do Rio São Francisco.

De acordo com o mapa de conflitos, da Fiocruz, que estuda o território, a Iron Mineração teve as pesquisas minerárias na região reprovadas três vezes pela Agência Nacional de Mineração (ANM): em 2011, 2014 e 2018. Teria contribuído para a decisão “a inexistência de tecnologia adequada para o aproveitamento econômico do mineral”. A aprovação do relatório ocorreu apenas em 2020, após a concessão do direito de uso do solo à mineradora por parte da Prefeitura de Sento-Sé.

Em janeiro, moradores das comunidades bloquearam a rodovia BA-210, que dá passagem aos caminhões da empresa, para protestar contra os impactos da mineração e exigir pavimentação da estrada que liga as comunidades à sede do município de Sento-Sé. segundo os moradores, a falta de asfalto na rodovia, combinado ao intenso tráfego de carretas para escoação do minério, aumenta os prejuízos e riscos de acidentes. Pescadores também se mostraram preocupados com eventuais danos causados pela mineração a céu aberto ao Rio São Francisco e aos lençóis freáticos. O protesto durou 12 dias e foi suspenso depois de uma liminar que alegava o direito de ir e vir da empresa.

O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos não respondeu os questionamentos da reportagem até a publicação.

Em nota enviada após a publicação, a Tombador Iron afirma que “desde o início das atividades no município de Sento Sé, a Tombador Iron sempre esteve rigorosamente em dia com as licenças ambientais” e diz “manter suas portas abertas” para visitação e diálogo das comunidades locais. Confira na íntegra aqui.

Reportagem republicada da Agência Pública de Jornalismo Investigativo em parceria com o site Avoador

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