O preconceito e a violência marcam a vida das travestis em Conquista
29 de abril de 2016 Érika Paula Souza, Voiana Martins, Amanda Silveira, Luan Soares, Earvin Caetano, Vanille de Oliveira, Rodrigo Farias, Doni Pereira e Ingrith Oliveira“Sofria graves ameaças”: Mirella Müller, 27 anos. “Violência verbal era praticamente todos os dias”: Thyffanny Linhares, 29. As duas travestis abandonaram a prostituição nas ruas de Vitória da Conquista por medo. Mas, de acordo com a Coordenação LGBT na cidade, outras 17 travestis e transexuais, que se cadastraram no órgão como profissionais do sexo, continuam na atividade. Elas estão sob o risco diário de assassinato, agressão física e verbal e de contrair doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).
“Não é tirar a travesti e a transexual da prostituição. A gente precisa entender a vontade dela de estar lá. Se a escolha é de permanência na prostituição, é necessário garantir a ela segurança e dignidade para trabalhar como qualquer outra pessoa”, defende o coordenador do setor de Políticas de Promoção da Cidadania e dos Direitos LGBT, órgão ligado à Prefeitura Municipal, Danillo Bittencourt.
A preocupação com a segurança das travestis não é à toa. Em 2015, a primeira morte do ano no Brasil por transfobia ou travestifobia foi registrada em Conquista. A travesti Fernanda foi assassinada a tiros em 26 de janeiro. O corpo foi encontrado em um matagal no bairro Lagoa das Flores. No mesmo ano, a cidade alcançou a liderança no ranking estadual de violência contra a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis). Foram nove homicídios, quatro deles cometidos a travestis profissionais do sexo que estavam no seu horário de trabalho. Todos os casos foram arquivados, sem identificação dos criminosos, o que reforça a existência de impunidade em crimes desse tipo e a insegurança das possíveis vítimas.
Em Conquista, a BR-116 (Rio-Bahia), que passa por dentro da cidade, na Avenida Integração, é o principal ponto de prostituição LGBT. De acordo com Bittencourt, a Polícia Militar não é treinada para atuar nos casos travestifobia que ocorrem constantemente nesse trecho. “A gente ainda conta com a atuação de um setor que não tem essa responsabilidade, por conta de uma falta de entendimento da Polícia no trato com essa população. A gente tem uma Polícia que não compreende a prática de atos homofóbicos”, explica.
O caso de Fernanda ilustra o despreparo para tratar de crimes do tipo. A travesti, que se reivindica mulher, não teve a identidade social e de gênero respeitadas pela Polícia, que a reconheceu apenas como homem e a tratou pelo nome de registro. “Queriam a todo custo retirar a vestimenta da Fernanda para não colocar nos autos do crime que estava com aquela vestimenta de travesti. Ela tinha acabado de ser morta pelo preconceito da sociedade e até na morte ela não podia ser reconhecida como Fernanda”, relembra Bittencourt.
De acordo com a Policia Militar da Bahia (PMBA), existem treinamentos, cursos temáticos e instrução com disciplina própria durante os cursos de formação, com relação ao tratamento com o público LGBT. Para a Capitã da PMBA, Fanneli, as pessoas entram na instituição com os valores e caráter já formados: “todos já trazem seus valores e credos, independente de ser o certo ou não. Então quem vem cheio de preconceitos e tabus continua da mesma forma.”
O setor municipal diz ter solicitado segurança policial para travestis e transexuais profissionais do sexo. “A gente está informando que a Polícia precisa atender as demandas de violência com essa população nos seus espaços de trabalho como qualquer outro cidadão”, destaca Bittencourt.
As travestis também podem ir à Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM). Essa é uma garantia trazida pela lei nº 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que busca prevenir e punir a violência doméstica contra as mulheres, não só as biologicamente nascidas, mas também as transexuais e travestis. O problema é que o atendimento funciona apenas em horário administrativo, de 8h às 18h, o que dificulta a resolução de casos de violência contra travestis prostitutas que trabalham, em geral, de madrugada.
Além da violência, que pode acabar em crime ou agressões físicas, as travestis vivenciam ainda o preconceito cotidiano. “Já sofri várias tentativas de violência física, mas nenhuma chegou se a concretizar. Mas violência verbal era sempre”, desabafa Tiffany. Mirela também passou por situações semelhantes: “Violência verbal era praticamente todos os dias, já a física foram várias ameaças graves, mas nunca chegaram a se realizar. Eu era ameaçada por pessoas que passavam na rua, clientes e até mesmo as outras travestis”.
A presidente do Coletivo Finas e conselheira estadual LGBT, Raphaella Souza, que também é travesti, defende a diversidade sexual e considera que existe mais preconceito e violência contra as travestis. “A sociedade acha que só existe “viado” e “sapatão” e que todo mundo é igual, eles não sabem diferenciar a orientação sexual e a identidade de gênero. Eu possuo outra identidade, então é isso que a sociedade precisa respeitar, porque na verdade nós gostamos de pessoas e não de órgãos sexuais”, conta.
Conceitualizar as diferenças entre as identidades de gênero não é nada fácil. Nos últimos 10 anos, os pesquisadores têm buscado definições para encaixar a travesti, transexual e transgênero. Segundo o mestrando em Cultura e Sociedade pela UFBA e membro do grupo de pesquisa CUS (Cultura e Sexualidade), Murilo Nonato, “no Brasil, aparentemente, a maioria das travestis estão nas ruas e se prostituem. O termo “travesti” recebe estigma ainda maior do que os outros dois por conta dessa realidade. No entanto, não existem diferenças entre essas identidades, que as tornem realmente distintas. Isso nos leva a crer que essa identificação como travesti surge a partir de um recorte de classe. Um recorte que marginaliza a travesti.”
Não existem no país leis que tratem especificamente da transexualidade ou travestilidade, mas algumas tentativas de mudanças estão em andamento. “Existe o projeto de lei chamado João Nery, de autoria de Jean Wyllys e de Érika Kokay, que é baseado em uma lei argentina em vigor desde 2012 (Ley 26.743). O projeto, em resumo, pretende permitir aos transexuais e travestis de terem a identidade reconhecida conforme sua auto identificação, sem necessidade de realização cirúrgica para adequar seus corpos as expectativas sociais para o gênero ou de permissão judicial”, explicou Nonato.
“Quando existe um pedido de socorro, como foi o caso das manifestações devido à morte de Fernanda, a sociedade vê apenas como uma Parada Gay, ninguém respeita e nem enxerga as violências diárias que sofremos”, diz Thyffanny. “Precisamos de leis verdadeiras. Antes de qualquer coisa, somos seres humanos, precisamos de algo que nos defenda dessa sociedade”, concluiu Mirela.
Assim como Mirela e Thyffany, travestis que trabalham na prostituição têm de conviver com várias formas de violência, tanto verbais quanto físicas. Entre janeiro de 2008 e março de 2014 foram registradas 604 mortes no país, segundo uma pesquisa da organização não governamental (ONG), Rede Européia de Organizações, que apoia os direitos da população transgênero.
Mercado de trabalho
Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) de junho de 2015, 90% das travestis no Brasil têm dificuldade de conseguir um emprego formal. “Para o gay, normalmente, é mais tranquilo arrumar emprego, entrar na universidade, para a travesti não, porque ela já sofre desde quando se assume travesti. É muito complicado você ir para a escola, você se relacionar com as pessoas da sua família e fora as formas de segregação que a própria sociedade nos dá, por ser travesti, por ser transexual”, explica a presidente do Coletivo Finas.
Fernanda, a primeira vítima de transfobia de 2015, vendia doces no terminal de ônibus de Conquista. Mas, como ganhava muito pouco para arcar com as suas despesas, passou a trabalhar como profissional do sexo. “Durante o dia, ela vendia os doces com vestes masculinas, e, à noite, atuava com vestes femininas”, relembra Bittencourt.
Esse foi também o caso de Mirella Müller, que precisou garantir o seu sustento. Ela precisava do dinheiro para ir a uma festa e por meio de uma amiga também travesti resolveu fazer um programa. Depois vieram mais necessidades e a facilidade de ganhar rapidamente dinheiro nas ruas, manteve na prostituição por três anos. “Consegui um bom dinheiro no primeiro dia, acabei não indo para o show, mas me acostumando com a vida noturna e o dinheiro fácil”, explica.
Já Thyffanny, travesti prostituta por 10 meses, foi atraída pela fantasia de uma vida glamourosa. “A princípio não foi por dinheiro, minha família sempre teve condições. A primeira vez que eu me travesti de mulher foi para ir a uma festa em um bar daqui da cidade. Mas lá, eu conheci uma travesti que fazia ‘ponto’ em uma BR de Conquista e que veio me falar que eu tinha um corpo bonito, que eu daria certo na pista, que lá era um lugar de glamour e de dinheiro. Assim me despertou uma curiosidade a ponto de ir dias depois fazer meu primeiro programa”, relata.
Aliado ao dinheiro, aparentemente fácil, o cotidiano das duas travestis era marcado pela violência dos clientes, da população em geral e das próprias colegas de trabalho. Para o pesquisador Murilo Nonato, é fundamental frisar que “apesar de toda regra ter exceção, em geral, a travesti não vai para a rua porque quer, mas porque é a única maneira de sobrevivência. Ninguém quer travesti atendendo em loja, trabalhando em suas empresas e etc. Elas apanham, são estupradas, mortas todos os dias e elas têm consciência desse risco toda vez que saem de casa. Elas escutam todos os dias sobre as mortes de colegas da cidade ou do estado”.
Hoje, longe da prostituição, Thyffanny trabalha em um emprego “formal”. Segundo ela, no seu ambiente de trabalho, ela é respeitada tal como é. “Por incrível que pareça no meu trabalho não sofro nenhum tipo de preconceito. É muito difícil a gente ouvir isso de uma pessoa como eu, mas as pessoas do meu trabalho conhecem toda a minha história e me respeitam”.
Já Mirela está desempregada desde que largou a prostituição e não consegue arrumar um emprego. “Não consegui nenhum trabalho ainda, e eu sei que o motivo maior é a minha opção sexual (sic). Entrego currículos e até hoje nada”, desabafa.
Vulnerabilidade às DSTs
Além do perigo da violência, os riscos em relação às doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) fazem parte do cotidiano das profissionais do sexo. Isso se deve a fatores diretamente ligados à prostituição, como o elevado número de parceiros e a práticas e situações a ela associados, aí incluídos o consumo de drogas ilícitas e de bebidas alcoólicas que são usados para ser uma anestesia da árdua prática.
Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde (MS), entre 1980 e o final de 2014, registrou 676.082 casos de AIDS no Brasil, uma média de 36 mil por ano. De acordo com o órgão, o avanço da doença foi registrado especialmente na população em situação de vulnerabilidade (gays, travestis, profissionais do sexo e usuários de drogas). Mas o pesquisador Murilo Nonato questiona os números pela possibilidade de estigmatizar gays e travestis como a população mais propícia a contrair AIDS. “Estudos mostram que atualmente o número de heterossexuais que contraíram o HIV é maior. Isso pode estar ocorrendo porque os casais heterossexuais abandonaram a camisinha após o desenvolvimento de outros métodos contraceptivos, por outro lado, entre os homossexuais e travestis aumentou-se a consciência da importância das medidas de prevenção devido ao estigma”.
O risco de contrair uma doença sexualmente transmissível, além do cansaço mental e físico, contribuiu para que Mirela deixasse a prostituição. “O medo das DSTs e das graves ameaças físicas e verbais que sofria na pista enquanto estava travestida me fizeram abandonar essa vida. Embora eu quisesse usar preservativo, alguns clientes exigiam o não uso deles e me obrigavam a obedecê-los”.
Com Thyffanny não foi diferente. Ela queria seguir outros caminhos que garantissem uma vida melhor e sem riscos. “Eu tinha o sonho de fazer faculdade e sair daquilo ali porque era muito perigoso. Na noite, a gente convive com empresários poderosos de Vitória da Conquista até criminosos. É muito difícil você fazer um programa e, no dia seguinte, ver na mídia que aquela pessoa morreu em confronto com outros criminosos ou com a Polícia”, recorda.
→ Fique Por Dentro:
O que é identidade de gênero?
Identidade de gênero se refere à forma com que o sujeito se apresenta e atua na sociedade: seja como homem, mulher ou outras formas de perceber a si mesmo. O senso comum trata a identidade de gênero como se fosse a continuidade do sexo (órgão genital). Ou seja, para o senso comum, o sujeito que nasce com a genitália masculina deveria se apresentar na sociedade como homem. Porém, entende-se a identidade de gênero como uma expressão da cultura e não da fisiologia dos corpos.
Toda travesti é homossexual?
Não, aí entra a polêmica. Identidade de gênero não tem necessariamente a ver com orientação sexual, são coisas diferentes e qualquer combinação é possível. Muitos transgêneros são bissexuais ou sentem atração pelo sexo oposto.
Há diferença entre transexual, transgênero e travesti?
Transexualidade (transexuais), transgêneridade (transgêneros) ou travestilidade (travestis) se referem ao sujeito que não se identifica com o gênero que lhe foi determinado no momento do seu nascimento. Por exemplo: o sujeito nasceu com a genitália masculina e se apresenta na sociedade como mulher. Não há diferenças reais entre esses conceitos, eles partem da auto-identificação de cada um.
E pessoas “Cis”, você sabe o que é ?
Cisgeneridade se refere ao sujeito que se identifica com o gênero que lhe foi determinado no momento do seu nascimento. Por exemplo, o sujeito cisgênero nasce com a genitália masculina e se apresenta na sociedade como homem.
Você sabe o conceito de orientação sexual?
Orientação sexual se refere ao desejo afetivo e sexual que um sujeito demonstra pelo outro. A orientação sexual e a identidade de gênero são interdependentes, porém são conceitos distintos.
Fonte: Murillo Nonato, graduado em Comunicação Social pela UESB (2012), mestrando em Cultura e Sociedade pela UFBA e membro do grupo de pesquisa CUS (Cultura e Sexualidade).
Foto Destque: Érika Paula Souza