Universitários neurodivergentes e os desafios que enfrentam no ambiente acadêmico

Diagnóstico tardio e o despreparo dos professores geram nos estudantes com neurodivergência constrangimentos e sofrimentos 2 de setembro de 2023 Letícia Mendes e Samantha Garcez

A estudante do 6º semestre de Jornalismo na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), campus de Vitória da Conquista, Layara Luiza Rodrigues Cariranha, ao  ser diagnosticada com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), com predominância em desatenção aos 21 anos, entendeu o porquê sempre sentiu que estava um passo atrás de seus colegas de faculdade.

As inseguranças com sua intelectualidade se afloraram ainda mais diante de comentários depreciativos sobre sua falta de atenção, principalmente com relação a leituras de livros e artigos acadêmicos, que, para ela, mais pareciam uma tortura. No início de 2022, um de seus colegas de turma fez chacota disso. “Tudo que eu fazia era invalidado: quando eu dava uma opinião, era descartada; se eu falava alguma coisa, ele não me ouvia. E aí eu percebi que ele estava me taxando de burra.”

As situações de constrangimento não pararam por aí,  a estudante de Jornalismo também se sentiu menosprezada por uma professora da instituição, quando a mesma exigiu que os alunos lessem um texto de 19 páginas para ser apresentado na frente de todos. “Se eu fosse lá para frente, a única coisa que eu ia ter é constrangimento porque eu não ia falar nada.” No fim das contas, a estudante não conseguiu compreender o texto e, ao tentar dialogar com a professora sobre suas limitações, não foi acolhida. “Eu fiquei bem mal, fui pra casa, e chorei. Se todo mundo entendeu esse texto, todo mundo sabe, todo mundo apresentou, por que eu não consigo?”, disse em tom de indignação.

Luiza Cariranha, estudante de Jornalismo na Uesb, de Vitória da Conquista, só descobriu seu TDAH aos 21 anos e já passou por diversas situações de constrangimento por não ser compreendida por colegas e professores. Foto: Letícia Mendes

Para a neuropsicopedagoga, Jucineide Almeida, essa dificuldade de leitura é um dos sinais que comumente aparecem desde o período escolar, mas, infelizmente, muitos professores não estão preparados para lidar com alunos neurodivergentes. Isso pode levar tanto ao atraso no diagnóstico quanto à falta de amparo e acompanhamento adequado do ensino. “Muitos profissionais não estão preparados para lidar com essas pessoas, por isso é importante eles conhecerem os sintomas de um transtorno específico de aprendizagem. Não é que ele vai diagnosticar nada, mas ele vai entender.” 

A neuropsicóloga e terapeuta cognitivista comportamental Leidiane Moraes Ribeiro, especialista em TDAH e dislexia, também acredita que, no geral, muitos professores ainda não estão devidamente capacitados para auxiliar alunos neurodivergentes. “Embora tenhamos visto avanços em termos de formação e conscientização, ainda há um longo caminho a ser percorrido. A importância de ter profissionais capacitados reside na promoção de uma educação inclusiva e justa. Quando compreendem as condições desses alunos, os educadores podem adaptar suas estratégias pedagógicas, contribuindo para o sucesso acadêmico e bem-estar emocional do aluno. A compreensão e o apoio adequado aos estudantes neurodivergentes são essenciais para que eles alcancem seu potencial máximo, evitando a exclusão e o estigma.”

A compreensão e o apoio adequado aos estudantes neurodivergentes são essenciais para que eles alcancem seu potencial máximo, evitando a exclusão e o estigma”, disse a neuropsicóloga e terapeuta cognitivista comportamental, Leidiene Moraes.  Foto: Arquivo Pessoal.

Segundo o Instituto Brasileiro de Neurodivergência (IBND), as pessoas neurodivergentes têm condições neurológicas diferentes do padrão, apresentando dificuldade na capacidade de planejamento, regulação emocional, memória de trabalho, organização e até mesmo a iniciação e execução de tarefas. Dentro desse leque de possibilidade, estão  o TDAH, transtorno do espectro autista (TEA), transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), dislexia, discalculia, entre outros, conforme aponta a 5ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), desenvolvido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), de 2014.

“Muitos profissionais não estão preparados para lidar com essas pessoas, por isso é importante eles conhecerem os sintomas de um transtorno específico de aprendizagem”, explicou Jucineide Almeida, neuropsicopedagoga. Foto: Arquivo pessoal

TDHA, comorbidades e a Lei

Para a bacharel em Engenharia Ambiental pela Uesb de Vitória da Conquista e pós-graduanda em Segurança do Trabalho na Unigrad, Bianca Pessoa Silva Leite, 26 anos, tudo começou com episódios graves de ansiedade durante a pandemia da covid-19. Quando decidiu buscar ajuda, ela descobriu que isso se tratava de uma comorbidade que acompanha seu TDAH e que é mais comum do que se imagina. Isso porque, de acordo com a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), 70% dos cidadãos apresentam um ou mais transtornos associados ao TDAH, como  ansiedade, depressão, síndrome de burnout e/ou problemas de aprendizagem.

Segundo a engenheira, apesar de ter buscado ajuda apenas na vida adulta, desde a infância os sintomas eram aparentes. Na escola, ela tinha dificuldades em fortalecer laços de amizade e lembrar de informações ou datas importantes. “O esquecimento sempre foi o sintoma mais forte do TDAH, e todo mundo brigava muito comigo por conta disso.” No início do diagnóstico, seus familiares se mostraram céticos quanto ao seu transtorno e consideravam até que era “frescura”. Somente após perceber as mudanças da filha, durante o tratamento, sua mãe, que também foi diagnosticada com TDAH tardiamente, compreendeu os sentimentos e as limitações da própria filha. 

“O esquecimento sempre foi o sintoma mis forte do TDAH, e todo mundo brigava muito comigo por conta disso”, Bianca Leite, engenheira florestal. Foto: Arquivo pessoal.

Durante o bacharelado e a pós-graduação, as desconfianças sobre o diagnóstico de Bianca continuaram. Por isso, ela costumava carregar uma cópia do laudo psiquiátrico para comprovar sua disfunção para os professores e colegas. Isso era prioridade em períodos de provas, quando pedia para fazer suas avaliações em um local separado e com tempo extra para conseguir se concentrar. Na época,  muitos chegaram a dizer que ela fingia ter problemas e que usava isso para tirar vantagem sobre os demais. “Eu sou uma pessoa neurodivergente, eu não penso igual a eles, a minha cabeça funciona de forma diferente, a minha forma de aprender é diferente. Então por que as minhas oportunidades e a forma como os professores me avaliam não tem que ser diferente? É como se eu tivesse tirando vantagem de uma coisa que é direito meu.”

Sancionada em novembro de 2021, a Lei Nº 14.254 dispõe dos direitos e do acompanhamento de pessoas com dislexia, TDAH ou outro transtorno de aprendizagem. A normativa aponta que cabe ao poder público proporcionar um acompanhamento integral na rede de ensino, em parceria com o apoio terapêutico especializado na rede de saúde, e também que deve ser garantido aos professores amplo acesso à informações e encaminhamentos possíveis para a identificação precoce dos sinais relacionados aos transtornos de aprendizagem ou TDAH.

Além disso, desde 2012, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) dispõe de atendimento diferenciado para pessoas com TDAH, dislexia, discalculia, autismo e demais transtornos. A prerrogativa é de 60 minutos de tempo adicional para fazer a prova e o candidato ou candidata tem direito a uma sala separada dos concorrentes. No entanto, esse direito ainda não se aplica às avaliações realizadas no Ensino Superior, mas o aluno pode solicitar esse tipo de auxílio na Instituição ou recorrer à jurisprudência caso suas necessidades não sejam respeitadas.

Atualmente, Chiara Lula Rocha, de 22 anos, tem seus direitos reconhecidos na Faculdade Independente do Nordeste (Fainor). No entanto, o caminho até o diagnóstico e o tratamento do TDAH tipo hiperativo-impulsivo não foi nada fácil para a estudante de Enfermagem. Quando criança, ela sofria bullying e tinha dificuldade para manter laços afetivos por ser agitada e tempestuosa, fazendo com que precisasse mudar de escola diversas vezes.

Na adolescência, ainda sem entender os motivos do seu comportamento, ela desenvolveu depressão e uma forte ansiedade, que foram tratados com medicamentos, terapia artística e tradicional. Na época, sua terapeuta chegou até a enviar um relatório à escola em que estudava, para que Chiara pudesse ter o ensino especializado. O pedido não foi plenamente concedido. “Eu não tinha apoio da escola. Eles só deixavam eu fazer a prova separada, mas eu não tinha o apoio psicológico mesmo”, afirma enquanto agita a mão direita, seguida da esquerda, simetricamente. Esse é um dos gestos que se repete com frequência devido ao seu Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), uma das comorbidades que acompanham seu TDAH. 

“Eu não tinha apoio da escola”, Chiara Lula, estudante de Enfermagem na Fainor. Foto: Letícia Mendes

Foram necessários 20 anos de existência e muita luta para que Chiara, finalmente, chegasse a um diagnóstico definitivo e fosse acolhida por quem a cerca. Na Fainor, ela tem atendimento psicológico personalizado e mais tempo para realizar atividades e avaliações. Os professores têm se responsabilizado por atender as especificações de cada aluno. “Este ano eles têm que assinar um contrato em papel pessoalmente entendendo quem é o aluno e como lidar com cada um.”.

Ações afirmativas na Uesb

O auxílio psicológico também foi e está sendo fundamental para o estudante de Cinema e Audiovisual da Uesb de Vitória da Conquista, Vinicius Cabral Brito de Souza, 21 anos, que demorou para se reconhecer TDAH e autista. “Porque eu pensei que isso não podia ser uma grande coisa, entende? Eu tive isso a vida inteira, e isso não me afetou até agora, então, não tinha porque ficar mergulhando nisso.”

Apesar de acreditar no início que seu diagnóstico não o afetaria, em 2022, ele sentiu que não conseguiria suportar, e pensou em desistir não somente da faculdade mas também da vida. Após muitas sessões de terapia e alcançar o autoconhecimento, Vinicius percebeu que se aceitar da forma que é e seguir em frente seria a melhor escolha. “Eu não posso tentar ser como os neurotípicos, porque eu não sou, e é muito melhor eu ser eu mesmo. Isso que me fez deixar de fingir que eu não sou autista”, contou enquanto olhava fixamente para o chão a fim de não manter contato visual para se sentir mais confortável.

“Eu não posso tentar ser como os neurotípicos, porque eu não sou, e é muito melhor eu ser eu mesmo”, Vinicius Brito, estudante de Cinema e Audiovisual na Uesb, Vitória da Conquista. Foto: Letícia Mendes

Um dos motivos que permitiram a Vinicius seguir adiante foi o Coletivo Autista de Vitória da Conquista (C.A.C), criado por ele e um grupo de estudantes universitários com TEA. O Coletivo tem buscado oferecer auxílio em relação às necessidades desses alunos nos campus, denunciado situações de capacitismo e promovido a integração de mais alunos com a condição por meio de palestras e rodas de conversa.  “Você acha que o mundo não vai te entender e, aí, você conhece um lugar cheio de pessoas que são como você e se sente mais capaz de agir sozinho, justamente porque você também age por um grupo agora.”

Para tornar as missões do Coletivo possíveis, o estudante de Cinema e os demais membros do grupo buscaram ajuda do Núcleo de Ações Inclusivas para Pessoas com Deficiência (Naipd) da Uesb. Desde 2009, os três campi da universidade oferecem acompanhamento pedagógico, atendimento psicológico, interpretação e tradução de libras e adaptação de material acadêmico para garantir que os estudantes permaneçam nos cursos durante a graduação e pós-graduação. Segundo a técnica educacional Fabiana Gomes de Sousa Pereira, que integra a equipe do Naip e auxilia os estudantes do coletivo “O Naip busca promover a remoção de barreiras, sejam elas arquitetônicas, atitudinais, comunicacionais, sociais, dentre outras.”

“O Naipd busca promover a remoção de barreiras, sejam elas arquitetônicas, atitudinais, comunicacionais, sociais, dentre outras”, disse Fabiana Gomes de Sousa Pereira, técnica educacional do Núcleo de Ações Inclusivas para Pessoas com Deficiência (Naipd) da Uesb, Vit´roia da Conquista. Foto: Arquivo Pessoal

Diagnóstico

Na internet é cada vez maior a produção e difusão de informações sobre os transtornos de aprendizagem. Há de tudo um pouco, até pessoas com TDAD que têm produzido conteúdo sobre suas vivências, existindo até quem ensine leigos a se autodiagnosticarem com o transtorno. A procura desse tema é tanta que só no Tiktok, a hashtag “TDAH” acumulou mais de um bilhão de visualizações e #TesteTDAH tem 1,9 milhão, em 2022, segundo a Associação Paulista de Medicina. “A crescente conscientização sobre condições de saúde mental e neurodivergentes pode, paradoxalmente, levar a interpretações equivocadas de comportamentos normais ou variações de personalidade como patológicos.Além disso, a facilidade de acesso à informação online, embora benéfica, pode levar algumas pessoas a autodiagnósticos sem a consulta de profissionais qualificados”, alerta a neuropsicóloga Leidiane Ribeiro.

Essa onda de generalização indevida no campo da saúde mental tem promovido o aumento de diagnósticos incorretos e a automedicação indevida. Com isso, a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) teme que a doença seja banalizada e tratada inadequadamente. “Há uma grande onda de generalização de diagnósticos incorretos e até mesmo medicação indevida para as pessoas”, é o que diz a psicóloga especialista em Terapia Cognitivo Comportamental, Natália Lima Ferraz, que atua na Clínica Affectio, no Projeto Tetris e na Faculdade Independente do Nordeste.

Ainda segundo a Natália, os profissionais psicólogos precisam ter um olhar cada vez mais atento às demandas solicitadas pelos pacientes quando os sintomas aparecem para que o diagnóstico seja efetivo. “A investigação vai muito além da queixa, ela exige explorar outros campos para que se possa ser feito o diagnóstico do TDAH e o direcionamento para um profissional da psiquiatria, para que a pessoa possa tomar corretamente a medicação.”

Natália Lima Ferraz, psicóloga especialista em Terapia Cognitivo Comportamental, acredita que os profissionais da psicologia precisam ter um olhar atento para que se evite diagnósticos incorretos e medicações indevidas. Foto: Arquivo Pessoal

Para a estudante Chiara, essa banalização é preocupante, já que pode prejudicar as pessoas que realmente vivenciam esse e outros transtornos, levando ao descrédito e a exclusão. “Essa situação diminui tanto a gente como se isso fosse só uma coceirinha no nariz, e não uma coisa que efetivamente atrapalha a gente no dia a dia.”

Assim como Chiara, Bianca Leite também reforça seu receio com os autodiagnósticos em testes online. Ela compreende que as pessoas podem identificar os sinais no próprio comportamento, mas não confirmar por si mesmas. “No meu caso, não foi uma coisa que eu descobri na internet, porque hoje em dia tem muita informação virtual sobre TDAH, mas o diagnóstico precisa ser feito apenas por um profissional, um psiquiatra ou um neurologista em parceria com psicólogo.”

O alerta das duas pessoas entrevistadas é da necessidade de cada um, desde cedo, compreender sua própria individualidade, as dificuldades que limitam seu aprendizado e as possíveis causas a partir do apoio de um profissional devidamente capacitado.

Uma resposta para “Universitários neurodivergentes e os desafios que enfrentam no ambiente acadêmico”

  1. Rita Ferreira disse:

    Matéria linda maravilhosa parabéns pelo trabalho bem elaborado.

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