Novos arranjos familiares rompem os padrões da família tradicional brasileira
Famílias formadas por dois pais, duas mães, mãe e filho ou pai e filha e até por avós e netos são cada vez mais comuns, porém, o preconceito ainda persiste 30 de outubro de 2018 Bárbara Francine, Giulia Santana, Manuela Scipioni, Rhaic PiancóA família tradicional formada por um homem e uma mulher, com ou sem filhos, não é mais a regra na sociedade brasileira. Outros formatos familiares têm contribuído para uma reconfiguração do conceito de família. São as relações de afeto formadas por casais homossexuais, por mães ou pais solteiros com um ou mais filhos, avós ou avôs e netos e netas ou até mesmo por pessoas com parentesco mais distante ou sem parentesco – as chamadas famílias socioafetivas.
Esther Alves, adotada há 17 anos, faz parte de uma dessas histórias de famílias estruturadas de forma diferente daquela considerada padrão. Ela vive com dois pais. “Família é família independente de gênero e sexualidade”, diz. Segundo a jovem, uma família se sustenta pela presença, pela união entre os seus membros na alegria e na tristeza. “Meus pais são bastante respeitados, e somos como qualquer outra família”, comenta.
Em 2016, foram registrados no Brasil 1.095.535 casamentos civis, dos quais 1.090.181 aconteceram entre pessoas de sexos diferentes e 5.354 entre companheiros do mesmo sexo, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). O número de casais homoafetivos ainda é pequeno em relação ao total, mas demonstra o movimento de transformação das estruturas familiares tradicionais.
A professora Adriana Silva Amorim, 43 anos, cresceu em uma família formada por pai, mãe e três filhas. Contudo, construiu um núcleo familiar em outros moldes. Foi mãe solteira e criou a filha sozinha até os seus dois anos de idade, quando conheceu e se casou com um homem. Com ele, teve mais dois filhos e conviveu durante 16 anos. Depois disso, ela se descobriu lésbica e, atualmente, está em um relacionamento homoafetivo. Nesse novo arranjo, tem sentido certa rejeição por parte de alguns familiares. “Eu sinto que há um ‘não vamos falar disso’, sabe? Todo mundo sempre torceu que eu voltasse para o meu ex-marido”, afirma.
“As pessoas ainda olham estranho para famílias que não sejam compostas pelo pai, a mãe e os filhos. Apesar de que, em 2015, apenas 42% das famílias do Brasil eram compostas por pais, mães e filhos. Quer dizer, a maioria das famílias, 58%, já era composta de outra forma”, diz o professor do curso de Psicologia da Uesb, Daniel Marinho Drummond. “Além da questão legal, existe também a dificuldade em relação à aceitação por parte da sociedade desses novos arranjos familiares”, complementa.
Daniel, além de ensinar como lidar com novos arranjos familiares, também o vivencia na sua própria vida. Ele é pai socioafetivo do filho da sua ex-esposa. O garoto se tornou seu filho oficial via documentação registrada em cartório, que contou com a aprovação do pai biológico. “Ele agora tem dois pais e uma mãe na certidão, inclusive, adicionou o meu sobrenome. Além dos meus dois filhos biológicos com ela, ele também virou meu filho tendo todos os direitos. Isso já é permitido”.
Já o presidente da Nascor (Nascidos do Coração), Vidal Campos, possui dois filhos adotivos. Ele adotou o seu primeiro filho de forma monoparental, ou seja, uma adoção de pai solteiro. De acordo com ele, nessa época, ainda não havia nenhum apoio à adoção na Bahia, o que o prejudicava a busca de informações e auxílio no processo.
A Nascor foi criada então por ele para tentar suprir a necessidade de apoio às pessoas que estão no processo de pré e pós-adoção, pois não existe em nível de estado, de política pública, uma estrutura judiciária capaz de atender todas as demandas. “Não tem como as Varas e as Comarcas tratarem de adoção de forma mais ampla porque não têm servidores. Então são nos grupos de apoio, como a Nascor, que essas pessoas encontram esclarecimentos”, explicou. “Essa troca de experiências traz orientação para as pessoas e serve parar quebrar o preconceito que ainda existente em torno da adoção”.
Orientação e amor
Para a psicóloga do Núcleo de Atenção à Criança e ao Adolescente de Conquista, Néria Ribeiro, os papéis desempenhados pela família na vida de uma criança vão muito além da figura materna ou paterna. Independente da estrutura familiar apresentada, é fundamental que as crianças possuam alguém que as oriente, acolha e dê segurança e estabilidade emocional. Segundo a especialista, elas precisam de alguém como referência, para confiar, dar carinho e ensinar a diferença entre o certo e o errado. Essas atitudes afetivas são mais importantes do que qualquer laço sanguíneo.
“A única coisa que uma criança precisa é ser amada”, defende a gerente em exercício do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente, Lucimeire de Jesus Passos. “Não interessa se é pai, mãe, avó, avô, tios, vizinhos, família homoafetiva, família socioafetiva, não importa. A única coisa que a criança precisa para se tornar um adulto pleno é o amor”.
Lucimeire explica com conhecimento de causa. Ela foi criada em uma família fora dos padrões tradicionais. Foi filha de mãe solteira e, aos 17 anos, ficou órfã e passou a conviver com uma família socioafetiva. Ao lado do companheiro, teve um filho. Contudo, desde quando o bebê nasceu, ela passou a fazer o papel do pai e da mãe da criança. Após se separar do ex-marido, ela continuou criando sozinha o filho. Apesar de passar por diversas dificuldades, nunca deixou de ser o alicerce para ele, que hoje tem 24 anos.
Esse processo não foi fácil, Lucimeire sofreu preconceito por ser separada e sentia uma pressão das pessoas em que ela interpretava como “seu filho precisa ser mais perfeito do que os filhos de famílias tradicionais”. Segundo ela, a sociedade foi muito cruel. Mas isso não a impediu de vencer as dificuldades, cada luta valeu a pena e hoje a palavra orgulho é a que define a família formada após tantas lutas.
Foto destacada: Avoador