Motoboys não têm direitos trabalhistas e sofrem com acidentes em Conquista

Entre os desafios diários dos entregadores está colocar a própria vida em risco para atender aos pedidos dos clientes 15 de outubro de 2021 Beatriz Oliveira, Leiane Oliveira e Mikhaelle Piagio

Em meio à pandemia da covid-19, eles ganharam visibilidade e tornaram-se essenciais para garantir a entrega de produtos para quem estava isolado em casa. Mesmo com mais reconhecimento da população, a categoria dos trabalhadores de delivery via motos ou bicicletas não conquistou melhores condições de trabalho e direitos trabalhistas e tem convivido cada vez mais com um maior número de acidentes no trânsito entre os profissionais. Essa é uma realidade enfrentada em diferentes lugares do Brasil que também tem sido constatada em Vitória da Conquista.

De acordo com Daniel Santos Silva, de 24 anos, conhecido como “Vovózona”, que atua como motoboy na cidade há quatro anos, o fechamento dos estabelecimentos comerciais durante a quarentena trouxe um aumento da demanda por entrega e, com isso, os serviços aumentaram tanto nas distribuidoras quanto em outros setores individuais como de calçados e medicamentos. “E a gente ganhou mais trabalho e visibilidade.”

Para o colega motoboy Jônatas Lima Borges, de 26 anos, a atividade nunca recebeu a devida atenção, mas, com a pandemia, a importância da categoria se tornou evidente. “Antes ninguém ouvia falar de motoboy. Não existia charge, não tinha figurinha, brincadeira. Antes o motoboy era aquela figura que ganhava uma marmitinha ali, não existia bag, não existia nada. Depois da pandemia, os motoboys, eu diria, passaram a receber um grande destaque”.

Essa visibilidade veio pelo aumento da demanda, que também gerou mais pressão em cima dos entregadores de delivery e aumentou a corrida contra o tempo dos trabalhadores para atender aos clientes. “Somos grandes guerreiros! Saímos das nossas casas sem saber se iremos voltar ou não”, desabafa o motoboy Jônatas.

Em 2021, o Ministério da Saúde divulgou uma pesquisa de abrangência nacional, contendo os números do Sistemas de Informação de Agravo e Notificações (Sinan), que aponta os motociclistas como as principais vítimas fatais durante o transporte no trabalho. Entre 2011 e 2020, eles representaram 21,2%, 3.296 registros, do total de 15.511 acidentes de trabalho fatais registrados.

O motoboy Jônatas, relatou o acidente que sofreu durante o trabalho, “Eu bati minha moto, tomei quinze pontos no rosto e quebrei o braço em três lugares. Não tive respaldo nenhum. O meu respaldo foi a amizade, a humildade da galera que vinha aqui trazer uma cesta, trazer uma marmita, um dinheiro, um negócio”. Ele, como outros motoboys, não tem carteira assinada e é tratado de forma descartável. “Caiu? Já foi. Chama outro e aí você é descartado. A verdade nossa é essa”.

Em 27 de novembro de 2020, o motoboy Gabriel Gomes Pereira, de 19 anos, não sofreu apenas um acidente como o colega Jônatas, mas perdeu a vida em um atropelamento enquanto se deslocava em um entrega no Centro de Conquista. Ele deixou a companheira e um filho ainda bebê.

O responsável pelo crime, o empresário Marcos Ribeiro Silva, apresentava indícios de embriaguez e recusou-se a fazer o teste do bafômetro logo após o incidente. Antes de atingir Gabriel, que morreu por não resistir aos ferimentos causados pelo choque com uma caminhonete, ele ainda atropelou outro motoboy no cruzamento entre as avenidas Brasil e Olívia Flores. Em ambos os acidentes, o motorista fugiu sem prestar socorro.

Na noite do crime e durante aquela semana, houve protestos em Conquista. Motoboys e amigos pediram Justiça em uma motociata e também na manifestação que fizeram em frente ao comércio de Marcos Ribeiro Silva, empresário conhecido na cidade. Quase um ano depois, a família ainda aguarda que a Justiça julgue o acusado. Segundo a viúva, Shirlley Gomes, a família ainda não superou a perda e está desolada pela impunidade. “Eu como esposa te digo que dói muito ainda a falta que ele faz. Muita gente fala que as leis estão aí. Mas, agora, passando por isso, sei que a lei é o dinheiro. Quem tem pode tudo. Então acreditamos na justiça divina”.

O processo criminal contra o empresário Marcos Ribeiro Silva está disponível no site do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA). Até o momento, segue em fase de investigação para captação de provas. O processo é de autoria da 10ª Coordenadoria de Polícia Civil do Interior (10ªCoorpin) e da classe de Auto de Prisão em Flagrante.

Na noite do crime, o empresário Marcos Ribeiro Silva foi preso em flagrante a cerca de 6 km do Centro, no bairro Morada dos Pássaros. Ele passou 13 dias presos, mas depois foi liberado. A equipe do Avoador enviou mensagem ao acusado para saber o seu posicionamento sobre o caso, mas, até a publicação desta reportagem, não houve resposta.

Para evitar mais acidentes como o seu e outros assassinatos, Jônatas considera essencial a realização da fiscalização com a aplicação de bafômetro, para inibir motoristas alcoolizados no trânsito, nas noites de Conquista. “Blitz tem muitas, mas poderia ter blitz mais com bafômetro, para proteger tanto quem está como pedestre como quem tá trabalhando como motoboy”.

Aumento da demanda sem direitos trabalhistas

Nos últimos anos, os aplicativos de delivery de comida ganharam mais popularidade. Com a pandemia, o serviço explodiu. Conforme estudo realizado pela Mobilis, os gastos com aplicativos de entregas, em especial para comidas prontas, cresceram 149% durante a pandemia. Os aplicativos de delivery com maior demanda foram iFood, com crescimento de 172%, Rappi (121%) e Uber Eats (37%).

Para virar entregador nesses aplicativos, o processo é simples. No iFood, o maior e mais popular aplicativo de entregas de comida do país, o motoboy só precisa baixar o aplicativo no celular e seguir o passo a passo disponível na plataforma, apresentando os seguintes documentos: carteira de motorista, documentação do veículo, cpf, conta bancária, número de celular e e-mail.

O entregador pode trabalhar no aplicativo como fixo de determinada empresa e/ou autônomo (atendendo várias empresas). Os que possuem relação direta com a plataforma são chamados de “nuvem” e são livres para trabalhar como quiserem. Já os que não têm são terceirizados por meio de empresas chamadas de Operadores Logísticas (OL). O aplicativo iFood oferece seguro de acidentes pessoais aos entregadores, plano de vantagens em saúde, parceria com empresas que concedem descontos em cursos e produtos e um código de entrega, que serve como garantia para os entregadores e clientes contra extravios de pedidos.

Apesar da necessidade de organização da categoria para ter mais força de negociação para assegurar direitos, em Conquista, até o momento, não há nenhuma associação de motoboys regulamentada. Os profissionais costumam se reunir em grupos de aplicativo de mensagens, onde compartilham suas experiências, reivindicações e organizam seus serviços. Foi assim que, em 29 de setembro, eles conseguiram paralisar a categoria dos motoboys na cidade durante o dia inteiro.

A iniciativa pioneira queria chamar a atenção dos aplicativos para as reivindicações da categoria, que luta em prol de melhores condições de trabalho. Entre as reivindicações do movimento, estavam um código de segurança em todas as entregas, pagamento de deslocamento para coletas distantes, aumento da taxa mínima de entrega, principalmente pelo aumento do valor do combustível, e pela realização de promoções e concessões de incentivos nos finais de semana e dias de adversidades climáticas.

O motoboy Alan Borges foi um dos organizadores da paralisação da categoria em Conquista no dia 29 de setembro. Foto: Arquivo Pessoal

O motoboy Alan Borges, de 39 anos, foi um dos integrantes deste movimento. Para ele, esse foi um momento de luta pelos direitos da coletividade, mas que até o momento não surtiu efeito. Desde 2014, ele exerce a profissão, parou por um período e dedicou-se aos estudos no curso de Direito. Em 2020, devido às dificuldades enfrentadas no mercado de trabalho durante a pandemia, retornou à área ao mesmo tempo em que fazia estágio em uma empresa do ramo da advocacia. O entregador considera que há ganhos financeiros na atividade, mas que, em contrapartida, há os pontos negativos, como a “falta de respeito no trânsito e a exposição ao sol e chuva” e também não receber o reconhecimento da população.

Outra questão foi levantada por Jônatas que aponta uma falta de união dos trabalhadores de delivery em Conquista. Esse seria o motivo das tentativas de criar uma associação da categoria não terem sido concretizadas. “Nossa classe tem esse grande problema, não tem união, é muito desunida.” Já Alan complementa que a representatividade acaba sendo “ cada um por si”.

Regulamentação

Como forma de regulamentar o trabalho dos prestadores de serviço de aplicativos, o Governo Federal trabalha em um projeto para criar um novo modelo de Microempreendedor Individual (MEI), o Micro Empreendedor Digital (MED). Dessa forma, as plataformas seriam obrigadas a contratar apenas prestadores que possuem inscrição no Med, que, assim como o Mei, terão que pagar o equivalente a 5% do salário mínimo como contribuição à Previdência e R$5,00 referentes ao Imposto Sobre Serviços (ISS).

Essa contribuição por parte dos entregadores passaria a ser obrigatória. Eles teriam proteção previdenciária, com acesso à aposentadoria, pensão, auxílio doença e licença maternidade, mas não teriam vínculo trabalhista e, consequentemente, não disporiam dos direitos assegurados a quem possui esse vínculo. Para o motoboy Alan Borges, essa proposta só aumentará os encargos para o trabalhador. “Só querem arrecadar dinheiro e obrigar o trabalhador a pagar mais impostos”, critica.

Em julho de 2009, foi promulgada a Lei N°12.009, que ficou conhecida como a lei dos motoboys e mototaxistas. A deliberação regulamenta essas profissões em todo o país e estabelece parâmetros que devem ser cumpridos por motoboys, mototaxistas e empresas.

Para exercer a profissão de motofretista, é necessário cumprir alguns requisitos, que são: ter 21 anos; estar habilitado há dois anos na categoria A; ser aprovado em curso específico, nos termos da regulamentação do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) e utilizar equipamentos de proteção como colete de segurança com refletores e capacete. Além disso, o veículo necessita de autorização do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) para ser utilizado como ferramenta de trabalho e também é obrigatória a instalação de alguns equipamentos de segurança nas motocicletas.

A Lei N°12.009 também determina que as empresas contratantes dos motoboys são solidariamente responsáveis pelos danos cíveis resultantes do descumprimento das normas.

De acordo com a Lei 12.997, aprovada em 2014, que incluiu o parágrafo 4.º do artigo 193 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), os trabalhadores que utilizam motocicleta para a exercer suas atividades diárias têm o direito de receber um adicional de periculosidade, referente a 30% do salário.

Porém, essas leis trabalhistas só são válidas quando há vínculos empregatícios entre as empresas e os motoboys. O serviço de motofretista pode ser exercido das seguintes formas: motoboys autônomos que trabalham por conta própria e fazem serviços para diversas empresas e clientes sem nenhum vínculo empregatício; motoboys contratados por empresas em período parcial ou integral, com registro em CLT e demais obrigações trabalhistas. Algumas empresas pagam salário fixo, outras pagam um valor mínimo e adicionais por entregas realizadas, há também os motoboys associados a cooperativas e associações, que atuam como fornecedoras desse serviço para outras empresas. Em geral, cada associação acaba criando as suas próprias regulamentações.

Ação social dos motoboys

Integrantes do grupo Boys Noel distribuindo doces em ação realizada no natal de 2020 – Foto: Arquivo pessoal

Em meio aos desafios da profissão, os motoboys Jônatas Lima Borges e Daniel Santos Silva e um grupo de amigos entregadores de delivery, ao perceberem as dificuldades financeiras trazidas pela pandemia para muitas famílias, organizaram o projeto Boys Noel. Por meio dessa ação social, eles têm realizado a arrecadação e distribuição de alimentos, brinquedos, entre outros itens, em Conquista.

O projeto Boys, que foi idealizado a partir de conversas no grupo de Whatsapp da categoria, começou em dezembro de 2020, quando o grupo decidiu arrecadar brinquedos para distribuir às crianças no Natal. Com a mobilização de 90 motoqueiros, em três semanas, foram arrecadados quase 800 brinquedos, além de saquinhos de doces, que foram distribuídos em bairros pobres da cidade.

De acordo com Daniel, outras ações já foram realizadas, como na Páscoa deste ano, e outras estão em andamento, como a organizada para o Dia das Crianças, da última terça-feira, 12 de outubro. Com entusiasmo pelo projeto, ele conta com satisfação o trabalho de “correr atrás” das doações e que recebeu recentemente um fogão. “A gente busca ajudar os outros, pois é isso que nos move como motoboys também.”

Foto destacada: Mikhaelle Piagio/Avoador

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